PS e PCP admitem inquérito parlamentar ao caso dos dez mil milhões voadores
"Não podemos fechar essa porta", diz o deputado João Paulo Correia, porta-voz do grupo parlamentar do PS para as questões de Orçamento e Finanças. "Todos os instrumentos parlamentares estão em cima da mesa", acrescenta Miguel Tiago, do grupo parlamentar do PCP.
A "porta" de que o deputado do PS fala ou o "instrumento parlamentar" que o do PCP admite usar chama-se comissão parlamentar de inquérito (CPI). Ambos admitem usar esse mecanismo para apurar todas as responsabilidades - começando por políticas - num caso ontem denunciado pelo jornal Público: entre 2011 e 2015, a Autoridade Tributária (AT) não processou, nem estatisticamente nem para efeitos de eventual receita fiscal, as transferências de cerca de dez mil milhões de euros de contas nacionais para contas em paraísos fiscais (offshores), transferências reportadas, como é mandatório desde 2010, pelos bancos de onde saiu o dinheiro.
O Bloco de Esquerda, através de Mariana Mortágua, também não excluiu ao DN um cenário de criação de uma CPI, mas é mais recuado: "Neste momento é importante que ambos os secretários de Estado dos Assuntos Fiscais [o atual, Rocha Andrade, e o do governo PSD-CDS, Paulo Núncio] esclareçam a situação. Vamos esperar por isso e depois veremos os próximos passos a dar." PCP, PS e BE anunciaram ontem requerimentos chamando Andrade e Núncio à comissão parlamentar de Orçamento e Finanças, para esclarecimentos. Depois se verá como o caso prosseguirá.
O que pode estar em causa, para já, é uma enorme perda de receita fiscal. Transferir dinheiro de uma conta bancária nacional para uma conta offshore não paga imposto. Mas antes de se saber se paga ou não é preciso que a Autoridade Tributária apure a origem do dinheiro e se ele resulta, ou não, de uma qualquer operação que seja, ela sim, tributável. Foi assim que aconteceu, segundo confirmou ao DN uma fonte do Ministério das Finanças. "Verificamos quem em 2015 houve um pulo gigantesco das transferências em relação a 2014. Pedimos uma explicação. Quando foi olhar para aquilo, a Autoridade Tributária verificou que durante quatros anos [2011, 2012, 2013 e 2014] tinham existido comunicações de bancos que não tenham sido tratadas pela Autoridade Tributária. Não tinham ido nem para a estatística nem para inspeção tributária. Os dados tinham sido comunicados pelos bancos e tinham ficado lá parados." Ao longo de 2016, a AT apurou então as transferências financeiras que ela própria não tinha processado: vinte, num valor global de cerca de dez mil milhões de euros - o equivalente, hoje, a 5,5% do PIB, ou, se se preferir, pouco mais do que é esperado neste ano que o Estado gaste em encargos da dívida pública (oito mil milhões de euros).
Em dezembro do ano passado, a AT atualizou então os valores das transferências para offshores. E ordenou duas averiguações: uma à Inspeção-Geral das Finanças para apurar porque não foram aqueles fluxos processados; outra pela AT, para apurar qual a receita tributária que pode resultar daqueles dez mil milhões de euros. Os dois processos estão a decorrer.
No PS, já há quem faça contas. "Se a essas transferências corresponder uma receita fiscal de 15% estamos a falar de 1500 milhões de euros", diz ao DN o deputado do PS João Paulo Correia. Miguel Tiago acrescenta outro problema: "É preciso ver que implicações tem esta situação no cumprimento das leis sobre combate ao branqueamento de capitais e ao financiamento do terrorismo." Mariana Mortágua aproveita para tentar voltar a colocar na agenda uma velha pretensão do Bloco de Esquerda: "Quem transfere dinheiro para as Bahamas, as Ilhas Virgens Britânicas ou o Panamá está à procura é de falta de transparência e de evasão fiscal. Então o Estado português tem de estar na linha da frente e proibir estas transferências. Seria a única forma moralmente aceitável de lidar com estas transferências, que continuam a lesar os interesses do Estado."
Pelo meio, uns e outros recordam que tudo isto se passou durante o governo PSD+CDS lidera-do por Pedro Passos Coelho, um governo que forçou o português médio a enormes doses de austeridade, aumentando impostos e cortando pensões. "O anterior governo, ao mesmo tempo que aumentava os impostos de forma impla- cável sobre quem trabalhava, quem consumia, sobre o pequeno comércio e as pequenas empresas, deixava que dez mil milhões fugissem do país sem qualquer controlo", afirma Mariana Mortágua. Miguel Tiago, do PCP, alinha o mesmo argumento, com outras palavras: "O mesmo governo que durante quatro anos castigou os pequenos rendimentos dos portugueses - trabalhadores, reformados, pensionistas - e até as PME, esse governo deixou durante quatro anos escapar dez mil milhões a mais do que se sabia para fora."
E corre-se mesmo o risco de perder receita fiscal? Sim. A fonte das Finanças contactada pelo DN diz que "há riscos de cobranças que não se podem fazer se corresponderem a operações com mais de quatro anos". Mas isto é "em regra" - "porque há situações de exceção", é preciso ver caso a caso.
E isto aconteceu porque houve uma orientação política para que acontecesse? Já se sabe que Paulo Núncio, o secretário de Estado responsável pelos Assuntos Fiscais nos anos em causa, nega qualquer responsabilidade. Mas para Mariana Mortágua, por exemplo, parece "difícil de acreditar que a Autoridade Tributária tenha deixado de processar as transferências sem uma orientação expressa".
Quem se coloca no lado oposto das convicções é o PSD. Duarte Pacheco, deputado responsável pelas questões de Orçamento e Finanças, avança ao DN: "Não acredito que tivesse havido orientação política para que a análise não fosse feita."
Assim, para já, o PSD "aguarda explicações", que quer que surjam "sem precipitações". Só depois irá "tirar conclusões".
Já o CDS - partido de Paulo Núncio - mantém-se em silêncio. Ontem, por diversas ocasiões, o DN tentou contactar a deputada Cecília Meireles, escolhida pelo seu próprio partido para comentar o caso. Em vão. Agora falta o Parlamento agendar as audições ao atual e ao ex-secretário de Estado dos Assuntos Fiscais.