"Médicos têm de prescrever menos e melhores antibióticos"

Carlos Palos, coordenador do Programa de Prevenção e Controlo de Infeções e de Resistência aos Antimicrobianos, considera que se usa antibióticos a mais e nem sempre receitados da forma correta
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A resistência aos antibióticos está a aumentar em todo o mundo e é uma das principais preocupações da Organização Mundial da Saúde (OMS), que estima que esta situação pode provocar a morte de dez milhões de pessoas em 2050 se nada for feito. "Temos de melhorar o diagnóstico e a cultura médicos para que se prescrevam menos e melhores antibióticos", diz o especialista português Carlos Palos, um dos mais cotados internacionalmente na área das infeções e da antibioterapia. No consumo de antibióticos, segundo os dados mais recentes, Portugal continua a meio da tabela dos 30 países europeus que reportam dados ao Centro Europeu para a Prevenção e Controlo de Doenças. Nos hospitais, o consumo de antibióticos há três anos que desce, mas regista um recurso excessivo aos de muito largo espectro e fim de linha, usados quando outros deixaram de funcionar porque as bactérias se tornaram multirresistentes.

Em 2018 comemoram-se 90 anos de antibióticos. O que é que o mundo ganhou com a descoberta da penicilina?

A utilização de penicilina revolucionou a história da humanidade. As doenças infecciosas passaram a ser tratadas, o que não acontecia antes. Milhões de vidas foram salvas desde então.

No seu discurso de aceitação do Nobel da Medicina, em 1945, Alexander Fleming, que descobriu a penicilina, alertou logo para o problema da resistência das bactérias a esse primeiro antibiótico. Não foi ouvido?

Foi parcialmente. Os antibióticos continuaram a poder ser obtidos de forma livre pelos utilizadores. Ainda hoje, nalgumas partes do mundo, e também em animais, são usados antibióticos sem supervisão.

A Organização Mundial da Saúde já avisou que em 2050 os problemas de saúde relacionados com a resistência a antibióticos matarão mais do que o cancro. Não é um cenário demasiado alarmista?

É um cenário infelizmente plausível, baseado em estudos de tendência. As bactérias estão a ganhar a batalha contra os antibióticos.

Há dados de quantas pessoas morrem no mundo por não conseguirem debelar uma infeção causada por uma bactéria? A Comissão Europeia estima que cerca de 25 mil pessoas morrem todos os anos na União Europeia por resistência antimicrobiana...

São dados estimados, que resultam da qualidade dos registos, e é difícil fazer correlações diretas .

Qual é hoje a principal causa da resistência bacteriana aos antibióticos? O uso/abuso dos antibióticos é mesmo a principal causa?

As bactérias vivem connosco. Cada vez que tomamos um antibiótico este seleciona as resistentes. É um efeito colateral do tratamento. Não podemos falar de uma causa principal e todos somos responsáveis.

Os médicos não têm uma percentagem elevada de responsabilidade no problema? Receitam antibióticos a mais?

Os estudos mostram que efetivamente existe uma elevada percentagem de antibióticos que não seriam necessários. Temos de melhorar o diagnóstico e a cultura médicos para que se prescrevam menos e melhores antibióticos.

O uso de antibióticos na agropecuária e na aquacultura é uma parcela do problema? Se sim, qual é a alternativa?

Os antibióticos têm sido usados como estimuladores do crescimento e para proteger os animais das infeções causadas por bactérias. Isso causa seleção de bactérias resistentes, tal como nos humanos. A solução é melhorar as condições onde são criados.

Um dos problemas, segundo os peritos, tem também que ver com a utilização indevida generalizada dos antibióticos nos países em desenvolvimento, como é o caso da Índia. De que forma se pode lidar com isso e o que é que a OMS está a fazer?

Existe uma aliança mundial, liderada pela OMS, no âmbito do conceito de Saúde Única (One Health) a que os vários Estados estão a aderir.

Porque é tão difícil criar novos antibióticos para continuar a combater os agentes patogénicos que ficaram resistentes à geração anterior de antibióticos?

Pelos custos associados ao desenvolvimento de fármacos que vão ficar em reserva, apenas para situações muito específicas, o que significa um retorno financeiro baixo e demorado. O financiamento deve ser por isso resultante de alianças entre organismos públicos, de investigação e indústria.

Como é que isso se reflete nas infeções hospitalares?

Os hospitais são locais onde a probabilidade de encontrarmos bactérias resistentes é elevada. Elas estão nos próprios doentes e no ambiente. Colonizam (isto é, não causam doença) os doentes, mas podem causar infeções.

Porque diz que vivemos num mundo de bactérias?

As bactérias vivem no planeta desde há milhões de anos, antes da humanidade. Nós somos bactérias.

Estão a ser desenvolvidas investigações para se encontrar uma nova geração de antibióticos. Qual é o ponto de situação? Em que é que consistem?

Há novos antibióticos em desenvolvimento. Mas devem ser reservados para situações muito especiais. Cada novo antibiótico gera novas resistências.

O que resultou do Congresso internacional Resistência aos Antibióticos e Infeções Associadas aos Cuidados de Saúde?

O Congresso alertou e sensibilizou para velhos desafios com algumas novas soluções. Constituiu um momento de reflexão e partilha nacional e internacional.

Quais as principais conclusões a que se chegou?

Existe necessidade de melhoria de condições, em termos de recursos humanos e estruturais, além de investimento na área, seja a nível local seja a nível de estruturas regionais e nacionais.

Neste momento, enquanto coordenador do Programa de Prevenção e Controlo de Infeções e de Resistência aos Antimicrobianos, o que mais o preocupa?

A necessidade de controlar a crescente tendência de algumas bactérias associadas à utilização indevida de antibióticos, seja nos humanos seja nos animais e no ambiente.

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