"As quotas são o preço que pagamos para que as nossas filhas não tenham de o pagar"
Em dezembro de 1977, a ONU decretou o Dia da Mulher. Em 1976, a Constituição Portuguesa consignou a igualdade na lei
Em 2017, 11 anos depois das quotas na política, o governo fez avançar as quotas nas administrações das empresas. Há quem ache que isso diminui as mulheres e quem lembre que ao ritmo atual levará quase dois séculos para que se chegue à igualdade no mercado de trabalho.
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As mulheres merecem ganhar pior porque são mais pequenas, mais fracas e menos inteligentes. A frase, de um eurodeputado polaco, foi repetida em tom de escândalo pelo mundo fora. Certo: é uma frase escandalosa. Pelo menos para quem acredite que mulheres e homens valem o mesmo - que é o que as constituições dos países civilizados estatuem e o que, acredita-se, as pessoas civilizadas defendem. Mas, se assim é, porque é que, mesmo nos países ditos civilizados como Portugal é suposto ser, as mulheres ganham genericamente quase 25% menos do que os homens - e ganham menos mesmo quando têm a mesma idade e formação e experiência - e estão sub-representadas nos cargos de poder? Porquê, se as mulheres estão em maioria nas universidades (são 60% em Portugal), se há mais doutoradas do que doutorados, se em termos de formação académica dão cartas? O que é que se passa? O que é que falha?
Eles são educados para o espaço público, elas para o privado. Elas são oneradas, como por decreto divino, com o cuidado dos filhos e o trabalho doméstico. Uma carga que justifica em grande parte a diferença salarial, como concluiu um estudo recente de uma economista dinamarquesa: as mulheres com filhos têm mesmo menor produtividade, algo que não se passa, pelo contrário, com os homens com filhos. E as mulheres sem filhos, cuja produtividade não é inferior à dos homens, são prejudicadas pelo preconceito contra as mulheres.
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Por outro lado, as expectativas que se projetam nas crianças desde muito cedo, desde os brinquedos que lhes oferecem às atitudes que se estimulam e se castigam, e continuam a projetar-se nas pessoas ao longo da vida, moldam sonhos e ambições. Numa famosa palestra sobre desigualdade, a única mulher administradora do Facebook, Sheryl Sandberg, conta como ao receber a delegação de uma empresa, composta por homens e mulheres, eles se sentaram na mesa principal e elas escolheram cadeiras na retaguarda. "Temos de nos sentar à mesa", concluiu Sandberg, que tem 47 anos e foi eleita para o conselho de administração do FB em 2012. "É só assim que chegamos lá."
"Homens têm quotas não escritas"
Assunção Cristas, 42 anos, presidente do CDS/PP desde 2016, suspira: "Historicamente, as mulheres foram-se habituando a um papel de segunda linha, de recato e contenção. Porque a sociedade é organizada há muitos séculos por uma perspetiva masculina. A esse propósito, dou sempre o exemplo das minhas alunas, que falavam menos do que os alunos e quando eu perguntava porquê diziam: "Eles gostam tanto de falar e de se ouvir." Dá uma gargalhada. "Se lei já estabelece a igualdade? Sim. Diz imensas coisas. Mas não chega. Isto leva muito tempo a mudar." Frisando que uma sociedade equilibrada tem mulheres em todas as áreas, Cristas vê uma mistura de fatores na exclusão. "As mulheres não são chamadas, não são escolhidas, e também se autoexcluem." Defensora, contra a maioria do seu partido, das quotas, quer na política quer nas administrações das empresas cotadas, explica porquê: "Os homens são escolhidos por serem homens, por quotas não escritas, não assumidas. Às vezes é puro desconhecimento - porque é hábito, porque há uma replicação. É um modelo que se replica porque os contextos sociais repetem modelos."
A lei das quotas de género, contra a qual o CDS votou, é de 2006. No ano seguinte, Paulo Portas reparou nela num programa de TV (um dos Prós e Contras sobre o referendo do aborto, em que defendia o não) e ligou-lhe para a convidar a entrar no CDS. Nove anos depois, na saída de Portas, o partido elegeu-a como primeira presidente. Teria sucedido sem a lei? "Muito provavelmente o facto de Paulo Portas ter reparado em mim, de ter entrado no CDS e chegado à liderança faz parte dos resultados da lei de 2006. Havia poucas mulheres no CDS; reparou em mim por ser mulher. Aliás houve uma reunião do partido em que se regozijou por termos uma percentagem maior de mulheres nas listas do que a obrigatória por lei e disse-lhe que só se estava a referir à percentagem, a contabilizá-la, porque a lei existia. Temos um grupo quase paritário e essa transformação, estou convicta, não teria acontecido se não fosse a lei. Embora continue a haver muita autoexclusão das mulheres na política. Há muito por fazer."
Porquê tanta autoexclusão? A socióloga Virgínia Ferreira, 63 anos, da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, investigadora do Centro de Estudos Sociais e na presidência da Associação Portuguesa de Estudos sobre as Mulheres, cita a também socióloga Rosabeth Moss Kanter, americana, professora em Harvard: "Ela fala da mulher token, as mulheres que são minoritárias numa função ou grupo, e que estão muito expostas, como se estivessem numa vitrine. Funda-se aí a ideia de que é preciso atingir um limiar crítico, um número mínimo de mulheres para que as coisas mudem." Kanter descreve o tokenismo como uma espécie de estratégia das organizações para fingir que são inclusivas, recrutando um pequeno número de pessoas de grupos minoritários ou discriminados para refutar a ideia de discriminação. Funcionando como uma espécie de álibi, as pessoas token estão num ambiente hostil, em que são um corpo estranho. Sandberg - outra vez ela - conta mais um episódio ilustrativo: um dia, foi a uma reunião numa empresa e no intervalo para o café perguntou onde era a casa de banho feminina. O anfitrião, que era homem, não sabia. Espantada, perguntou se a empresa tinha mudado de instalações há pouco tempo - não, responderam, estavam ali há anos. "Será possível que eu fosse a primeira mulher a ser recebida naquela empresa?", questiona Sandberg. "Ou nenhuma tinha tido de fazer chichi?"
Virgínia Ferreira sorri. "Porque é que as miúdas começam os estudos de Engenharia e desistem? Aconteceu com a filha de uma amiga minha, não aguentava o ambiente, predominantemente masculino. Quando se fala das opções das mulheres em relação às áreas de estudo e se pergunta por que não escolhem determinadas áreas... Elas fazem opções por realismo. E mesmo a questão dos salários... As mulheres encontram poucas oportunidades, ajustam as suas expectativas para baixo." Mas é verdade também, reconhece a socióloga, que mesmo quando chegam a quadros superiores elas "são menos ambiciosas na forma como negoceiam. Pedem menos dinheiro, valorizam mais outras regalias, como ter mais tempo, por exemplo. Essa atitude nota-se logo nas estudantes de Gestão, que fazem uma autoprojeção para posições menos ambiciosas do que os colegas. As mulheres tendem a integrar tudo o que há contra elas". Esse é também um dos motivos pelos quais, defensora da imposição de quotas numa versão mais ambiciosa do que a da proposta do governo - considera que deveriam aplicar-se, como sucedeu em Espanha e França, às administrações de empresas acima de uma certa dimensão e não apenas às cotadas em bolsa -, Virgínia Ferreira propõe que se fale "de quotas máximas para os homens em vez de quotas mínimas para as mulheres. Ajuda a perceber o que está realmente em causa".
Eles incentivados, elas questionadas
Perspetivas. Ana Paula Marques, 43 anos, economista, única mulher administradora executiva da NOS, desde 2013 (são seis os membros, o que significa que ela constitui 17% da comissão executiva), cita também Sandberg: "Aos homens costuma-se dizer que a carreira é como uma maratona, que é importante perseverar, e que vão conseguir. Às mulheres pergunta-se se é mesmo aquilo que querem, se não é mais importante a família. A ambição e a liderança são temas com conotações positivas para os homens mas não para as mulheres." Eles são reforçados, incentivados; elas são questionadas, levadas a duvidar, até a sentir culpa. Normal pois que tenham leituras diversas da desigualdade: "Elas culpam a cultura da empresa, eles acham que são elas que não querem." As duas perspetivas completam-se, conclui a administradora da NOS: "Aquilo que vemos tem muito que ver com questões culturais. A forma como somos educados influencia não só a forma como as pessoas são escolhidas, e quem é escolhido, mas também o que as próprias mulheres querem. Há um papel muito importante da escola, e o da família é gigante. Muitas vezes perguntam-me o que teve influência, do meu ponto de vista, para chegar a este lugar. E acho que ter havido uma educação muito semelhante à minha e do meu irmão, quer no tipo de exigência quer nos desafios apresentados aos dois, de nos ter sido representado que a carreira é uma coisa muito importante, foi fundamental." Outra coisa muito importante, constata, são as empresas que se escolhem. "Umas têm culturas mais meritocráticas, e outras mais tradicionais. A primeira em que trabalhei era uma multinacional americana, e o tema igualdade de género nunca me surgiu na mente porque senti sempre igualdade de oportunidades, era algo natural." Mas, admite, há muitas organizações em que não se reconhece o problema e, portanto, nem se afere a evolução. "Têm de ser tomadas medidas do ponto de vista futuro para trazer este tema para a ordem do dia. Podemos forçar através das quotas o aumento do número de mulheres nas comissões executivas. Na nossa empresa nem teremos grande problema com isso, já temos 30% de mulheres nas direções. Mas o desafio é mais ambicioso do que esse. É o de ter mais mulheres em todos os níveis da empresa, garantir condições de equidade."
Incomodaria a executiva da NOS chegar ao lugar depois de instituídas as quotas? Ana Paula Marques hesita. "Incomodar-me-ia ter sido escolhida para um lugar sem ser pelo meu mérito. Acho que é importante que as pessoas não fiquem com a autoconfiança afetada."
"Ausência de mulheres não é natural"
Maria João Carioca, 45 anos, economista, que foi a primeira mulher a presidir a Bolsa de Lisboa e é desde dezembro a única no conselho de administração da CGD, já não tergiversa nesta matéria. "A minha opinião sobre as quotas em geral é o resultado de um processo de amadurecimento: tendo começado por ser contra, cheguei à conclusão de que é uma medida remedial que é positiva." O que a fez mudar de opinião? "Ouvir muita gente e prestar atenção ao tema. A discussão começou há 15, 20 anos, quando trabalhava numa consultora americana que dava muita importância a estas questões. Fui acompanhando a percentagem de mulheres nas posições de gestão enquanto via a evolução do número de mulheres nos doutoramentos. O espírito geral é que vai acontecer "naturalmente". Mas o naturalmente leva demasiado tempo. E as coisas de que não temos consciência e que achamos "naturais" são as que mais se perpetuam."
Precisamente, essa ideia de naturalidade não implica que quem a defende acha "natural" o domínio dos homens? A economista ri-se. "É claro que a ausência de mulheres nas posições de liderança não tem nada de "natural". Onde o mérito prepondera, na academia, elas já estão em maioria. A minha leitura disto é contrapor aos conceitos de "natural" e "artificial" o histórico. Quando se diz que as quotas são artificiais, que diminuem as mulheres, se não é melhor esperar, respondo que é óbvio que a sombra dessa perspetiva diminuidora está lá. Mas as quotas são um preço que estou disposta a pagar para que as minhas filhas não tenham de o pagar. E têm o mérito de ser tão vincadas, tão marcadas, que obrigam a discutir."
Impossível não perguntar à única mulher nomeada para a administração do banco público se não haveria mais mulheres com capacidade e mérito para ocupar as administrações dos bancos. "Acho que não há assim tão poucas mulheres com capacidade e mérito, e disponíveis, no mundo financeiro e empresarial. Não é isso que justifica a sua ausência nas administrações dos bancos. Muitas vezes o processo de escolha das pessoas tem que ver com outras coisas: equipas que se foram criando, visibilidade, estar no radar."
Estar sentada à mesa, como diz Sandberg. Mas para alguém se sentar a uma mesa é preciso que as cadeiras não estejam todas ocupadas. E os homens, como um dia observou Leonor Beleza, tendem, neste caso, a não se levantar para dar o lugar.