Moção de censura do Chega ao Governo chumbada num plenário em que Montenegro não convenceu a oposição
Ataques pessoais, críticas à lei dos solos, passado social-democrata entre algumas figuras do Chega, incluindo André Ventura, e a certeza por parte dos partidos de que o debate em torno da moção de censura ao Governo só cumpriu o objetivo de permitir que a bancada mais à direita do hemiciclo desviasse a atenção dos casos que a assolam. Seria este o resumo da sessão plenária desta sexta-feira, que ficou marcada pelo chumbo quase unânime da moção de censura, mas os partidos da oposição também não ficaram totalmente esclarecidos com as explicações do primeiro-ministro sobre a empresa familiar de que foi proprietário e que foi alvo de críticas por eventuais conflitos de interesse.
André Ventura, como proponente da moção de censura, justificou a apresentação daquele instrumento regimental ao Governo com aquilo que considera ser a "incapacidade, falta de transparência, obstinação de um primeiro-ministro em não responder à única entidade a que tem que dar resposta: o povo português."
O líder do Chega referia-se ao objeto da moção, que foi a venda das quotas de uma empresa imobiliária de Luís Montenegro à mulher, que levantou dúvidas aos partidos sobre potenciais conflitos de interesse, com o escrutínio a este negócio a ser a maior arma de arremesso contra o Governo nesta sessão plenária.
Ainda assim, numa resposta à coordenadora do BE, Mariana Mortágua, o primeiro-ministro argumentou que "a relação direta de uma empresa que tenha no seu objeto atividade imobiliária, ou até de uma empresa exclusivamente imobiliária, com a lei dos solos, é a mesma de qualquer um dos senhores deputados individualmente considerados".
Antes desse momento, Luís Montenegro tinha classificado a moção de censura um ataque pessoal.
"É sobre a minha vida profissional e patrimonial. É sobre o meu caráter e a minha honra. Há muitos anos que sou alvo de ataques estranhos e violentos que nunca percebi se eram originados por maldade pura, por inveja ou pelo susto que alguém pudesse sentir por me apresentar tão livre e independente", sustentou antes de apresentar dados pormenorizados sobre a empresa – Spinumviva.
"Na minha vida até hoje declarei tudo o que tinha a declarar. Paguei tudo o que tinha a pagar. Esclareci tudo o que tinha a esclarecer", assegurou, antes de pedir que fosse distribuído pelo Parlamento os dados relativos aos seus rendimentos familiares dos últimos 15 anos.
"Sabem o meu património e a sua origem. Sabem os meus rendimentos. Sabem onde moro. A partir de hoje até sabem qual é a minha estratégia pessoal e familiar. A partir de hoje, só respondo a quem for tão transparente como eu, ou seja, que seja capaz de fazer tudo aquilo que eu fiz", rematou, pedindo que fosse respeitada a sua dignidade.
De qualquer modo, mesmo com a explicação inicial do primeiro-ministro, André Ventura aludiu a outros episódios, sem os explicar, referindo semelhanças entre este Governo e o anterior do PS, referindo "o mesmo espírito de promiscuidade que marcou a República nas últimas décadas".
"Chegámos aqui porque este Governo se tornou uma agência de empregos", acusou, falando em nepotismo e acrescentando que "este Governo mais parece uma agência da Remax do que uma agência que Governa Portugal".
Debate sobre o Chega
Apesar destas críticas, todos os partidos (menos o proponente, claro) foram unânimes em considerar que a moção de censura do Chega só tinha o objetivo de desviar as atenções dos casos que o assolam.
Na sua primeira intervenção no plenário, o líder da IL, Rui Rocha, fez mesmo questão de lembrar os oito casos mais recentes, incluindo o de Nuno Pardal, o "deputado municipal do Chega em Lisboa, acusado de prostituição de menores. Um rapaz de 15 anos".
Já o líder do PS, Pedro Nuno Santos, começou a sua intervenção com a garantia de que a bancada socialista votaria contra a moção de censura, uma vez que não contribuem "para uma manobra de diversão", mas deixou também a certeza de que, se Luís Montenegro apresentasse uma moção de confiança, o voto do PS seria no mesmo sentido.
Sem se deter muito na bancada do Chega, Pedro Nuno santos optou por se virar para o caso do primeiro-ministro, num tom prescritivo: "Tem de ser transparente."
"A melhor forma de matar o tema é dar todos os esclarecimentos, tal como fez sobre a sua casa", afirmou Pedro Nuno Santos, destacando que Luís Montenegro "não quis nomear os seus clientes".
"Não pode haver nenhuma dúvida sobre a transparência do senhor primeiro-ministro. Sabemos que o grupo Cofina [atualmente, MediaLivre] foi um dos seus clientes", rematou o deputado socialista.
"Nós não temos razões para suspeitar do senhor primeiro-ministro, mas é preciso prestar esclarecimentos para que não haja dúvidas sobre clientes mistério. Não é lançar suspeitas, é garantir a transparência", justificou.
Também Mariana Mortágua não ficou satisfeita com as explicações do primeiro-ministro, mas começou por esmiuçar a estratégia do Chega, pedindo a André Ventura que olhasse nos olhos dos portugueses e pedisse desculpa pelo "oportunismo" desta iniciativa.
Mariana Mortágua acusou ainda André Ventura de querer "estar no Governo ao lado de Luís Montenegro".
"Mas, como não conseguiu, apresentou moções de censura", acusou.
Mariana Mortágua, à semelhança dos outros partidos à esquerda do hemiciclo, começou por atacar a lei dos solos e a forma como pode afetar a habitação e o setor imobiliário.
"Este não é só um problema ético, o conflito é político", declarou, acrescentando que "o interesse de quem não consegue pagar a renda hoje é diferente do interesse de quem ganha com as rendas em máximos".
"A habitação e a especulação são, de facto, interesses em conflito. O interesse do país é que haja rendas que se possam pagar, é a recuperação dos imóveis do Estado vazios, é a utilização do património devoluto."
Com esta ideia, a líder bloquista voltou ao tema predominante no plenário: "Esta moção de censura não é sobre o Governo, nem sobre a vida das pessoas comuns, e muito menos sobre a casa delas. Este debate é sobre o Chega."
Evocando os episódios de há uma semana, Mariana Mortágua considerou que "os insultos não são apenas má educação, os métodos violentos não são excessos, as bizarrias não são estupidez. Nada é por acaso. Tudo na atuação do Chega é calculado e ensaiado."
Também o porta-voz do Livre, Rui Tavares, destacou um "problema de corrosão" no Governo, em alusão à lei dos solos, mas, antes de apontar o dedo a Luís Montenegro, cuja empresa familiar, esclareceu, suscitava dúvidas, deixou duras críticas ao Chega.
Rui Tavares falou num "supremo descaramento" da bancada mais à direita, mas, pelo mesmo motivo, garantiu que esta moção não levantava dúvidas ao Livre, por não passar de uma manobra de diversão face aos casos que têm surgido em deputados do Chega.
"Um partido que todos os dias, pinga a pinga, nos trazia escândalos, uns após os outros" e que vem "agora agarrar-se como tábua de salvação à moção de censura", acusou Rui Tavares.
"Aliás, de certa forma é um alívio porque ninguém estava a conseguir acompanhar" as notícias em torno de várias figuras do partido, continuou o deputado do Livre, referindo os casos, de "deputado municipal a deputado da Assembleia da República", que vão "desde a notícia das malas [Miguel Arruda, que agora é deputado não inscrito] até às de prostituição com menores [com Nuno Pardal]".
"Nunca o ouvi fazer aquilo que exige aos outros". lançou a André Ventura.
O deputado do PCP António Filipe acompanhou as bancadas da esquerda na reflexão tanto contra o Chega como contra o Governo, por motivos semelhantes. "Esta moção de censura é apresentada pelo partido mais censurável desta Assembleia”, afirmou, mas com uma ressalva: "Não que o Governo não mereça ser censurado."
António Filipe acusou o Chega de apresentar "esta moção para afastar as atenções da censura pública que recai sobre si próprio, até porque o partido censurante não é oposição ao Governo".
Para sustentar a acusação, o deputado comunista lembrou que, "nas 33 votações que já ocorreram sobre propostas de lei deste Governo, o Chega só votou contra quatro".
"Incluindo o Orçamento do Estado, em que só votou contra porque o PS lhe fez o favor de se abster permitindo-lhe continuar a fazer oposição da boca para fora."
Por fim, a olhar para Luís Montenegro, António Filipe sublinhou: "Dito isto, o senhor deve explicações ao país. Não podem subsistir dúvidas sobre a idoneidade do cargo de primeiro-ministro."
Como resumo, António Filipe garantiu que "o PCP não acompanha esta moção, vinda de quem vem". No final, o partido acabou por ser o único a se abster.
Também para a deputada única do PAN, Inês de Sousa Real, a iniciativa do Chega como "uma moção por conveniência".
Na esfera do Governo, o deputado do CDS Paulo Núncio começou por afirmar que "não há um português que esteja a assistir a este debate que não perceba o que se está a passar".
“O deputado André Ventura vem a este debate com o dedo espetado quando devia vir com uma corda ao pescoço, como Egas Moniz, para se retratar perante os portugueses e para pedir desculpa por tudo o que de grave tem acontecido no Chega nos últimos tempos."
"É muito descaramento que o partido que propõe esta moção de censura seja o mesmo que precisamente merecia uma moção de censura contra si próprio pela irregularidades cometidas e pelas graves acusações conhecidas”, apontou, antes de deixar um aviso: “A demagogia vira-se sempre contra os demagogos.”
No final do debate, só Chega e o deputado não inscrito, Miguel Arruda, votaram a favor. PCP optou pela abstenção, depois de demonstrar desagrado pela ação política do Governo. Todos os outros partidos votaram contra a moção de censura.