PS, Chega, Bloco de Esquerda, PCP, Livre e PAN votaram contra a moção de confiança.
PS, Chega, Bloco de Esquerda, PCP, Livre e PAN votaram contra a moção de confiança.Foto: Leonardo Negrão

Morte anunciada do Governo teve algum ‘suspense’ mas nenhuma confiança

Debate da moção de confiança foi marcado por apelos da AD e do PS. Montenegro disse que esclareceria dúvidas, Pedro Nuno Santos instou Governo a não impor condições, mas votação foi como se previa.
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A morte anunciada do XXIV Governo Constitucional confirmou-se ao final da tarde desta terça-feira, três horas e meia após o início do debate da moção de confiança que o PS e o Chega, os dois maiores partidos da Oposição, anunciaram previamente que iriam chumbar. Assim foi, com os deputados do PSD, CDS e Iniciativa Liberal a votarem a favor, enquanto os restantes optaram pelo chumbo, que Luís Montenegro ouviu sem alterar a expressão impávida por si mantida durante toda a sessão parlamentar.

O debate e votação da moção de confiança, com a qual o primeiro-ministro disse querer confirmar “se havia ou não confiança institucional no Governo” por parte do Parlamento, tinha todos os ingredientes para ser resumido como a crónica de uma morte anunciada. A deputada única do PAN, Inês de Sousa Real, utilizou a expressão, e os acontecimentos não tiveram o realismo mágico capaz de permitir um desfecho diferente. Apenas suspense, mas o tipo de suspense sem plot twist, patente numa suspensão dos trabalhos por uma hora, durante a qual não houve um entendimento que impedisse a mais que provável dissolução da Assembleia da República e convocação de Legislativas antecipadas que todos garantiram não pretender. O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, receberá os partidos nesta quarta-feira e reúne o Conselho de Estado na quinta-feira.

Quando a sessão se encaminhava para a votação final, de resultado claro, após Pedro Nuno Santos recusar todas as tentativas do PSD para suspender os trabalhos - o líder parlamentar social-democrata Hugo Soares inaugurou bem cedo as tentativas, com o requerimento para uma reunião à porta fechada entre o primeiro-ministro e o secretário-geral do PS, ao que o líder da Oposição disse que “os esclarecimentos que pedimos têm de ser dados em público” -, tendo o ministro dos Assuntos Parlamentares, Pedro Duarte, apresentado também a proposta de uma Comissão Parlamentar de Inquérito à Spinumviva em apenas 15 dias, o que voltou a não convencer os socialistas, com Pedro Nuno Santos a contrapor a solução de o Governo retirar a moção de confiança e aceitar uma Comissão Parlamentar de Inquérito sem condicionalismos, houve um golpe de teatro que poderia alterar o rumo dos acontecimentos. O líder parlamentar do CDS-PP, Paulo Núncio, apresentou um requerimento potestativo de interrupção de trabalhos, ganhando-se uma hora para negociações de última hora.

Pedro Nuno Santos esteve largos minutos ao telemóvel durante a suspensão dos trabalhos, mas não houve entendimento.
Pedro Nuno Santos esteve largos minutos ao telemóvel durante a suspensão dos trabalhos, mas não houve entendimento.Foto: Leonardo Negrão

A manobra apanhou o grupo socialista de surpresa, e os seus deputados foram os únicos a manterem-se no hemiciclo depois de o presidente da Assembleia da República, José Pedro Aguiar-Branco, interromper a sessão. Depois de ficar alguns minutos na primeira fila da bancada do PS, onde vários deputados se juntaram ao núcleo duro, formado pela líder parlamentar Alexandra Leitão, por Pedro Delgado Alves e Marina Gonçalves, o líder partidário foi cumprimentar alguns daqueles que estavam nas filas de trás. Até que atendeu uma chamada e ficou largos minutos a conversar ao telemóvel, afastando-se dos demais, sempre com a mão direita a tapar a boca, numa conversa à prova de leitores de lábios. No final, transmitiu o que lhe fora dito à líder parlamentar, e só depois saiu do hemiciclo.

Mas a derradeira tentativa não surtiu efeito, como seria avançado pelo ministro dos Assuntos Parlamentares, Pedro Duarte, que partilhou “desilusão e tristeza” por ver o principal partido da Oposição interessado em que Portugal “entre numa crise política”. O novo prazo para a realização e divulgação das conclusões da Comissão Parlamentar de Inquérito, que o governante disse poder alargar-se até ao final de maio, não convenceu o líder da Oposição. E levou Pedro Nuno Santos a dizer aos jornalistas, após a votação, que a atuação do Governo foi “vergonhosa” e que o primeiro-ministro se revelou “alguém sem estatuto e dimensão para governar o país”.

"Lume brando"

Gabriel García Márquez escreveu que Santiago Nasar se levantou às cinco e meia da manhã no dia em que o matariam. “Tinha sonhado que atravessava um bosque de grandes figueiras, onde caia uma chuva branda, e por um instante foi feliz no sono, mas ao acordar sentiu-se completamente salpicado de cagadas de pássaros”, lê-se no primeiro parágrafo de Crónica de uma Morte Anunciada, obra-prima do colombiano, Nobel da Literatura em 1982.

No dia em que o seu Governo iria morrer, com o anunciado chumbo da moção de confiança, não é certo que Luís Montenegro tenha acordado tão cedo, apesar do incómodo, por si confessado na véspera, da ausência de cortinados na residência oficial do primeiro-ministro, mas passou muito tempo a olhar para o infinito, com a vantagem de não haver árvores e aves nas imediações da bancada do Governo.

À sua frente, ou atrás, quando subiam no púlpito, eleitos de vários partidos apresentavam argumentos, que só lhe eram favoráveis quando vindos do PSD e do CDS, embora o líder da Iniciativa Liberal, Rui Rocha, tenha confirmado o voto favorável, contra o que disse ser “total falta de consciência de sentido de Estado e total irresponsabilidade” de grupos parlamentares guiados “pelas suas agendas egoístas”. Mais tarde, o partido afirmou que não integrará qualquer coligação pré-eleitoral nas próximas legislativas.

PS, Chega, Bloco de Esquerda, PCP, Livre e PAN votaram contra a moção de confiança.
Governo caiu. Há eleições em maio. Montenegro e Pedro Nuno trocam acusações

Logo na intervenção inicial, Luís Montenegro pressionara o PS com o exemplo do SPD alemão, que se vai coligar com os democratas-cristãos para travar a extrema-direita. “Veremos se os socialistas se aliam à extrema-direita para derrubar o Governo em Portugal”, disse, declarando-se “totalmente disponível para esclarecimentos adicionais” sobre a Spinumviva, aos deputados e, “se tal for necessário” à Procuradoria-Geral da República e à Entidade da Transparência. Mas o ataque a Pedro Nuno Santos, que “teve o descaramento de dizer que o primeiro-ministro exerceu as suas funções estando avençado por empresas”, levou-o a dizer que se o PS pretendesse escrutinar teria feito um requerimento com perguntas que queria ver esclarecidas, como fizeram o Chega e o Bloco de Esquerda. Para o primeiro-ministro, havia uma estratégia para desgastar o Executivo “em lume brando”.

Ainda antes da resposta de Pedro Nuno Santos, o primeiro-ministro ouviu, nos extremos do hemiciclo, quem defendia a dissolução. A coordenadora do Bloco de Esquerda, Mariana Mortágua, disse que Montenegro “não pode continuar a ser primeiro-ministro” após receber avenças estando em exclusividade de funções, pois o partido defende que a passagem de quotas da Spinumviva para a sua mulher não tem validade legal, enquanto o secretário-geral do PCP, Paulo Raimundo, disse que Montenegro deveria demitir-se em vez de fazer “a fuga para a frente” da moção de confiança, tendo o porta-voz do Livre, Rui Tavares, comparado desfavoravelmente Montenegro com o antecessor, António Costa. E o líder do Chega, André Ventura, sem esconder satisfação por se tratar de “provavelmente o último debate” com o primeiro-ministro Luís Montenegro , recordou o “não é não” da campanha para as Legislativas e do arranque da legislatura para acertar contas com o líder do PSD, dizendo-lhe que só não construiu “uma maioria histórica”, capaz de afastar a esquerda do poder, devido à “arrogância, altivez e incapacidade de negociar”.

Luís Montenegro, com todos os seus ministros, antes de entrar para a sala de sessões.
Luís Montenegro, com todos os seus ministros, antes de entrar para a sala de sessões.Foto: Leonardo Negrão

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