Entre comentários presidenciais, dissoluções parlamentares e debates sobre os limites da magistratura de influência, a figura do Presidente da República continua a suscitar polémica. Para Jorge Reis Novais, muitas dessas controvérsias assentam numa leitura errada da Constituição e numa tentativa de tratar Portugal como um sistema parlamentar. De Ramalho Eanes a Marcelo Rebelo de Sousa, o constitucionalista revisita quase cinquenta anos de evolução constitucional e, a poucas semanas da eleição de um novo chefe de Estado, explica por que razão o Presidente português “nunca foi, nem pode ser, uma figura meramente simbólica”. Porque, “se se chama todo o eleitorado a escolher um Presidente, não é seguramente para, a seguir, o eleito se remeter à quietude”. A partir da sua leitura dos trabalhos da Assembleia Constituinte, a questão dos poderes presidenciais foi pensada como um modelo fechado e rigidamente delimitado ou, pelo contrário, como um espaço aberto à evolução política e à prática constitucional ao longo do tempo? As duas coisas. No plano jurídico a Constituinte fez uma opção rígida quando adotou o quadro estrutural de um sistema semipresidencialista. A partir do momento em que consagrou a responsabilidade política do governo perante a Assembleia da República, combinando essa responsabilidade com a atribuição de poderes significativos a um Presidente da República com a legitimidade democrática conferida pela eleição direta, a Constituição portuguesa afastou-se claramente, tanto de um sistema parlamentar quanto de um sistema presidencial e esta sua opção pelo semipresidencialismo é impositiva, só podendo hoje ser alterada através de uma muito improvável revisão constitucional. Mas, simultaneamente, a forma como o nosso semipresidencialismo iria funcionar durante a vigência da Constituição estava em aberto, dependendo das práticas e do modelo de funcionamento que viessem a ser adotados pelos vários agentes políticos, designadamente os próprios presidentes. Por exemplo, quanto ao papel e funções do PR, a Constituição portuguesa é quase literalmente decalcada da Constituição francesa. Os dois países são semipresidencialistas e, no entanto, as práticas constitucionais que vieram a ser adotadas são muito diversas: em França temos um Presidente liderante, governativo. Já em Portugal temos um Presidente garante, regulador. É a Constituição que o impõe? Não, foi a prática e as circunstâncias que, pelo menos até agora, conformaram dessa forma os perfis dos dois presidentes, em França e em Portugal, e, desde logo, tal foi estabelecido nos primeiros tempos ou mandatos presidenciais, que são sempre determinantes para a evolução posterior. Em França o PR foi, desde o primeiro momento, o líder de uma maioria partidária, de um governo, primeiro de direita (com De Gaulle) e, já mais tarde, de esquerda (com Mitterrand). .Ao contrário da opinião vulgar, repetida acriticamente por comentadores e juristas, a revisão constitucional de 1982 constituiu até um reforço muito significativo do poder e do papel do PR no nosso sistema de governo.. Em Portugal não foi assim, simplesmente porque as circunstâncias foram diferentes nesses primeiros tempos. Ramalho Eanes foi candidato a presidente com o apoio da direita e da esquerda, não podendo, por isso, afirmar-se depois como líder de um bloco contra o outro como acontecia com plena aceitação e normalidade em França. Por outro lado, Eanes era chefe do estado-maior das forças armadas, o que constituía mais uma razão para atuar de forma não partidarizada. E assim se começou a forjar na prática, e não porque tivesse sido imposto pela Constituição, um modelo de semipresidencialismo com um PR ativo, mas não governativo, suprapartidário, equidistante das diferentes forças políticas, modelo esse que depois foi seguido e proclamado por todos os presidentes portugueses seguintes. A revisão constitucional de 1982 só veio dar continuidade à tendência que se desenhava desde 1976. Mas a Revisão Constitucional de 1982 não representou uma redução substancial dos poderes do PR? Partilha essa leitura com alguns pares? Não partilho dessa leitura e considero-a mesmo errónea. Ao contrário da opinião vulgar, repetida acriticamente por comentadores e juristas, a revisão constitucional de 1982 constituiu até um reforço muito significativo do poder e do papel do PR no nosso sistema de governo. Como Eanes se tinha, entretanto, incompatibilizado com as lideranças dos dois grandes partidos, PS e PPD, a revisão foi de facto na altura perspetivada com essa outra intenção, a de reduzir os poderes presidenciais, mas a ignorância do direito constitucional tem dessas coisas: os dois grandes partidos entraram na revisão para reduzir o papel do Presidente (e o próprio Eanes se queixava disso mesmo) e chegaram ao resultado inverso, o reforço do papel presidencial. Como foi isso possível? Por uma razão muito simples. O primeiro mandato de Eanes ficou marcado por um ativismo presidencial significativo na área executiva, o que incluiu a demissão/exoneração do Primeiro-Ministro Soares, contra a vontade deste, e a nomeação dos chamados “governos de iniciativa presidencial”. Por isso os partidos se orientaram na revisão constitucional para essa área, restringindo sobretudo o poder de demissão do PM por parte do PR. Mas, na mesma revisão, para contrabalançar o que erradamente pensavam ser uma diminuição grave do papel do Presidente, aumentaram-lhe, de forma muito pronunciada, o poder de dissolver a AR, eliminando todas as limitações significativas de exercício desse poder que até aí existiam. Ora, o poder de dissolução é o poder mais importante em semipresidencialismo. Logo, ampliando-o, reforçou-se, e bastante, o poder geral do PR e a sua posição relativa no sistema político, como, aliás, contra todas as expectativas e mesmo as suas, o próprio Eanes comprovou logo a seguir à revisão quando, contra a opinião da maioria absoluta parlamentar em funções e contra a opinião do Conselho de Estado, Eanes dissolveu a AR em 1983, dando origem a uma nova maioria, a do governo de bloco central. Antes da revisão não o poderia ter feito, desde logo porque a opinião contrária do órgão consultivo era vinculativa para o Presidente. Ainda assim, a eliminação da responsabilidade política do Governo perante o Presidente na revisão de 1982 não terá ainda assim significado um enfraquecimento excessivo da possibilidade de intervenção presidencial na área executiva? Tratou-se de um aparente enfraquecimento nesse domínio e longe de ser excessivo, por duas razões: em primeiro lugar, cabe sempre ao Presidente, e só a ele, determinar quando estão preenchidas as condições constitucionais para demitir o governo e, em segundo lugar e mais importante, num sistema em que o governo responde politicamente perante o parlamento, o poder de demissão do PM acaba por ser secundário e por isso nunca é utilizado. É que, se ocorrer, a seguir será necessário nomear um novo governo, que terá de passar no parlamento, pelo que, só por si, com o exercício do poder de demissão o PR não poderá determinar nada; no fim, tudo dependerá da vontade da AR. O mesmo acontece com o poder de nomeação do governo, ou seja, a última palavra é da AR, como o próprio Eanes já havia comprovado pela negativa, antes da revisão de 1982, com o rotundo falhanço dos governos de iniciativa presidencial. Ao contrário, o poder de dissolução da AR é verdadeiramente o poder decisivo do PR, já que, mesmo quando não o exerce, a simples possibilidade de o poder fazer condiciona a atuação de todos os agentes políticos, pois uma dissolução da AR e convocação de novas eleições pode alterar significativamente, como tem sempre acontecido, a composição parlamentar e, consequentemente, o panorama político. Nas mãos do PR é, como se costuma dizer, uma bomba atómica, com a diferença que esta não é só dissuasora, é mesmo para ser exercida e tem sido exercida produzindo sempre consequências de relevo na vida política. Mais, é à sombra da existência do poder de dissolução que no nosso sistema se desenvolveu, desde Eanes, um elemento decisivo e nuclear do nosso sistema e que é o da afirmação de uma prerrogativa presidencial de decisão última sobre a viabilidade dos governos em funções ou que lhe são propostos pelas maiorias parlamentares. É através dela que se mantém uma capacidade real de intervenção presidencial na área executiva. E a lista das “vítimas” da invocação dessa prerrogativa presidencial, por todos os presidentes à exceção de Cavaco Silva, é significativa: Mário Soares, por mais de uma vez (1978, 1985), Vítor Crespo (1983), Vítor Constâncio (1987), Santana Lopes (2004), Mário Centeno (2023). O poder de dissolução deve ser interpretado de forma quase excecional, como defendem alguns constitucionalistas, ou entende que é um instrumento normal de desbloqueio político num regime semipresidencial? Na medida em que implica necessariamente a realização de novas eleições, o poder de dissolução é, por natureza, de exercício excecional. De resto, os Presidentes são obrigados a exercê-lo de forma parcimoniosa porque o resultado dessas eleições pode até constituir uma derrota da decisão de dissolver, desqualificando, reflexamente, o resto do próprio mandato presidencial. O que foi errado e até irresponsável foi a prática adotada pelo Presidente Marcelo de anunciar no início de uma legislatura as circunstâncias em que dissolveria necessariamente o parlamento ou de pura e simplesmente dissolver em caso de chumbo do orçamento ou até de rejeitar liminarmente, sem qualquer reflexão, a possibilidade de nomeação de um novo governo dentro da mesma maioria política em caso de demissão do PM. Mas, friso, sendo errada, esta forma de exercer o poder de dissolução não é de modo algum inconstitucional: um Presidente eleito diretamente tem toda a margem para interpretar, como entender, o exercício do poder de dissolução que, entre nós, é um poder amplíssimo, tal como resultou da revisão de 1982. .É à sombra da existência do poder de dissolução que no nosso sistema se desenvolveu, desde Eanes, um elemento decisivo e nuclear do nosso sistema e que é o da afirmação de uma prerrogativa presidencial de decisão última sobre a viabilidade dos governos em funções ou que lhe são propostos pelas maiorias parlamentares.. Ainda a propósito da intervenção presidencial na área executiva, alguns constitucionalistas - Vital Moreira, por exemplo -, sustentam que o PR não tem legitimidade para avaliar publicamente o desempenho do Governo ou dos ministros. Considera que essa leitura ignora a legitimidade democrática direta do Presidente, eleito por maioria absoluta dos cidadãos? Precisamente. É que a legitimidade o Presidente tem sempre. Um PR eleito diretamente pelos cidadãos, e necessariamente apoiado por uma maioria absoluta dos eleitores, tem sempre toda a legitimidade para se pronunciar, e publicamente, sobre o que considerar pertinente. Podemos discordar, podemos achar que não o deveria ter feito, sobretudo naquelas situações em que isso revele uma duplicidade de comportamento do PR em função da cor partidária do governo em funções, mas nunca se pode contestar a legitimidade democrática do PR para exercer os seus poderes, mesmo os informais, como lhe aprouver. A opinião contrária confunde o nosso Presidente com os presidentes cerimoniais, simbólicos, típicos dos sistemas parlamentares. Ora, o nosso sistema não é parlamentar. Um sistema em que todos os Presidentes, com exceção de Cavaco Silva, dissolveram o parlamento contra a opinião e contra a vontade de uma maioria parlamentar absoluta não é um sistema parlamentar, nunca pode ser qualificado e entendido como se fosse. É uma outra modalidade de sistema de governo alternativa tanto aos sistemas presidenciais quanto aos sistemas parlamentares. Historicamente, no plano internacional e também nacional, essa outra alternativa foi indiscutivelmente consagrada sob a designação de semipresidencialismo. Não há definitivamente lugar para contestar essa evidência, tal como não há para contestar a legitimidade do PR para exercer os seus poderes como considerar adequado, desde que, obviamente, não contrarie as normas constitucionais. A eleição direta do Presidente justifica uma magistratura de influência mais ativa, mesmo que isso implique comentários políticos frequentes ou pressão pública sobre o Governo? Claro que pode e essa magistratura por vezes é mesmo necessária, sobretudo quando o governo é parlamentarmente sustentado por uma maioria absoluta e, de resto, todos os estudos de opinião quanto à sensibilidade dos cidadãos o confirmam: os portugueses defendem uma presença ativa do PR na vida política. O que é natural, pois se se chama todo o eleitorado a escolher um Presidente, se durante meses todas as atenções se concentram na eleição presidencial, não é seguramente para, a seguir, o Presidente eleito se remeter à quietude de alguém que faz uns discursos simpáticos nos dias de festa e de vez em quando envia uma lei para o Tribunal Constitucional. Isso seria não só defraudar a vontade do eleitorado como distorcer a natureza do nosso sistema constitucional de governo. A nossa matriz de semipresidencialismo não é a de um Presidente cerimonial, simbólico, de tipo austríaco ou irlandês; é a de um Presidente politicamente ativo, garante, regulador, com a legitimidade para exercer na plenitude todos os poderes que a Constituição lhe atribui, incluindo o poder da palavra pública. .Um sistema em que todos os Presidentes, com exceção de Cavaco Silva, dissolveram o parlamento contra a opinião e contra a vontade de uma maioria parlamentar absoluta não é um sistema parlamentar, nunca pode ser qualificado e entendido como se fosse.. Quando um Presidente comenta leis no momento da promulgação pode falar-se em abuso de poder? Já agora, concorda com esse registo presidencial? Abuso de poder, nunca, tal como nos outros exemplos; como é que se pode pretender limitar o direito à palavra de um Presidente eleito diretamente pela maioria absoluta? Seria absurdo. Mas que essa é uma prática errada e que se vira mesmo contra o Presidente, sim. Essa dos comentários na promulgação dos diplomas é uma inspiração que Marcelo Rebelo de Sousa recebeu de Cavaco Silva e não faz qualquer sentido. O Presidente tem poder de veto. Se não tem objeções à lei, promulga. Se tem, veta. Tudo o mais não faz sentido. Promulgar e a seguir criticar a lei ou alguns dos seus aspetos não beneficia ninguém, enfraquece a normatividade do diploma logo na altura em que ele entra em vigor e, no limite, vira-se contra o Presidente porque permite legitimamente concluir que nas promulgações em que o Presidente nada disse estava subjacente o seu acordo incondicional com o legislador. Se, posteriormente, a lei se vem a revelar inconveniente ou nociva, o próprio Presidente acaba por ficar igualmente corresponsável por ela. Pode afirmar-se que o funcionamento do sistema constitucional português depende tanto da personalidade do Presidente quanto das normas escritas da Constituição? Não exatamente no mesmo plano, mas sim, a personalidade do Presidente conta muito em semipresidencialismo. Aliás, é mesmo algo que também distingue o semipresidencialismo dos outros dois sistemas. De facto, em sistema presidencial o Presidente pode e tem mesmo de poder, qualquer que seja a sua personalidade; não há mais ninguém para desempenhar o seu papel. Também, por razões opostas, em sistema parlamentar a personalidade do Presidente (chefe do Estado) não releva: o chefe de Estado de sistema parlamentar, pura e simplesmente, não pode, não tem legitimidade para desempenhar um papel significativo. Por sua vez, só em semipresidencialismo a personalidade do Presidente tem uma influência determinante na forma como ele exerce ou não os poderes que a Constituição lhe atribui. Basta ver como esse fator foi relevante na diferente forma como os nossos cinco presidentes desempenharam as suas funções, ainda que todos eles tenham confirmado o perfil de Presidente politicamente ativo, influente na vida política, para o bem e para o mal, como é inevitável. .O cargo de Presidente da República é um cargo eminentemente político. Se se convocam os cidadãos para a sua eleição, estes devem conhecer a opinião, a sensibilidade ou as convicções políticas de cada candidato. Quando um candidato recusa dizer o que pensa sobre determinada questão, das duas uma: ou, na melhor das hipóteses, não pensa nada sobre o assunto ou, na pior, quer ocultar o que pensa com motivações eleitoralistas . Por isso é importante, numa eleição presidencial, que os eleitores tenham em conta a personalidade dos candidatos, mas também a sua sensibilidade e as suas convicções políticas. Por isso mesmo se exige que os diferentes candidatos se abram ao escrutínio do eleitorado. Não tem qualquer justificação eximirem-se a tomar posição com a desculpa de que o Presidente só se pronuncia no fim do processo ou de que o tema não faz parte das funções presidenciais. É que uma coisa é o recato aconselhável a um Presidente no exercício do seu mandato; outra coisa é o que se pode e deve exigir a um candidato à eleição. O cargo de Presidente da República é um cargo eminentemente político. Se se convocam os cidadãos para a sua eleição, estes devem conhecer a opinião, a sensibilidade ou as convicções políticas de cada candidato. Só assim a escolha é informada. Quando um candidato recusa dizer o que pensa sobre determinada questão, das duas uma: ou, na melhor das hipóteses, não pensa nada sobre o assunto ou, na pior, quer ocultar o que pensa com motivações eleitoralistas, o que é inadmissível numa democracia. Face à atual realidade política, defende uma revisão constitucional que clarifique, reforce ou até amplie os poderes presidenciais? Não penso que seja necessário. A atual configuração é ajustada, mas se tivesse de alterar alguma coisa seria apenas em dois domínios muito específicos: por um lado, penso que o Presidente da República deveria ser envolvido na nomeação dos presidentes das entidades administrativas independentes e das entidades reguladoras; por outro lado, os inquéritos parlamentares deveriam poder passar a incluir, em questões de relevante interesse nacional, atos ou omissões dos Presidente da República e dos seus serviços, fazendo cessar uma imunidade total que não se justifica, como se evidenciou particularmente no chamado caso das escutas com o Presidente Cavaco Silva e no caso das gémeas com o Presidente Marcelo. .Essa dos comentários na promulgação dos diplomas é uma inspiração que Marcelo Rebelo de Sousa recebeu de Cavaco Silva e não faz qualquer sentido. O Presidente tem poder de veto. Se não tem objeções à lei, promulga. Se tem, veta. Tudo o mais não faz sentido.Em termos globais, qual dos Presidentes considera ter interpretado de forma mais adequada o papel constitucional do Chefe de Estado — e porquê? Tenho opinião formada, mas aqui sou suspeito porque me orgulho de ter trabalhado de muito perto e intensamente com o Presidente Jorge Sampaio, prestando-lhe consultoria constitucional e política ao longo dos seus dois mandatos. Não o conhecia antes de ter sido convidado para o assessorar e construímos nesses dez anos uma relação de muita amizade e, da minha parte, de enorme respeito, consideração e agora saudade.