Campanhas podem levar políticos aos limites. "Somos todos falíveis e a exigência é muito grande"
O caso da indisposição de André Ventura em Tavira, na noite de terça-feira, trouxe um lembrete para cenário de campanha: até que ponto os políticos envolvidos esticam a corda do próprio corpo em contexto de grande exigência física, mental e emocional? E como se preparam não apenas para o debate ideológico mas também para os desafios de 15 dias de prego a fundo, com milhares de quilómetros na estrada, refeições engolidas a correr e horas de sono a menos do que o recomendado.
Ao DN, o diretor da campanha de António Costa no período eleitoral que antecedeu as legislativas de 2015, Ascenso Simões, lembra que o ex-primeiro-ministro tem uma "saúde de ferro" e nunca precisou de grande acompanhamento médico durante a campanha, limitando-se a consultar "alguns amigos médicos" nesses períodos - estendendo esta observação também a José Sócrates, com quem também trabalhou.
De igual modo, os dois antigos líderes do PS também sempre mostraram resiliência psicológica para lidar com as pressões da campanha, acrescenta. Ainda assim, Ascenso Simões diz que no início da campanha é fundamental que os candidatos dos partidos, seja em legislativas, europeias, autárquicas ou presidenciais façam um "check-up".
Desde os desafios diários lançados pelos partidos da esquerda e pelo "partido mais à direita" no hemiciclo, que levam a que os partidos do centro se afastem dos seus programas durante a campanha, até à pressão exercida pela comunicação social, há muitos fatores que levam a que as coisas nem sempre corram como estava planeado durante as arruadas ou comícios, concede.
Para ilustrar a importância da saúde durante o período eleitoral, Ascenso Simões recua a 9 de junho de 2004, em pleno período eleitoral para o Parlamento Europeu, e lembra o momento em que, numa ação de campanha em Matosinhos, o antigo ministro das Finanças de António Guterres, António Sousa Franco, morreu subitamente aos 61 anos.
Nesse dia, tinha havido uns desacatos entre apoiantes socialistas em Matosinhos, que suportavam duas fações diferentes dentro do partido para as autárquicas do ano seguinte. Mas tarde, foi noticiado que Sousa Franco sofrera um ataque cardíaco, tendo sido detetadas lesões coronárias antigas.
Ascenso Simões ressalva que não é possível saber se as coisas poderiam ter acontecido de forma diferente com o antigo governante socialista, que também tinha sido presidente do PSD, entre 1978 e 1979. Ainda assim, reforça, Sousa Franco morreu durante uma ação de campanha.
Ascenso Simões explica que, hoje em dia, tal como acontecia em 2015, há uma grande pressão da comunicação social, na mesma medida em que os principais candidatos a primeiro-ministro estão mais centrados em responder ao imediato e aos desafios dos partidos da esquerda e do “partido mais à direita” no Parlamento, quando, na verdade, deveriam estar empenhados em debater os seus programas eleitorais e as medidas que propõem para resolver os problemas, como por exemplo a agricultura, que, segundo o antigo deputado, é a área mais importante, tendo em conta que toda a gente come, mas nem toda a gente sente necessidade de recorrer à justiça ou à policia.
Ainda assim, olhando para o que marca a atualidade da campanha, Ascenso Simões diz que a habitação é o maior problema e não pode ser resolvido por um único partido, defendo neste caso uma ação concertada entre os partidos, que pode passar por um "pacto para a habitação" entre os dois principais partidos.
O equilíbrio entre a logística e a política
O DN também conversou com o diretor de campanha do antigo primeiro-ministro Pedro Passos Coelho em 2015, José de Matos Rosa, que acumulou esta tarefa com o cargo de secretário-geral do PSD.
Para o também antigo deputado social-democrata, "quando se planeia uma campanha eleitoral" é fundamental dar "muita atenção ao perfil do próprio candidato", para gerir os percursos, o tipo de ações, e adequá-las à natureza da campanha, isto é, a participação de um líder partidário é diferente nas legislativas do que seria nas europeias, por exemplo.
Sublinhando que "o fio condutor da agenda de campanha, o dia-a-dia, tem de ser preparado com muito rigor e com muito cuidado, havendo sempre a possibilidade de melhorar essa agenda", Matos Rosa explica que que "uma campanha para as legislativas é preparada com muitos meses de antecedência e obedece a vários fatores, de ordem política, de ordem logística e, às vezes, os fatores de ordem logística são tão importantes como os de ordem política".
Afastado da política ativa, Matos Rosa lembra que, nas campanhas, costumava "haver também gente que estava preparada para ajudar todos aqueles que estavam no terreno". No entanto, acrescenta que "é preciso algum cuidado nestas coisas, isto da política espetáculo", porque, defende "somos todos falíveis, somos todos homens e mulheres que andamos nesta situação e a exigência é muito grande".
Lembrando casos que aconteceram com figuras cimeiras da política portuguesa, como Cavaco Silva e Jorge Sampaio, Matos Rosa justifica o cuidado que se gerou à volta dos candidatos com o facto de, muitas vezes, durante as campanhas, andarem "mal alimentados, com milhares de quilómetros de carro, com uma pressão constante, com discursos que é preciso preparar", porque, segredou, "o melhor improviso é o melhor preparado".
Em relação ao que aconteceu esta terça-feira em Tavira, com o líder do Chega, André Ventura, a ter de interromper o discurso que fazia por uma indisposição que lhe valeu uma ida ao Hospital de Faro, Matos Rosa diz que, neste caso, a pressão é maior, por ser um partido em que um homem é que "responde a tudo".
"Ele é que fala em tudo", argumenta, acrescentando que, neste caso em concreto, "a responsabilidade é maior, a pressão é maior, a atenção tem de ser maior", o que implica "uma máquina muito grande" de apoio.
Afirmando que com "estas coisas não se brinca", Matos rosa diz que é necessário haver "respeito pelos portugueses, pelos eleitores", porque, argumenta, "a responsabilidade de ser candidato a primeiro-ministro não é uma brincadeira, não é aquela coisa dos pequenos partidos que a gente costuma ver, em que podem dizer tudo e um par de botas".
Classificando esta ideia que defende como "um sentido de Estado", o antigo diretor de campanha do PSD critica as campanhas, por caírem "um bocadinho na tentação do imediatismo e do populismo", que só geram mais pressão. "Estas coisas também não ajudam nada", conclui.
"Stress é o principal risco, mas também é preciso cuidado com refeições e repouso"
4 perguntas a Rui Nogueira, médico, ex-presidente da Associação de Médicos de Medicina Geral e Familiar.
O episódio de André Ventura é um alerta sobre os cuidados de saúde a ter por políticos em tempos de campanha?
Tal como acontece com todas as profissões em determinadas circunstâncias, nestas alturas os políticos ficam também expostos a situações de maior stress. O que, aliado a falta de descanso e, como parece ter acontecido no caso, alguma deglutição descuidada, pode levar a situações de indisposição e mal estar. A circunstância de estarmos a deglutir, líquidos ou sólidos, carece de alguma concentração, apesar de ser uma ação automática. Por isso é que as crianças começam a deglutir sólidos apenas ao fim de alguns meses, têm de o fazer de forma consciente e concentrar-se nessa tarefa.
Há cuidados a ter para não baralharmos canais diferentes, como aqueles por onde ingerimos o ar e por onde ingerimos os alimentos. Por isso é que enquanto se come não se deve falar, por exemplo. Ingerir alimentos de forma muito rápida e logo a seguir falar, sem ter a deglutição finalizada, e am ambientes de maior stress, pode levar a situações como a que aconteceu, de refluxo, que no fundo é um reflexo do corpo para evitar males maiores de uma deglutição mal feita. Pelas imagens parece ter acontecido isso, com André Ventura a mal acabar de beber água e começar logo a falar.
Quais os principais riscos para a saúde física e mental dos políticos durante uma campanha eleitoral intensa?
A reação aguda ao stress, desde logo. Mas também é preciso atenção com as horas e a quantidade das refeições. Não devem passar longas horas sem ingerir alimentos, nem devem ser ingeridos em grande abundância em determinado momento. E o repouso é muito importante. Este conjunto de circunstâncias, se descurado, pode levar a que algo corra mal. Sobretudo se a pessoa não estiver em boa forma. E pior ainda se esses fatores forem descurados de forma repetida ao longo de vários dias.
O stress e a pressão emocional de uma campanha podem influenciar doenças pré-existentes ou desencadear problemas novos?
Sim, são fatores que podem agravar doenças de base. Sobretudo em pessoas mais velhas e em condições como arritmias, hipertensões, insuficiências cardíacas ou respiratórias.
Que medidas preventivas teria recomendado aos políticos em campanha por estes dias? É importante, por exemplo, fazer check-up para ter consciência do estado em que estão?
Dira que é importante evitar o stress na medida do possível destas ocasiões. E considerar no plano de trabalho períodos de repouso e de refeições curtas e variadas. Quanto aos diagnósticos ou check-ups, todos estamos bem até ao dia em que deixamos de estar. Mas, claro, é recomendável uma vigilância regular, sobretudo para pessoas com doenças de base. Ainda mais importante é controlar essas condições de base, como no caso de pessoas que fumam, que têm excesso de peso ou obesidade ou hábitos desregulados de sono e repouso.
Relembre:
Outros casos em campanhas (e não só)
»A morte de Sousa Franco
É o mais duro exemplo da história recente. Em 2004, durante a campanha para as eleições europeias, nas quais era cabeça de lista do PS, António Sousa Franco morreu na sequência de um ataque cardíaco, após confrontos violentos entre apoiantes socialistas rivais na lota de Matosinhos. Cansado e em jejum, Sousa Franco foi apanhado no meio da confusão e, minutos depois de sair do local, sofreu um ataque cardíaco fulminante. Tinha 61 anos.
»A cirurgia e a afonia de Jerónimo
Jerónimo de Sousa, então secretário-geral do PCP, teve de suspender a campanha eleitoral para as legislativas de 2022 devido a uma cirurgia urgente à carótida, após exames médicos terem detetado a necessidade da intervenção. Como resultado, faltou a vários debates televisivos e a uma parte significativa da campanha eleitoral, tendo sido substituído por outros dirigentes do partido, como João Oliveira e João Ferreira.
Já em 2005, Jerónimo de Sousa viu-se obrigado a abandonar um debate na RTP1 com os líderes do PSD, PS, CDS- PP e BE por ter ficado afónico durante a campanha.
»Santana baralhado pelo calor
No caso, não foi em campanha, mas durante a cerimónia de tomada de posse, em 17 de julho de 2004, como primeiro-ministro. Pedro Santana Lopes sentiu-se visivelmente afetado pelo calor no Palácio da Ajuda, o que o levou a saltar trechos e encurtar significativamente o discurso preparado. A situação acabou por simbolizar um início atribulado do seu mandato como primeiro-ministro, que seria curto e marcado por instabilidade política.
»Os desmaios de Cavaco e Marcelo
As exigências da Presidência da República também têm feito estragos nos seus ocupantes recentes. Em 2014, durante a cerimónia do 10 de junho, na Guarda, Cavaco Silva desfaleceu no púlpito devido a uma "reação vagal", conforme foi adiantado na época. Um episódio repetido para Cavaco, que já tinha desmaiado quando António Guterres lhe sucedeu como primeiro-ministro, em 1995, quando Mário Soares lia o discurso.
Também repetente em desmaios públicos é o atual Presidente da República. Em junho de 2018, Marcelo Rebelo de Sousa desmaiou após visita ao Santuário do Bom Jesus em Braga, devido a uma intoxicação alimentar que lhe causou desidratação, explicou depois.
Em julho de 2023, sentiu-se mal num evento na Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova, numa tarde de calor, depois de ter bebido um moscatel.
»A fragilidade de Hillary a 11 de setembro
Durante uma cerimónia de homenagem às vítimas do 11 de Setembro, em plena campanha para as presidenciais dos EUA que perderia para Donald Trump, a democrata Hillary Clinton sentiu-se mal e teve de sair mais cedo. Foi filmada a cambalear e a ser amparada por seguranças ao entrar numa viatura. Inicialmente, a campanha democrata disse que Hillary estava com calor e desidratada, mas depois foi revelado tinha sido diagnosticada com pneumonia dois dias antes.