António Barreto: “A extrema-esquerda está a destruir a esquerda democrática por dentro”
Defende a liberdade como bem essencial. Lutou pela democracia. Foi ministro da Agricultura e Pescas entre 1975 e 1977, e autor de uma lei que provocaria um choque frontal entre socialistas e comunistas. Deixou a política definitivamente em 1991. Dedicou-se à carreira universitária na área da Sociologia. António Barreto mantém o olhar pessimista e crítico sobre a sociedade portuguesa e os dirigentes que vamos tendo. Denuncia a vacuidade do debate político. Sempre lúcido, jamais cínico. Defende um Governo de coligação nacional, com os dois maiores partidos e um programa escrito, assinado e válido para quatro anos. Aos 82 anos, guarda, intacto, o ceticismo.
“A crise atual parece obra de inspiração do Teatro de Revista”, escreveu. Que sketch destaca?
São as cenas tradicionais da Revista e do Vaudeville. Uns falam com as pessoas erradas, outros repetem-se sem saber, toda a gente se engana de porta, saem e entram na sala indevida, trocam os nomes das pessoas a quem se dirigem, fazem promessas que não podem cumprir, declaram-se à rapariga errada, prometem-se a um rapaz por engano e leem a correspondência dos outros. Matreiros, inocentes e velhacos, mudam de papel com frequência.
Pedro Nuno Santos e Luís Montenegro - o que os une e os separa?
Tudo.
Por exemplo?
A ideologia separa-os. O marialvismo partidário e a indisposição para o bloco central une-os.
Os episódios desta crise revelaram o nível das lideranças? Em que medida?
Não se pode dizer que revelaram. É mais adequado dizer que confirmaram. Reforçaram a ideia contemporânea, tanto portuguesa como europeia, dos líderes especialistas em tudo, verdadeiros diretores gerais, técnicos de ideias vagas com falso caráter de alta precisão, substitutos de secretários de Estado, com cada vez menos noção das componentes de um líder político. Sem suspeitar de que, nas várias noções de carisma, reside a grande força de um político. Os líderes atuais, entre nós e lá fora, são consumidores de relatórios nas suas versões executivas. Com pouco talento para representar um povo. Sem perceber o conteúdo pessoal e humano do protagonismo político. Sem entender a colossal força do carisma democrático. Sem se aperceberem de que a naturalidade, a franqueza e a honestidade valem tratados de gestão. Sem compreenderem que a capacidade de reconhecimento e de identificação de um povo com um dirigente valem dúzias de páginas de estratégias e de pulsões tecnocráticas. Sem imaginar sequer que a emoção política vale um programa de verbiagem.
E do debate político?
O debate político, com momentos “altos” como sejam os insultos parlamentares do Chega, a hipocrisia das moções de censura e de confiança e o cinismo de algumas comissões de inquérito, está à altura dos seus protagonistas. O debate político, feito em grande parte de lugares-comuns, é resultado da vacuidade da razão. Repetem-se frases e palavras já sem sentido. “Sustentabilidade”, “proximidade”, “resiliência” e “estratégia” são embrulhos do nada. As frases habituais, “o que interessa são as pessoas”, “os alunos no centro da educação”, “os doentes no centro da saúde” e as “pessoas no centro da política”, enjoam pela ausência de sinceridade.
Neste processo, o Presidente da República fez o que tinha a fazer?
Deixou-se arrastar, no segundo mandato, pelo redemoinho da política adjetiva, da discussão vácua e dos cálculos de oportunidade a sobreporem-se aos conteúdos, à razão e à emoção.
A que tipo de campanha eleitoral iremos assistir?
Ao pior possível. Quem nasce torto…Sabemos que em qualquer eleição estão presentes os valores da competição, da vitória e da derrota, da conquista e do domínio. É e sempre foi assim. O problema começa nas proporções. Quando são esses os valores essenciais ou exclusivos, algo está errado. Quando estão afastados os critérios de serviço público, de resolução de problemas, de representação genuína dos cidadãos, de progresso ou de desenho de um futuro melhor, as eleições descambam rapidamente em arena ou circo, onde a coreografia se impõe. São campanhas adjetivas que podem incluir demagogia, mentira, calúnia. O substantivo tende a desaparecer. Não é um fenómeno exclusivamente português, mas lá que está agora em plena ascensão entre nós, está.
“O marialvismo partidário e a indisposição para o bloco central” unem Pedro Nuno Santos e Luís Montenegro.
Como será o dia seguinte?
Se houver maioria de um só partido ou se os dois partidos centrais fizerem coligação e governo, talvez haja uma mudança positiva. Haverá mais possibilidades de resolver a questão dos financiamentos europeus, os problemas de segurança e de defesa e o relançamento do Serviço Nacional de Saúde. Talvez a Justiça mereça mais atenção por parte do legislador, depois destes anos de verdadeira desordem institucional. Se os resultados não derem nem governo maioritário, nem bloco central, então teremos mais uma sucessão de tristes episódios de crise.
Defende um governo de bloco central?
Defendo um governo de coligação nacional, com os dois maiores partidos, com um programa escrito, assinado e com validade para quatro anos.
São possíveis novas ‘geringonças’?
Creio que não. Os números não devem dar. A soma do PS com os pequenos partidos radicais de esquerda deve ser insuficiente. A ‘geringonça’ deixou muito más recor- dações. Não se criou confiança, muito pelo contrário. Não se aproximaram, antes fizeram inventário de queixas e de armadilhas. Se a primeira ‘geringonça’ foi um golpe oportunista, a próxima, se houvesse, seria uma manobra rancorosa com prazo de vida. É possível que, no PS, haja militantes com inclinações ideológicas para as esquerdas mais radicais. Mas, nestes grupos, a inclinação pelo PS é simplesmente nula. Para eles, o PS é uma espécie de Arca de Noé: entra para lá tudo e depois logo se vê!
António Costa provou que as maiorias absolutas podem tornar-se irrelevantes?
Como é evidente. O governo socialista de António Costa tinha quase tudo de que se precisa: dinheiro, votos, apoio e expectativas sociais. E maioria parlamentar. Tinha boa reputação internacional. Tinha colaboração institucional e bom entendimento com o Presidente da República. Quase tudo se perdeu. É um dos maiores desperdícios da vida política nacional. A política tecnocrática, a procura de dinheiro, o governo de exibição, a linguagem do cliché, a falsidade na tentativa de aproximação dos problemas e das questões sociais, tudo isso destrói a capacidade de um qualquer governo. A ação de gerir substituiu a de governar. A pressão das sondagens e das redes sociais é tal que a principal preocupação de um governante é a de aparecer, nem que seja para nada. A agenda de um governante obriga a estar pronto às horas dos telejornais. O dia de um governante exclui debate, reflexão e negociação. Ao sair de um restaurante, ao entrar num hospital, ao passear nos corredores de um lar de idosos, ao percorrer o recreio de uma escola, um ministro, rodeado pelas caras sisudas dos assessores, presta declarações. Sobre Gaza num restaurante, a oposição numa escola, a Europa numa creche ou a cultura num hospital: é indiferente. “Fazer um boneco” para a televisão é o objetivo das horas de um ministro. O que interessa é o ruído e o “boneco”.
“Defendo um Governo de coligação nacional, com os dois maiores partidos, com um programa escrito, assinado e com validade para quatro anos.”
O que diz é a definição do político António Costa?
Grande parte do que disse aplica-se ao governo de António Costa.
Vaticinou o fim dos partidos. Por onde passa o futuro político do PS e do PSD? E com que lideranças?
Não creio ter vaticinado, muito menos com satisfação. Mas previ a possibilidade e o risco. Os partidos, tal como os conhecemos há décadas, estão desajustados. Parecem ser apenas apreciados pelos seus membros. Quanto ao resto da população, são vistos como parasitas. Convém não esquecer que mais de 90% dos cidadãos e dos eleitores não são membros de partidos. As imagens e as perceções são eloquentes. Antes, eram as vanguardas ou as elites. Hoje são os oportunistas, os que não querem trabalhar, os que vivem à custa dos contribuintes. Pelo seu comportamento, pelo abuso das frases feitas incompreensíveis, os partidos dão razão aos que os detestam e assim cuidam do seu próprio declínio.
Que podem esperar destas eleições Bloco e PCP? E porquê?
Pouco ou nada. Continuam a pretender travar combates que já não existem. São os porteiros ou cicerones de uma luta de classes que é muito pouco real. Confundem coerência de pensamento com rigidez de espírito. É pena, porque fará sempre falta a uma democracia uma reserva de oposição radical. Essa reserva, em Portugal, parece estar cativa do Chega. Repare que o crescimento da extrema-direita, da direita populista e da direita de protesto verifica-se em toda a Europa quase em sintonia com a decrepitude da esquerda e da extrema-esquerda.
Até onde pode ir a Iniciativa Liberal?
É difícil dizer ou prever. Gostaria que aumentasse a sua força eleitoral e fosse muito longe, neste país que nunca foi liberal. Também gostaria que não se identificasse tanto com o programa económico da direita.
“A maioria absoluta de Costa é um dos maiores desperdícios da vida política nacional.”
Em 2020 dizia que o partido de Ventura não o assustava. Que perigos o Chega representa agora?
Apesar de me ter surpreendido eleitoralmente, o Chega continua a não me assustar. O que realmente amedronta é a insistência dos partidos democráticos nos erros que provocam e estimulam o Chega e outros. A hipocrisia, a corrupção, o preconceito, a voracidade, o desprezo pelas instituições, o privilégio absoluto dado aos militantes e aos clientes dos partidos… São estes vícios dos políticos democráticos contemporâneos que assustam.
A extrema-direita “vive de tudo o que está mal”, escreveu. Em que termos pode a esquerda tomar em mãos temas como a corrupção e a insegurança, de maneira a que não sejam tomados pelos populismos?
A luta contra a corrupção depende essencialmente da Justiça, das instituições e da liberdade de expressão. A primeira é incompetente. As segundas são fracas. E a terceira está refém. Por outras palavras, não é um combate de esquerda ou de direita. Pode ser de uma ou de outra. E até das duas. As corrupções de esquerda e de direita combatem-se e são concorrentes. Ou completam-se. A corrupção de direita está ligada ao mercado e à empresa. A corrupção de esquerda pertence ao partido e ao sindicato. O combate contra a corrupção feito pela extrema-direita de protesto é uma ilusão. A luta contra a corrupção que produz efeitos é feita com a Justiça e democracia.
Em Portugal, faz sentido falar nos perigos de uma extrema-esquerda?
Já não faz sentido. Esses perigos transformaram-se. Os valores respetivos pertencem hoje às esquerdas democráticas que se deixaram envenenar. As liberdades individuais, os ideais de justiça, o princípio do equilíbrio político e os sonhos da equidade deixaram-se dominar pelo espírito jacobino e leninista. É detestável ver o que as esquerdas democráticas pretendem hoje da Educação, da Saúde, da família, da Cultura e da Justiça. A extrema-esquerda não derrotou, nem derrotará, a esquerda democrática. Está a destruí-la por dentro.
Pedro Nuno Santos é um sinal disso mesmo?
Inicialmente, sim. Faz parte do grande grupo de jovens socialistas muito teóricos, que se deixaram seduzir por todas as extravagâncias da extrema-esquerda. Desde que é secretário-geral, dá sinais de ser capaz de se libertar de algumas dessas inclinações. Sinais, não mais do que isso.
[Marcelo Rebelo de Sousa] Deixou-se arrastar, no segundo mandato, pelo redemoinho da política adjetiva, da discussão vácua e dos cálculos de oportunidadea sobreporem-se aos conteúdos, à razão e à emoção.”
Como deve ser tratado pela esquerda o problema da imigração? Em que moldes legislativos?
São muitos os instrumentos legislativos e administrativos. Até políticos. Podem citar-se alguns. Facilitar a integração. Combater a ilegalidade. Estabelecer correspondência entre legalizações e necessidades de trabalho. Impedir o descontrolo quantitativo, o que pode ser ajudado pela ligação entre autorizações, contratos de trabalho e residências legais. Criar vários tipos de autorização e de contrato de trabalho, de curta, média ou longa duração, antes do estabelecimento definitivo. Favorecer certas nacionalidades em detrimento de outras. Exigir o conhecimento da língua. Recusar os imigrantes que vêm a Portugal para “dar à luz” e depois ficar. Castigar severamente as residências falsas de multidões de clandestinos. Punir os nacionais que se aproveitam dos ilegais e os que traficam imigrantes ilegais. Proibir usos e costumes fora das leis portuguesas, como a poligamia, a excisão, os maus-tratos dos animais, o casamento forçado, a venda de crianças e adolescentes para casamentos contratados, os maus tratos infligidos aos menores e às mulheres. Castigar os que se aproveitam da ilegalidade, dos salários miseráveis pagos aos imigrantes. Não é matéria que falta.
Assistiu ao nascimento do Estado de Direito. Que diria hoje a esse jovem socialista? Que razões encontra para o atraso na reforma da Justiça, que considera ser a salvaguarda da democracia?
Temos uma sucessão das más justiças. A justiça da ditadura. A justiça da revolução. E a justiça dos sindicatos de magistrados e outros profissionais da justiça. O resultado é a permanente guerra civil entre os corpos da justiça. Assim como o receio dos políticos: têm medo de ser julgados ou perseguidos. A legislação sobre a justiça é malfeita, complicada, obscura, pensada para agradar ora uns corpos profissionais, ora outros. Mas não tenhamos dúvidas: as culpas do mau estado em que se encontra a Justiça pertencem a ambos os lados, aos seus profissionais e aos políticos e legisladores. Tem-se a impressão de que a Justiça portuguesa evitou e resistiu à democracia. Ao Estado de Direito constitucional. À integração europeia. Ao alargamento contemporâneo dos direitos humanos. À economia de mercado. Às necessidades de aceleração da economia moderna. A Justiça portuguesa usa beca remendada, capelo ensebado e sapatos Versace.
Como devolver credibilidade às instituições públicas?
É um dos problemas mais curiosos e mais difíceis de tratar. É uma questão de excecional importância para a qualidade de sociedade e de democracia. Em Portugal, as instituições públicas estão excessivamente dependentes dos governos e dos partidos. As Forças Armadas e as Universidades, por exemplo. As autarquias locais. A magistratura. As Ordens profissionais que partilham poderes públicos. Se, a estas instituições claramente públicas, juntarmos outras a meio caminho entre o público e o privado, como sejam as Igrejas e os cultos, as grandes organizações como as escolas, os hospitais e as associações desportivas, vemos que toda a sociedades está organizada em instituições. Se acrescentarmos as empresas e as suas organizações e associações, temos a sociedade em vida e funcionamento. Ora, estas instituições são consideradas dependentes e devedoras do Estado, financeira e legalmente. O que impede a liberdade, diminui o desenvolvimento, trava a inovação e a criatividade. Há um velho mito que diz que nenhum poder se sobrepõe ao poder político. Modernamente, acrescentou-se o qualificativo “democrático”. Ora, esse princípio não deve ser aceite pelos democratas. Em muitos casos, o poder político tem de negociar com interesses e instituições. Outras vezes, o poder dos políticos tem de ser limitado pelas instituições, pelas tradições, pela ordem moral, pela religião e pela lei. O poder ilimitado dos políticos traduz a ideia de que a política é uma espécie de despotismo legal eleito. A política deve zelar pela legalidade e pelas garantias de relacionamento justo entre cidadãos e instituições. Mas não deve submeter as instituições. Tanto quanto não deve submeter os cidadãos.
Não tenho receita para devolver credibilidade às instituições. Sei que há muitas maneiras de o fazer. A começar por não esperar que o Estado, mais uma vez, as liberte. As instituições, qualquer que seja a sua origem e a sua natureza, devem lutar pela sua liberdade, inovar por sua invenção, recusar o despotismo legal de Estado. As próprias instituições, tantas vezes dependentes, deveriam começar a acreditar que o Estado precisa mais delas do que o contrário.
O SNS está condenado?
De todo. Foi do que de melhor se fez em Portugal. É vital e justo proteger o Serviço Nacional de Saúde. Foi em grande parte a política que deixou o SNS no estado crítico em que se encontra. Nenhuma força política soube desenvolver e cuidar, estimular e recompensar o serviço e os seus profissionais. Salvar e desenvolver o SNS poderia mesmo ser a prioridade de entendimento entre partidos democráticos. Juntos, poderiam lutar pela Saúde, em vez de a estragar.
Que futuro encontra para a escola e o ensino público? De que evolução podemos falar?
O ensino público deve ser mantido e desenvolvido. Em total respeito e em paralelo com o ensino privado. Em competição, mesmo. O que há de odioso é deixar o público para os pobres e o privado para os ricos e as classes médias. São ambos essenciais para a cultura, para os Direitos Humanos, para a democracia e para o desenvolvimento. Querer um em detrimento do outro é uma opção selvagem ou totalitária.
A população está cansada da política e dos políticos?
Creio que é evidente. E em muitos casos tem absolutamente razão. A qualidade, a nobreza e a dedicação dos políticos à causa pública e ao serviço aos cidadãos deixam muito a desejar. As últimas crises de instabilidade são bom exemplo. Uma boa demonstração reside no facto de a abstenção eleitoral ser de 45% nas autárquicas, 50% nas legislativas, 60% nas presidenciais e 70% nas europeias. É um sistema cada vez menos geneticamente democrático. Hoje, já é possível dizer que a minoria dos cidadãos e a minoria dos eleitores governam o país. A maioria dos cidadãos desinteressa-se já da política e da democracia. Depois do desinteresse, vem o afastamento. Para a liberdade, é indispensável que se garantam os meios de fazer funcionar a democracia. Esta só existe se houver política e políticos. Sou de um tempo em que era negativo “fazer política”. Em que os pais aconselhavam os filhos a não “se meter em política”. Hoje, à proibição da política e da democracia. prefiro a má política e a democracia imperfeita. Mas a esperança é a de que seja possível ter uma e outra em condições aceitáveis de humanidade e seriedade.
Porém, como lidar com as imperfeições?
Reconhecê-las e aceitá-las, sem necessariamente as tornarmos nossas. Mas sobretudo não tentar proibir as imperfeições, nem as condenar. Muito menos substitui-las pela virtude e pela perfeição. A democracia perfeita é a que designa a ética e a moral para esconder códigos autoritários e ditatoriais. O totalitarismo tenta sempre impor uma virtude única, uma moral perfeita e uma ética de retidão.
“Hoje, já é possível dizer que a minoria dos cidadãos e a minoria dos eleitores governam o país.A maioria dos cidadãos desinteressa-se já da política e da democracia.”
Que leitura tem o facto de um militar comandar as sondagens para as presidenciais?
Se o militar fosse um político, tivesse um currículo político ou fosse um herói militar, tratar-se-ia de um facto normal, natural e previsível. Que não deveria ser criticado da maneira que o é em Portugal pelos partidos políticos. Parece que os militares têm menos direitos do que os civis! Dito isto, quando o militar não é político e não se lhe conhecem ideais, nem ações políticas, quer isso dizer simplesmente que os civis disponíveis são fracos e incompetentes.
Os candidatos já apresentados, e as hipóteses que se adivinham, são fracos e incompetentes?
Ainda é cedo. Preciso de os ver em campanha. Se os candidatos sem passado nem futuro político previsível conseguem singram por cima de políticos experimentadíssimos é sinal que são isso, mas muito pouco competentes para o que se lhes pede.
António Vitorino ou António José Seguro?
Tenho muita estima e respeito por ambos. Mas, há muito tempo, tomei a iniciativa de defender a candidatura de António Guterres. Assim me mantenho.
António Guterres não deverá avançar.
Se o meu candidato não se apresentar não sei o que farei seguir.
“[Um militar a comandar as sondagens para as Presidenciais] Quando o militar não é político e não se lhe conhecem ideais nem ações políticas, quer isso dizer simplesmente que os civis disponíveis são fracos e incompetentes.”
O Mundo. Quais serão as consequências da queda da Ucrânia? Representará uma ameaça existencial?
É evidente que se trata de uma derrota ameaçadora e de uma queda perigosa. Foram restaurados certos hábitos, alguns princípios e outros costumes que estavam quase afastados do mundo contemporâneo. A legitimidade dos imperialismos, por exemplo. O direito de conquista. O condicionamento dos vizinhos dos países poderosos. A declaração de guerra como faculdade soberana ou capacidade autónoma dos países mais fortes. O direito de vida e de morte sobre as comunidades vizinhas. A afirmação da culpa das vítimas.
“Os tempos são de mudança como não se via há décadas.” Que dramas esperam por nós?
Gostemos ou não, a balança de poderes no mundo mudou e vai ainda alterar-se mais. O Ocidente liberal e democrata perdeu muito da sua influência, que não vai recuperar. O mundo asiático, sobretudo chinês, assume uma posição de domínio parcial do mundo. É verdade que os Estados Unidos se mantêm a nação mais forte, mas já sem hegemonia. Muitas décadas de primado ocidental, liberal e democrático chegaram ao fim. O imperialismo ficará, no futuro, entre as mãos dos Estados Unidos, da China e da Rússia. A Rússia vai recuperar uma parte importante do seu poderio czarista e soviético, mas já não chegará à posição cimeira dos tempos da guerra fria. Se se conseguir evitar mais guerra, a Rússia vai condicionar a política de grande parte da Europa de Leste. Alguns países vão ter de viver novamente com soberania limitada. É provável que a União Europeia, se mantenha, mas será com um papel acessório.
O mundo mudou, o Ocidente perdeu poder e importância, a aliança atlântica fragmentou-se. O problema, ainda sem resposta, é o de saber se, mau grado esta mudança tão radical, a Europa se mantém fiel aos seus valores e à sua história recente, à democracia, às liberdades e aos Direitos Humanos.
Como travar o retrocesso democrático?
Globalmente, o mundo democrático recua e o não democrático tem-se fortalecido. O retrocesso democrático poderá travar-se, dentro da Europa, com a escolha dos povos e a preservação da liberdade. No resto do mundo, fora do Ocidente, nos outros continentes, não se pode dizer que haja retrocesso, pois nunca houve realmente democracia. Aliás, foi este um dos erros dos democratas ocidentais: a ideia de que era possível exportar a democracia. Deu mau resultado, evidentemente. Assim, na China e na Rússia, por exemplo, o autoritarismo consolida-se. Noutros locais, é um verdadeiro retrocesso da humanidade. As guerras, em certos locais, designadamente africanos, são medonhas, fazem todos os anos muitas centenas de milhares de mortos e milhões de refugiados. É um verdadeiro recuo de civilização.
Como combater os ‘trumpismos’?
Não tentar fazer como eles. Não se aliar. Não negociar. Esperar pelo seu declínio, mesmo que dure muitos anos.
“A China é a demonstração da possibilidade de coexistência do comunismo com o capitalismo. Nem a União Soviética tinha conseguido tanto.”
Voltamos à necessidade de lutar pela liberdade?
É preciso vê-la ser posta em causa ou inexistente em mais de metade do mundo, para ter consciência de que é a luta que se sobrepõem às restantes. A liberdade permite as escolhas, o pensamento, a criatividade, a solidariedade e o respeito pelos outros.
Estamos a falar de um falhanço coletivo dos democratas europeus? Ainda vamos a tempo?
Dentro da Europa, como disse, ainda é possível. Se os povos quiserem e escolherem.
Como demonstrar às pessoas que as sociedades livres funcionam melhor?
Mostrando que, entre as centenas de milhões de emigrantes e mais ainda de turistas, quase toda a gente quer ir para os países de sociedades livres e quase ninguém pretende ir para os países que vivem em ditadura. E referir ainda que os países da liberdade são também os que mais refugiados recebem, mais apoiam os países na miséria, mais contribuem para a ação humanitária e mais ajudam ao desenvolvimento.
Para termos chegado aqui, o que fizemos de errado?
Pensámos que “estava feito”, que a revolução bastava. Acreditámos em que fazer leis chegava para mudar a sociedades. Nunca pensámos na necessidade de uma profunda reforma da Justiça. Preferimos a política das “minas e armadilhas”, das tropelias e dos golpes. Destruímos, num ano, a economia portuguesa, o que depois levou dezenas de anos a recuperar. Nunca demos realmente prioridade ao combate contra a pobreza e a desigualdade. Apesar da retórica benevolente, deixámos crescer a tristeza, a solidão, a pobreza e a infelicidade entre os idosos. Raramente demos importância à liberdade e aos direitos individuais. Já não somos capazes de reconhecer a relevância da pertença a uma comunidade nacional. Assistimos, impávidos, perante a Europa e diante dos imigrantes, ao esmorecimento do que há de melhor numa nacionalidade, a coesão e a identidade.
Dois portugueses em lugares de destaque mundial: Guterres e António Costa. Que avaliação faz de ambos?
Ainda não é possível avaliar António Costa europeu. O seu currículo começou há dias. Quanto a António Guterres, confesso o meu respeito e a minha admiração. É verdade que, sem meios próprios, sem a unanimidade dos grandes poderes e com a animosidade de Trump, Putin e Xi, não seria possível fazer mais, ter mais influência, prevenir crises, evitar guerras e impedir massacres. Além disso, teve “pouca sorte”, se assim se pode dizer. Os seus mandatos coincidiram com impressionante série de conflitos e crises, como sejam: a guerra de Gaza, de Israel e do Próximo Oriente; a invasão da Ucrânia pela Rússia; as guerras civis no Sudão, na Etiópia, na Somália, no Congo e no Iémen; a pandemia do COVID; e a intensificação das crises climáticas. Nada estava ao alcance das capacidades de acção das Nações Unidas. Com ou sem erros, Guterres manteve um permanente alerta do mundo, defendeu sempre os valores humanos e contribuiu para a informação permanente da população. O seu contributo para manter e desenvolver acção humanitária foi precioso.
Helmut Kohl, Margaret Thatcher ou Mikhail Gorbachev moldaram a História. Quem são esses líderes políticos hoje? Putin, Xi? A liderança histórica está um pouco fora da UE hoje?
Esses “líderes históricos”, como sugere, protagonizaram o progresso da liberdade, o reforço da democracia e a luta contra a autocracia e a sociedade fechada. Os outros “líderes” que menciona, Putin ou Xi, tão históricos como os primeiros, simbolizam o reacender dos imperialismos, a deslocação para Leste e Oriente de parte importante do poder político e militar, assim como económico. São também adversários da democracia e das liberdades individuais. Aqueles líderes democráticos fizeram recuar a ditadura. Os atuais líderes russo e chinês fazem recuar a liberdade.
Quais serão os derrotados e os vencedores no final?
Na História, não há vencedores finais. Os vencedores e os derrotados são sempre transitórios. No presente e a curto ou médio prazo, os derrotados são o Ocidente, a Europa e a democracia ocidental. A partilha do poder no mundo tem já, atualmente, uma configuração diferente da que tinha ainda há bem pouco tempo. Os Estados Unidos, por exemplo, ainda são a nação mais poderosa, mas já não têm a hegemonia que tinham. A China é o grande vencedor. Com perspetivas de se manter no topo da balança de poderes por longas décadas. A China conseguiu o que se pensava ser impossível: combinar o máximo de comunismo com o apogeu do capitalismo. Antigamente, em teoria, acreditava-se em que o capitalismo e o mercado, juntos, acabavam sempre por exigir ou estimular a democracia. Falso! A China é a demonstração da possibilidade de coexistência do comunismo com o capitalismo. Nem a União Soviética tinha conseguido tanto.
A Lei Barreto marcou para sempre a vida de um jovem ministro?
Foi um combate a que me entreguei e que valeu a pena. Com enorme apoio do meu gabinete, do partido e do eleitorado.
Que recorda desses anos?
A ideia de que tudo era possível. O melhor era possível. O pior era evitável. São ideias erradas, mas foi bom ter vivido esse tempo e acreditado nessas ideias. Paradoxalmente, sobra uma certeza: a de que muito do bom e do mau depende das nossas escolhas.
Assinou uma lei que levou a uma guerra brutal entre o PCP e o PS. A ‘geringonça’ foi, pelo contrário, o momento em que ambos os partidos estiveram mais próximos?
A “guerra brutal” entre o PS e o PCP, em 1974 a 1976, foi quase o ato de renascimento do PS. Os mais importantes pergaminhos democráticos do PS foram então conquistados. Alguns socialistas tinham combatido energicamente a ditadura salazarista. Com certeza. Mas pouco ou nada como Partido Socialista. Eram democratas, sociais-democratas, republicanos e socialistas avulso, a título individual, mal ou pouco organizados. Como partido, não existiam, pura e simplesmente. A Alameda, o 25 de Novembro, as manifestações de massas, a resistência aos comunistas e as eleições constituintes de 1975 e legislativas de 1976, são os verdadeiros momentos fundadores do PS. Com o salazarismo já derrotado, todos estes momentos ocorreram contra os comunistas. Quase cinquenta anos depois, aquilo a que se chama apropriadamente uma geringonça foi uma tentativa oportunista e cínica de recuperar o declínio dos comunistas e dos blocos esquerdistas, isentando o PS de trabalhar por uma maioria socialista e democrática. Ainda hoje, o caráter “manhoso” da geringonça pesa negativamente na vida do PS. Já agora, para memória. O verdadeiro autor deste batismo foi Vasco Pulido Valente. Por outro lado, convém recordar o que o dicionário da Academia das Ciências designa por ‘geringonça’: “coisa mal engendrada, tosca, malfeita e que ameaça partir-se”.
Podia ter sido tudo na política. O nome chegou a ser falado para a Presidência da República. Gostaria de o ter sido?
Pensei nisso. E não gostei da ideia.