Foi no seu último Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas que Marcelo Rebelo de Sousa deixou criticas a quem se acha “mais português do que o outro”. Entrando na reta final do seu mandato, o Presidente da República recordou que, dos lusitanos aos fenícios e dos saxões aos gregos, o povo português é uma “mistura”. Por esse motivo, “não há quem possa dizer que é mais puro e mais português do que o outro”.Em Lagos, palco escolhido para as comemorações deste ano, Marcelo Rebelo de Sousa centrou a sua intervenção em três tópicos: recordar, recriar e agradecer. O primeiro serviu para contestar essa pureza da nacionalidade, frisando ainda que o povo português integra e aceita gentes de outras proveniências: “Os portugueses são capazes de falar línguas, de entender climas e de conviver com todos. De fazer, construindo pontes diariamente. Somos portugueses porque somos universais.”Na parte de “recriar”, o chefe de Estado pediu ao Governo que “cuide melhor” das pessoas, para que “a gente” seja “mais numerosa” e se sinta “mais atraída a ficar nesta pátria feita de um retângulo e dois arquipélagos”, se assim entender. Ou, se não quiser ficar, “a partir para voltar e nunca perder a saudade da terra”. No fundo, Marcelo pediu que se “cuide mais do que se puder e do que dever ser feito, produzindo, inovando, investindo e exportando”..Mas a intervenção teve também um olhar para aqueles que estão em exclusão social ou risco de pobreza. Também esses devem ser cuidados, no entender do Presidente da República. “São muitos, há muito tempo, regime após regime, situação após situação”, atirou.Os recados de Marcelo, no entanto, não ficaram por aqui. Ainda sob o mote de “recriar”, pediu que Portugal cuide da “fraternidade com os povos e os Estados que falam português e fazem do português uma grande língua mundial”. Isto ao mesmo tempo que se preserva “a pertença na Europa unida, aberta, que acredita em valores humanos, de dignidade e respeito pelas pessoas”. Há portanto uma “obrigação primeira” de recriar Portugal no “novo ciclo” que entende que o país vive - mas que não caracteriza. “Recriar Portugal é reler Os Lusíadas. Recordação do passado, mas aposta do futuro quando Portugal parecia condenado a morrer”, relevou ainda.Por fim, sobre “agradecer”, Marcelo foi mais breve, mas nem por isso menos incisivo, exultando o papel dos militares. Foi graças a eles que Portugal “nasceu” e se tornou “independente”, disse, antes de fazer a ponte para um dos pontos altos deste 10 de Junho: a condecoração de Ramalho Eanes..Dos desfiles militares à condecoração de Eanes: o 10 de Junho em imagens.“Nos seus mais de 90 anos de vida”, o antigo Presidente da República foi “combatente em África, capitão de Abril, protagonista de novembro, chefe militar até ao Comando Supremo, primeiro Presidente da República eleito livremente pelo povo português”. Por isso, Marcelo Rebelo de Sousa atribuiu-lhe o primeiro grande colar da Ordem Militar de Avis.Lídia Jorge regista “o fim de um ciclo” e destaca CamõesAntes de Marcelo Rebelo de Sousa, foi a escritora Lídia Jorge a discursar nas comemorações do Dia de Portugal .Escolhida por Marcelo para presidir à Comissão Organizadora destas cerimónias, a também conselheira de Estado começou por destacar o “papel decisivo” de Luís de Camões na cultura portuguesa. Mas não só. Tal como acontece atualmente em Portugal, Camões “viveu momentos de transição, o fim de um ciclo” e Os Lusíadas “expressam corajosas verdades dirigidas ao rosto dos poderes que elogia”. Algo que também acontece na obra de Shakespeare e Cervantes: todos “expuseram o domínio” dos impérios em que viviam..Lídia Jorge não quis também deixar passar despercebido o simbolismo do local onde as comemorações do 10 de Junho aconteceram: Lagos, o local onde vários “escravos raptados ao largo da costa da Mauritânia” desembarcaram, um “polo aglutinador de interesse cultural”. Por isso, considerou: ninguém tem “sangue puro” e “a ascendência pura” é “uma falácia” que não tem “correspondência com a realidade”, uma vez que o povo português “é uma soma” do nativo, do “escravo e do senhor que o escravizou”. Exemplo disso é o facto de “no século XVII, 10% dos portugueses serem descendentes de africanos”.No seu entender, talvez “essa consciência” seja a forma de “combater o revisionismo histórico” que atualmente existe, sobretudo ligado a ideias mais extremistas. Atualmente, alertou ainda, surge um “novo tempo à escala global”. “Os cidadãos são reduzidos à condição de seguidores”, lamentou a escritora.Além dos discursos, a cerimónia do 10 de Junho teve ainda os habituais desfiles militares, com os vários ramos das Forças Armadas e os ex-combatentes a percorrerem toda a Avenida dos Descobrimentos, junto à marina da cidade de Lagos. No caso da Força Aérea, várias aeronaves (desde helicópteros aos caças F-16) sobrevoaram a zona..Da “firmeza” de César à recusa de Ventura: as reações aos discursos do Dia de Portugal.É preciso “firmeza pedagógica e política para não dar caminho a tendências totalitárias e que pululam hoje”. A conclusão é de Carlos César, presidente do PS, em reação aos discursos do 10 de Junho, muito marcados por uma tentativa de afastamento de políticas identitárias.Em Lagos, onde esteve para assistir às comemorações, o socialista deixou ainda o alerta para que não haja desatenções “em relação a estes fenómenos de tentativa totalitária”. “A atenção não é só dos políticos, mas dos portugueses, que não devem confundir a necessidade de resolver problemas com derivas totalitárias e ditatoriais que não resolvem problema nenhum, pelo contrário”, considerou.Já André Ventura, do Chega, rejeitou a ideia de “devolver” bens às ex-colónias, sejam “obras de arte ou outras riquezas”. Segundo o líder do segundo maior partido no Parlamento, o discurso do Presidente da República foi “propositadamente conciso” e que o único ponto positivo foi o facto de “tocar na questão dos ex-combatentes”. Algumas destas pessoas, disse, têm “pensões miseráveis”, não tendo uma “vida digna”. De resto, Ventura considerou que “não se pode entrar “no caminho perigoso de dizer” que Portugal é “culpado pelo esclavagismo, pelo que aconteceu nas ex-províncias ou começar a querer devolver obras de arte ou qualquer riqueza portuguesa”. Com isto, ameaçou, “o Governo que tentar devolver alguma coisa” às ex-colónias “será derrubado pelo Chega no dia seguinte”.Por sua vez, Paulo Núncio, líder parlamentar do CDS-PP, elogiou a decisão de condecorar Ramalho Eanes, considerando que o general teve um papel decisivo na consolidação da democracia, destacando a operação militar de 25 de Novembro. “Foi de uma enorme justiça a distinção do general António Ramalho Eanes. É um homem hoje reconhecido por todos os portugueses como um extraordinário patriota, um homem militar, um general, reconhecido pelos seus camaradas”, disse..À esquerda, Joana Mortágua, ex-deputada do BE, considerou que houve uma “ideia de portugalidade aberta” no discurso de Marcelo Rebelo de Sousa. “Tentar abrir o sentido de portugalidade é uma mensagem importante em tempos de crescimento da xenofobia, do racismo e dos conflitos construídos aparentemente em torno das identidades”, afirmou à Lusa, acrescentando: “É a ideia de uma portugalidade aberta, de que a identidade fechada não faz sentido historicamente. (...) Querer definir o que é ser português a partir de determinadas características fechadas é uma mentira histórica”.Por fim, Ramalho Eanes elogiou a intervenção do Presidente da República. Para o antigo chefe de Estado, o discurso passou em retrospetiva o percurso da sociedade portuguesa até aos dias de hoje. “Mostrou de onde viemos e o que em conjunto fizemos”, disse, considerando ainda Marcelo também não deixou de fora “os erros que foram cometidos” nem “o desafio interno” de dar garantias “aos portugueses que esta é a pátria deles”. 1.10 de Junho. Marcelo ataca nacionalismo, Ventura não quer devolver "nada" a ex-colónias e César pede "firmeza".Marcelo: "Eu sei que isto não é muito próprio, comer em frente de câmaras. Quer dizer, não era!"