Será cobardia?”, pergunta Matilde L. de 14 anos, olhando para o futuro. “Talvez emigre”, diz, com culpa na voz. No auditório da Escola Secundária da Ramada, onde é aluna do 9.º ano, acaba de assistir aos relatos de dois resistentes antifascistas, testemunhas da vida em Portugal há 50 anos. “Aquelas pessoas, na altura tão novas, tentaram melhorar Portugal. E eu? Hoje, o que elas esperam de mim?” Para a adolescente, emigrar é esperança, e contrição. “Por um lado, acho que terei de o fazer; por outro, não quero deixar o meu país sabendo que não está bem. Quero emigrar, mas não posso desistir do meu país.” Rodeada de colegas de turma, Matilde baixa os olhos. “E até era possível ter aqui uma vida boa. Só que...”.Matilde não conseguiria trabalhar num escritório. Pode vir a ser agente medalhada da Polícia Judiciária, ou uma professora feliz pelas crianças que ensinará a ler. Mas não arrisca mais que um “Talvez.”.“Neste País, fico indecisa. Tenho memórias muito positivas da minha infância com a minha professora, e gostava de dar essa experiência a outros; mas nada me motiva. Sei que muitos professores são infelizes, e mal pagos. Não quero estar infeliz por não conseguir preencher os meus sonhos.”.Quem são os culpados? A teenager não aponta o dedo. Apesar das dificuldades, sabe que cresce num país muito distante daquele onde nasceram os avós. “O meu é muito melhor. Disso tenho a certeza.”.Mariana Paulino, de 17 anos, concorda. Para a aluna do 12.º ano, “é muito bom viver depois do 25 de Abril”. Porém, nota que a geração a que pertence “tem tido um certo azar”. “É justo que se diga. Nascemos numa altura em que não há certezas de nada.”.Quer seguir Psicologia. “Não sei bem para, depois, fazer o quê”, acrescenta. Imagina-se na faculdade e de estágio em estágio. “Provavelmente para não ganhar nada”, teme..Mariana, de manhã, Matilde, à tarde, ouviram falar de um tempo em que havia crianças descalças e desnutridas nas salas de aula. Adolescentes operários. Jovens presos por lutarem contra a ditadura, ou a morrer na Guerra Colonial. Mulheres impedidas de decidir sobre si próprias e o país..As angústias dos jovens de agora são seguramente mais leves, dizem. “Mas também incomodam muito e ensombram o futuro.”.Por amor ou por interesse?.Não arranjar trabalho, não ter uma casa, sem dinheiro para o dia a dia, não conseguir sair de casa da mãe: são os medos maiores de Leonor. Prestes a terminar o 12.º ano, tem a decisão tomada: “Não vou continuar a estudar. Não gosto disto.” A voz doce transforma-se em determinação. “Tenho um bom plano.” Foi traçado com uma prima emigrada na Irlanda: “Ela diz que, lá, ganha-se muito melhor, e que nos primeiros tempos vai ajudar-me.” Vai juntar dinheiro, regressará a Portugal e abrirá um negócio. Que negócio? “Isso ainda vou descobrir”, diz a futura empresária de 17 anos..Vera Almendra é uma das melhores alunas da turma. Separa-a de Leonor o gosto pelo estudo, mas partilha os receios com a amiga. “A maior desilusão é pensar que estou a estudar para depois não arranjar trabalho.”.A dois meses de completar o Ensino Secundário, a jovem de 18 anos vive um dilema: “Estou entre escolher o que gosto ou aceitar o que me dá mais jeito.” Atendendo ao coração, Vera seguiria Jornalismo. “Olhando para a realidade”, considera prosseguir o negócio dos pais. “Gostava muito de ser jornalista; mas sei que, quando sair da bolha, vou ter um choque brutal. As casas, por exemplo, estão ao preço do ouro. E tenho três irmãos.”.A ansiedade não poupa o grupo dos mais novos, todos com 14 anos. Dinis, para quem “não oferecer uma vida aos pais, na reforma deles, ou socorrer a irmã em caso de urgência” seria uma “dor muito grande”, aposta em duas saídas: o futebol, onde pode vir a ser um Rafael Leão “só que em mais baixinho”, ou a aviação civil, “hipótese absolutamente possível”..Sara, cujo sonho é ser educadora de infância, está cansada de ver a mãe trabalhar para lá do horário normal para compor o salário do mês. Faz contas, compara salários de Portugal e de Espanha, para concluir que pode ganhar 2000 euros “já aqui ao lado, acordando todos os dias para fazer o que gosta”..Pedro quer sobretudo “ser muito bom no que vier a escolher”, quando o fizer. Martim, capaz de ser tão feliz no futebol como na GOE (Grupo de Operações Especiais), é lapidar: “O sonho de todos é atingir o que queriam ser em criança e ganhar dinheiro por isso.”.Ibrahim I. tem 18 anos. Com o 12.º ano finalizado, é muito provável que escolha o Curso de Direito. Salienta viver num tempo em que há pouco para distribuir. Falta trabalho, habitação, salários justos. Certezas..“Quando há pouco, é preciso ser-se muito competitivo. E isso, por vezes, quer dizer passar por cima dos outros. É assim que estamos.” Faria isso para conseguir um emprego? “Só por desespero. Não conto chegar a esse ponto”, responde sem hesitar..Mariana é ainda menos otimista. “Preparada para o fazer, não direi que estou, mas o mais certo é termos de o fazer; não tanto agora, na escola, mas lá mais para a frente.”.Leonor discorda: “Não é preciso esperar. Não entro em competições, mas vejo muitas pessoas da minha turma a competirem com a Vera, por exemplo, porque ela é das que tem melhores notas”. Vera compete com ela própria. “Depois, eventualmente, haverá lugar para quem se esforçar. Eventualmente.”.A linha de partida.“Não há igualdade de género, nem igualdade social. E as pessoas com difícil mobilidade também não são consideradas”, diz Matilde, voz indignada..A linha de partida ainda não é a mesma para todos, concordam em uníssono. “A mim chocam-me, sobretudo, as desigualdades entre rapazes e raparigas”, confessa Sara. Descreve um cartoon mostrado numa aula de Cidadania, prova de que ainda “falta fazer muito”..“Vemos um homem a subir umas escadas facilmente, chegando ao topo sem empecilhos. Ao lado, uma mulher sobe umas escadas mais altas, ainda a cuidar dos filhos, a tratar da comida e das limpezas. A escada estava partida - ia demorar muito mais tempo a subir.” A indignação vai crescendo: “As mulheres não ganham o mesmo salário, mas fazem o mesmo trabalho; cuidam da família e da casa e ainda ganham menos que os homens.”.Martim intervém: “Não só ganham menos, como não atingem os mesmos cargos.” Já sentiu na pele a injustiça: “A minha mãe trabalha na mesma empresa há muitos anos e só há pouco conseguiu atingir o cargo que queria. Fosse homem e tinha conseguido o lugar mais cedo.”.Martim interessa-se por política. Com 14 anos, chama a atenção para o “problema da corrupção, e como ele pode fazer aumentar o radicalismo”. A corrupção e as desigualdades sociais: “Sinto que acabaram com a classe média. Hoje há ricos e há pobres.”.Sara, a menina que tenciona emigrar para Espanha, concorda. “No meu caso, por exemplo: não quero ser pobre, mas também não faço questão de ser rica.” Quer uma vida “estável, normal e feliz”. E, acrescenta, “demonstrar amor pelos meus filhos”..Filhos. Leonor quer quatro. Matilde, três. Vera, dois. Ibrahim, os mesmos de Leonor. Mariana, o que a vida lhe trouxer: “Penso que seria muito feliz casada, com filhos; mas também penso que seria muito feliz se não casasse e não tivesse filhos. Ter filhos não é obrigatório.”.Martim é outro que quer ser pai: “Mas o meu primeiro objetivo é entrar na faculdade e evitar que os meus pais tenham de pagar por isso, porque ainda têm outro filho. Depois, é um bocado o estereótipo: encontrar uma mulher e ter filhos.”.Planeta, guerra e SNS.Leonor tem medo das mudanças climáticas e queixa-se do “egoísmo das pessoas”. Martim e Dinis chamam a atenção para as temperaturas altas que se fizeram sentir nos últimos dois meses. “Isto não é normal; estamos em abril e já começámos a ir à praia”, diz Dinis, pessimista: “Isto vai ser muito grave; se em abril de 2024 estamos a ir à praia, daqui a uns 20 anos estaremos com temperaturas extremas no mesmo período.” Daqui a duas décadas, Dinis terá 34: “Já terei filhos, e muito que pensar nas gerações futuras.”.Pedro coloca um fardo nas costas da geração a que pertence: “É a minha geração que tem de resolver os erros do passado. Compete-nos fazer isso. Somos a última hipótese. Se passarmos essa responsabilidade para os nossos filhos, está tudo perdido.”.Martim concorda. “Ou é agora ou é tarde.” Só vê uma solução, radical: “Outra pandemia. Quando estivemos confinados em casa, a poluição baixou bastante. Se estivéssemos uns quatro ou cinco anos confinados, o aquecimento global não aumentava.” Dinis acredita que regrediria. E Sara questiona quem continua a poluir os oceanos com plásticos. “Que mundo é este?”.A urgência em legislar a favor do planeta, cortando nos combustíveis fósseis, “civilizando” as pessoas, ou protegendo “água e florestas”, é uma prioridade para estes jovens. Mas há outras. A guerra: “Só de pensar na possibilidade de a Espanha invadir Portugal e eu ter de ir lutar pelo meu país é aterrador”, diz Martim, referindo-se à invasão da Ucrânia pela Rússia..Percebe o lado de quem não ajuda a Ucrânia. “Se forem ajudar a Ucrânia e atacarem a Rússia, vão abrir caminho à Terceira Guerra Mundial. E eu acho que ninguém quer isso.”.Matilde revela o mesmo medo: “O nosso país não está preparado para uma guerra. As nossas Forças Armadas não estão preparadas. Por isso é que ninguém se quer inscrever.”.Leonor lança um novo tema: “O mais importante é a saúde. O meu avô esta à espera há imenso tempo para ser operado. E as consultas são muito caras. Não é justo.” “O meu avô está à espera de uma operação há muitos meses. A minha avó está à espera de consultas. Eu vejo o tempo que isso demora; não devia ser assim”, diz Vera..Votar, votar, votar.“Claro que nos arriscamos a perder direitos”, diz Pedro, recordando que, ao longo da história, “a Humanidade foi conquistando e revertendo direitos”..Para Dinis, “as pessoas que pensam que perder este ou aquele direito é indiferente, não sentiram na pele o que era não os ter. Por exemplo, a liberdade - quem não se importa de a perder, ou não lhe dá valor, não tem bem a noção do que custou conquistar esse direito para as gerações poderem usufruir dele. Como não estiveram a trabalhar no duro para os conquistar, não se importam de os perder”. Aceitariam perder a liberdade? “Se quiserem voltar ao antigo regime, temos de protestar”, defende Martim: “Dantes não podíamos estar aqui a falar com jornalistas.”.Ibrahim mostra-se menos otimista: “Tenho colegas que não ligam muito à democracia, nem ao voto.” Vera acha mal: “Este ano votei pela primeira vez. Gostei muito. Senti que tinha uma certa responsabilidade. Fui de consciência muito tranquila e consciente do que ia fazer.”.Devem permitir-se vivas a Salazar e à ditadura? Ou dizer ‘Abaixo a liberdade e o 25 de abril? “O direito de dizer isso há sempre. Há e deve haver”, começa por responder Martim. “Podemos não concordar. Porque a dúvida é: será que alguém concorda?”.É Pedro quem responde: “Há muita gente que concorda, sim. Veem mais o bem que o Salazar fez do que o mal”. Para Sara, “todos têm direito de dizer o que pensam.” “Mas, no meu ponto de vista, não há razão para dizer isso.” Assegura não conhecer quem goste de viver sem liberdade de expressão..“Às vezes a liberdade também traz a estupidez”, diz Matilde. E explica: “As pessoas que dizem que o 25 de Abril não é importante sempre tiveram a liberdade garantida. Para eles é uma coisa fácil e sem importância. Só que não é.”