O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, em nome da “estabilidade” e da “continuidade política”, defende um “pacto de regime”entre PS e PSD para a Saúde, tendo em conta a concentração de problemas no setor. Um dia antes destas declarações, a 12 de agosto, o comentador político e antigo presidente do PSD Luís Marques Mendes adiantara a mesma ideia, pelo menos este ano. Marques Mendes, em 2006, quando liderava os sociais-democratas, protagonizou um pacto de regime para a Justiça, em colaboração com o então primeiro-ministro José Sócrates. Porém, foi um parto difícil, com críticas e acusações de parte a parte e com um empurrão do antigo Presidente da República Aníbal Cavaco Silva, para que o aperto de mão entre Governo e oposição acontecesse. 18 anos depois, num contexto diferente, impõe-se questionar se faz sentido este tipo de acordos entre as forças políticas mais representativas. “Penso que se deve evitar banalizar a expressão ou a ideia de pacto de regime”, propôs ao DN o antigo secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros do PS Vitalino Canas. Na perspetiva do também professor de Direito e constitucionalista, “o pacto de regime é algo que as principais forças políticas, as principais elites políticas de um país, celebram quando é necessário fazer alguma alteração significativa no paradigma que está em vigor”. No que diz respeito à Saúde, Vitalino Canas considera que o que deveria estar a ser debatido é um “pacto de estabilidade”, uma vez que nenhum dos dois partidos demonstrou “divergências de fundo em relação ao modelo que está na Constituição, o modelo do Serviço Nacional de Saúde (SNS), público, universal”. A referência à lei fundamental não foi inadvertida, porque para Vitalino Canas “o grande pacto de regime que houve em Portugal, e em que PS e PSD têm estado sempre envolvidos, é a Constituição [da República Portuguesa]”. Como reação às palavras de Marcelo, o deputado do PS João Paulo Correia, que coordena o partido na Comissão de Saúde, disse ao DN que “é preciso mais investimento no SNS e não desviar recursos públicos do SNS para o privado”, criticando o plano de emergência do PSD para este setor. Questionado sobre se a aparente inclinação que o PS demonstrou para não assinar um acordo com o PSD para a Saúde significa que um pacto de regime pode fracassar, devido às divergências face ao peso do Estado na Saúde e eventuais parcerias com o setor privado, Vitalino Canas afastou a ideia. “O Partido Socialista nunca recusou a complementaridade do setor privado em relação ao setor público, e o PSD também nunca rejeitou que o setor privado deve ser complementar em relação ao setor público. Aí os partidos não se desentendem. Agora, se eu bem leio, onde existe desentendimento é sobre o grau em que um e o outro deve ter responsabilidades na materialização do modelo constitucional”, explica, consolidando a tese de que o que está em jogo não é um pacto de regime mas um pacto de estabilidade, porque não implica alterações no modelo do SNS. Mas Vitalino Canas não afasta divergências entre os dois partidos, que terão de ser resolvidas para bem do interesse público, recomenda. Assim, para o antigo governante é importante que “os partidos se entendam em relação a um equilíbrio entre os vários setores que podem ter um papel no SNS, e que depois se entendam também em relação a dar tempo, não utilizar isto como uma arma sucessiva de arremesso, quando todos nós percebemos que isto possivelmente não está muito dependente daquilo que os governos façam num momento, mas daquilo que os governos tenham a coragem de fazer com uma perspetiva de longo prazo”..Receita para um acordo .Com menos esperança num entendimento entre PS e PSD, o antigo ministro da Segurança Social e do Trabalho António Bagão Félix, ao DN, afirma que não é viável um pacto de regime, “porque os partidos continuam a olhar excessivamente para os seus interesses de curto prazo”. Até porque, continua o antigo governante eleito pelo CDS, este tipo de acordo “exige que os partidos tenham capacidade para distinguir os interesses de curto prazo, dos próprios partidos, dos interesses do país, a médio e longo prazo”. Tendo em conta que, desde que há democracia em Portugal, só um único pacto de regime foi concretizado com sucesso (para além da Constituição) - o assinado por Marques Mendes e Sócrates, em 2006, para a Justiça -, a Saúde não parece ser um terreno fértil para este tipo de acordo, continua Bagão Félix..Em primeiro lugar, explica que “a área da saúde está capturada por lógicas puramente ideológicas. Veja-se a título de exemplo a questão do papel do setor privado face ao público, se deve ser complementar, se deve ser substitutivo, se deve ser outro recurso qualquer. Quando o que é preciso é que se conjuguem todos os recursos, seja de que natureza for, para alcançar uma melhor prestação de serviços aos cidadãos”, explica. Como se esta barreira “quase insuperável”, na perspetiva de Bagão Félix, não fosse suficiente para condicionar um acordo nesta área, o também professor catedrático ainda acrescenta que “o setor está excessivamente exposto ao casuísmo”, ou seja, ao aproveitamento “de factos criticáveis e negativos” para apontar o dedo aos partidos, sejam os do Governo ou oposição..“Até podem estar, e estão certamente, a ocorrer coisas muito positivas no domínio da prestação que é o nosso SNS. Mas basta uma notícia sobre um problema grave na área da obstetrícia ou em qualquer outra área da saúde para isso anular o que de bom se faz”, sustenta, acrescentando que isto conduz a um outro problema, do qual todos “os partidos sofrem”, ainda que “não gostem que se diga”: “Uma vertigem de populismo”. Para além destas barreiras, o antigo ministro, que também tutelou as Finanças, assinalou a redução do “horário semanal na função pública de 40 para 35 horas, ou seja, uma redução de 12,5% do tempo de trabalho”, como um dos fatores que estão na origem dos vários problemas na Saúde..“Infelizmente, aconteceu no início da geringonça”, lembra Bagão Félix, classificando esta medida como “criminosa”, “entre aspas”, esclarece, reforçando que é “politicamente criminosa”. Na desconstrução desta tese, o antigo ministro explicou ao DN que, quando há uma redução de 12,5% do tempo de trabalho, três hipóteses se colocam”. .Se, por um lado, “estes 12,5%” poderiam ser “compensados pelo aumento da produtividade”, Bagão Félix sublinha que “na maior parte dos casos não é” o que acontece. Depois, continua, “estes 12,5%, a menos de trabalho, pago pelo mesmo valor, leva muitas vezes à degradação da qualidade dos serviços. Ou seja, quem é mais prejudicado são aqueles que pagam o imposto e aqueles que têm mais dificuldade em ter acesso a cuidados fundamentais de saúde”. .Por fim, esta redução no tempo de trabalho poderia ser compensada com um “aumento do número de funcionários”. Porém, se este acréscimo se dá “com o mesmo bolo financeiro, o resultado é que as carreiras na saúde pública tornam-se “menos sedutoras”, conclui o antigo governante..A meio da semana passada, na rentrée política do PSD - a Festa do Pontal, no Algarve -, o primeiro-ministro, Luís Montenegro, anunciou uma única medida para a Saúde, com a justificação de que o país precisa de mais médicos: Mais vagas nos cursos de Medicina e novos cursos. A medida mereceu críticas por parte da oposição, associações de estudantes e Ordem dos Médicos, com o bastonário, Carlos Cortes, a classificá-la como populista e irrealista, considerando que o problema não é falta de médicos mas a atratividade da carreira. .Sobre as urgências de obstetrícia e ginecologia, que têm estado no centro da polémica mais recente, com serviços fechados, Bagão Félix lembrou que, agora, “nascem menos de metade das crianças do que nasciam há 30 anos” e “não havia ainda o setor privado pujante e dinâmico como hoje existe”. Perante este cenário, o antigo governante pergunta por que motivo é que estes serviços estão como estão. “Não tenho resposta, mas tenho pelo menos duas questões: Uma é como é que se podem organizar os recursos; A outra é como é que os recursos devem ser concentrados para servir melhor em termos de economia de escala.”.vitor.cordeiro@dn.pt