O preso político que chegou a casa (e à boleia) dois dias depois do 25 de Abril
O primeiro sinal de que 25 de abril de 1974 não seria apenas um dia mais para quem cumpria pena na Fortaleza de Peniche foi o silêncio. Mais precisamente, a ausência do aparelho de rádio, que os guardas costumavam ligar às primeiras horas da manhã na sala de convívio do Pavilhão B, permitindo que os presos políticos ouvissem a emissão da Renascença.
Quando José Iglésias e os restantes prisioneiros saíram das celas individuais, às sete da manhã, estranhando a falta de ruído, já a coluna liderada por Salgueiro Maia chegara ao Terreiro do Paço. E, mesmo ali em Peniche, forças do Movimento das Forças Armadas posicionavam-se para tomar de assalto a fortaleza e libertar os 36 presos políticos que lá se encontravam. Mas os elementos da Direção-Geral de Segurança (DGS), designação que a PIDE recebera na fase final do Estado Novo chamada Primavera Marcelista, não queriam render-se, tal como na sede de Lisboa, de onde viriam no final do dia a disparar sobre a multidão concentrada na Rua António Maria Cardoso, matando quatro pessoas.
Nada disto poderia imaginar, ao acordar nessa quinta-feira, quem meio século depois recorda esses dias ao DN, a poucos metros do local onde foi detido pela PSP, na Rua do Sol ao Rato, a 6 de fevereiro de 1973, quando distribuía um comunicado a convocar uma manifestação anticolonialista. José Iglésias, que tinha apenas 23 anos ao recuperar a liberdade, tinha sido condenado a três anos de prisão e à perda de direitos políticos por 15, por atividades contra a segurança do Estado, mas aguardava um segundo julgamento que lhe poderia valer mais 10 a 12 anos de prisão. Era acusado de ter sido autor moral de um assalto para obter equipamentos de impressão.
As dúvidas não tardaram a dissipar-se em Peniche. Um dos guardas confirmou a outro preso, Rui d’Espiney - que, tal como Francisco Martins Rodrigues, foi preso pela execução de Mário Mateus, infiltrado da PIDE no Comité Marxista-Leninista Português -, que ocorrera um golpe de Estado. “Ficámos preocupados e reunimos para ver o que a gente havia de fazer. Passado um bocado, ligámos a televisão da sala de convívio. Nós é que a ligávamos e eles esqueceram-se de retirar a antena. Quando chegou a hora da emissão, vimos as notícias”, recorda José Iglésias, sem evitar rir-se do absurdo da situação. Os comunicados lidos nos estúdios da RTP retiraram qualquer hipótese de ser uma iniciativa de “ultras”, como o general Kaúlza de Arriaga, descontentes com a relativa abertura do regime preconizada por Marcello Caetano.
Outro guarda revelou que o diretor da Fortaleza de Peniche resistia à ideia da rendição. “Aí tivemos receio, desmontámos algumas portas de celas e barricámo-nos, para nos tentarmos proteger”, explica Iglésias, que trocara a Figueira da Foz por Lisboa para estudar no Instituto Comercial, envolvendo-se na contestação à ditadura. Integrava os Comités de Luta Anti-Colonial e a Resistência Popular Anti-Colonial, enquanto cumpria serviço militar no Quartel do Batalhão de Sapadores dos Caminhos de Ferro, temendo que, também para si, a Guerra do Ultramar se tornasse uma realidade muito em breve.
Torturado em Caxias
Estava a distribuir propaganda do Comité Amílcar Cabral da Resistência Popular Anti-Colonial, junto ao Hospital Militar, na Estrela, quando foi surpreendido pela PSP. Sebastião Lima Rego, que seguia consigo, foi logo capturado, mas Iglésias fugiu a correr pelas ruas de Campo de Ourique, enquanto a polícia disparava tiros de pistola, e só foi apanhado, quase no Largo do Rato, porque um transeunte o derrubou. Ainda esteve sob custódia militar, no seu quartel, tendo planos de fuga e passagem à clandestinidade - não seria a primeira vez, pois já o fizera aquando da detenção de membros de organizações a que pertencia -, mas o amigo que o iria auxiliar também foi detido, pelo que acabou entregue pela Polícia Militar à DGS, seguindo para Caxias.
Por lá encontrou o inspetor Inácio Afonso, conhecido pela alcunha “Cavaleiro Branco” por não deixar marcas nos presos políticos. Submetido à tortura do sono por dez dias, com safanões para se manter acordado, não tardou a sofrer as consequências. “Tinha visões, como é normal. E ao fim de dez dias comecei a urinar sangue. Deixaram-me a descansar por um dia e depois foram mais seis de interrogatório e três meses num quarto isolado”, relata, admitindo que “evidentemente foi melhor, apesar de não me dar bem com todos”, passar para uma cela coletiva, dividida com outros opositores ao regime, antes de ser condenado e transferido para o 2.º andar do Pavilhão B da Fortaleza de Peniche, com uma cela só para si e liberdades de circulação inexistentes em Caxias, onde mais não tinha do que um recreio rodeado de muros para apanhar sol.
E ainda havia a televisão na sala de convívio, na qual pôde assistir à proclamação da Junta de Salvação Nacional. Mas lá dentro também havia notícias. “Soubemos que estava tudo resolvido e que nos iam soltar”, diz o antigo prisioneiro político, pai do deputado do PS Miguel Iglésias. Só que houve uma reviravolta quando se soube que não iriam sair três dos prisioneiros, cuja libertação era vetada pelo líder do Movimento das Forças Armadas, António de Spínola. Além de Rui d’Espiney e Francisco Martins Rodrigues, estava em Peniche Filipe Viegas Aleixo, envolvido no sequestro do paquete “Santa Maria”, no qual fora morto o terceiro piloto, João José Nascimento Costa.
O impasse marcou os dias 25 e 26, com a solidariedade a sobrepor-se à “ansiedade muito grande” de quem se recorda “vagamente” de não ter comido nada ao longo desse tempo. “No nosso piso, dissemos que ‘ou saem todos ou não sai ninguém’”, recorda quem só transpôs os portões da Fortaleza cerca da uma da manhã de 27 de abril.
Parte da população de Peniche e familiares dos prisioneiros estavam lá fora, à espera que a situação se resolvesse - os últimos prisioneiros só saíram por volta das três da madrugada -, mas Iglésias não tinha ninguém. Valeu-lhe outro preso, Tomás, que era das Caldas da Rainha e perguntou, candidamente, ao seu pai: “Não te importas de o levar à Figueira da Foz?” Assim sucedeu. “Foram espectaculares. Fui com eles até às Caldas, deixaram lá o filho, e o pai foi levar-me. Devo ter chegado às seis ou sete da manhã.”
Chinelo no Parque Mayer
José Iglésias, que já tinha perdido a mãe, foi bem acolhido pela família. E, mesmo com Lisboa a fervilhar com a atividade política que lhe custara mais de um ano de liberdade, preferiu ficar na terra natal. “Arranjei emprego e construí a minha vida”, conta quem mais tarde voltaria à capital, para onde tinham sido levados os haveres deixados pelos presos de Peniche. Na madrugada da libertação saíra “com a roupa que tinha e pouco mais”, mas quando chegou à sala do Parque Mayer, onde “estava tudo espalhado”, mais não encontrou além de um chinelo.
Também caricato foi outro problema. Três ou quatro anos após o 25 de abril de 1974, quando quis tirar a carta de condução, precisou da caderneta militar. E o sargento que o atendeu, ao procurar o seu processo, disse-lhe qua tinha dois problemas. “O primeiro é que tinha sido despromovido, mas que podia recorrer. Disse-lhe que não era preciso, e que até ficava bem no currículo. O segundo é que havia um processo, pois tinham andado à minha procura”, relata, satisfeito por acrescentar que não sofreu qualquer consequência por não terminar o serviço militar que deixara a meio.
Sobre a militância que lhe custou mais de um ano de liberdade, Iglésias tem a dizer que não tem arrependimentos. “Voltaria a fazer o mesmo. Nós queríamos a liberdade, queríamos acabar com a Guerra Colonial, queríamos um país onde pudéssemos todos viver. E acho que isso tudo foi conseguido.”