Inédito encontro 27+Modi é prémio indiano para Costa
Pandemia não permitiu saída de Deli do primeiro-ministro e obrigou ao adiamento da cimeira bilateral, mas mesmo por via digital europeus presentes no Porto vão poder reunir-se com o líder indiano.
O agravamento da pandemia na Índia, onde os casos de covid-19 ultrapassaram já os 20 milhões, levou ao adiamento da cimeira bilateral Portugal-Índia prevista para o Porto, mas não impedirá hoje o histórico Encontro de Líderes UE-Índia, ainda que em versão digital. E Portugal tem especial interesse no estreitamento das relações entre os 27 e o gigante da Ásia do Sul, sublinha o embaixador em Nova Deli, Carlos Pereira Marques: "Portugal mantém, com a Índia, relações sólidas e de confiança recíproca, alicerçadas num rico passado histórico comum, numa partilha de valores fundamentais e objetivos estratégicos, mutuamente reconhecidos e numa proximidade humana, sem paralelo noutros povos. Este relacionamento tem sido intenso nos últimos anos, tendo atingido, no plano político, um grau de excelência nunca antes registado. Estão assim criadas as condições para o desenvolvimento das relações noutras áreas fundamentais, tais como a cooperação científica e tecnológica - esta já com um significativo peso bilateral -, o comércio e o investimento, que o potencial do mercado indiano torna especialmente atrativas."
Em causa os cinco séculos de ligação desde a chegada de Vasco da Gama a Calecute em 1498, o simbolismo de Goa, a boa relação pessoal que existe entre os primeiros-ministros António Costa e Narendra Modi (troca de visitas em 2017), mas sobretudo a identificação pelos dois lados de vantagens na parceria. Do ponto de vista português, não esquecer que a Índia é a sexta economia mundial e em ascensão.
O embaixador Carlos Pereira Marques realça a importância do encontro de líderes que Modi fez questão de manter apesar de a covid-19 lhe trazer a nível interno uma contestação inédita desde que foi eleito em 2014: "A atual presidência portuguesa da UE veio evidenciar, ainda mais, a comunhão de objetivos que nos liga à Índia, em áreas-chave como as transições verde e digital, a resiliência económica, a defesa do multilateralismo e a crescente necessidade de diversificação das relações internacionais, num mundo multipolar. Mas a nossa presidência - que decorre num contexto pandémico muito grave - veio também reforçar os laços de confiança mútua, agora no plano europeu. A determinação de Deli em manter o histórico Encontro de Líderes da União Europeia-Índia - pese embora a dramática evolução epidemiológica no país - de modo que ele possa ainda decorrer no decurso da nossa presidência, é uma demonstração do seu reconhecimento pelo papel de Portugal na aproximação entre os dois blocos e da sua crença de que o fazemos, acima de tudo, por convicção."
Acrescenta o diplomata que o encontro do Porto, no qual o primeiro-ministro Modi participará virtualmente, "constituirá um marco fundamental no reforço e na valorização do relacionamento estratégico entre a Índia e a UE, abrindo novas vias de parceria e colaboração futura. Que Portugal possa ter contribuído para esse resultado constitui para nós um motivo de orgulho".
Foi em 2000, durante uma anterior presidência portuguesa, que se realizou a primeira cimeira UE-Índia, a qual se repetiu já 14 vezes, com intermitências, e sempre se limitando o primeiro-ministro indiano a encontrar os Presidentes da Comissão e do Conselho Europeu. É pois uma novidade absoluta o encontro dos líderes dos 27 com Modi.
Professor da AESE Business School e atualmente em Mumbai, Eugénio Viassa Monteiro é um entusiasta deste aprofundamento de relações entre a Europa e a Índia, ligados pelos valores democráticos: "Os países da Europa Ocidental, agora ampliados com outros da Europa Oriental, podem vir a "desaparecer" da cena mundial ou ficar sem voz, quando outros mais populosos, antes arrasados pelo colonialismo, estão hoje pujantes e intelectualmente vibrantes. Entre eles citaria a Índia e a China. A China começou o processo de modernização mais de 12 anos antes. Mas as potencialidades da Índia são extraordinárias: é um país democrático, soube absorver e ultrapassar cada um dos graves problemas de carácter social, passando a ser uma potência na nova economia e colaborando com todos os países avançados em pé de igualdade, senão de superioridade. Não estranha ver hoje um elevado número de dirigentes de topo das organizações americanas presididas por pessoas originárias da Índia (CEO da IBM, da Microsoft, da Google, só para indicar algumas). Por tudo isso parece ser da maior importância que o Ocidente, que preza a liberdade, estabeleça alianças muito fortes, e para durar, com países como a Índia, que continuarão a afirmar-se no futuro, dado terem uma população muito jovem, ávida de aprender e saber, trabalhadoras e com ideais."
O académico nascido em Goa, e autor de O Despertar da Índia, também acredita nas vantagens competitivas da Índia sobre a China, que classifica como totalitária: "A Índia nunca teve ou terá pretensões imperialistas de conquistar e dominar, como os ocidentais ou a China. Por isso mesmo, a Europa deveria aliar-se com a Índia e outros países democráticos do Oriente (Japão, Austrália, Coreia do Sul, Filipinas, Indonésia, etc.) para fazerem uma barreira de dissuasão face a veleidades da China. Aliança significando maior presença de empresas europeias na Índia e mais investimentos, para produzir artigos de toda a variedade, para satisfazer as necessidades de todo o mundo livre."
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Foi em 2000, durante uma anterior presidência portuguesa, que se realizou a primeira cimeira UE-Índia, a qual se repetiu já 14 vezes, com intermitências, e sempre se limitando o primeiro-ministro indiano a encontrar os Presidentes da Comissão e do Conselho Europeu. É pois uma novidade absoluta o encontro dos líderes dos 27 com Modi.
Esta ideia da Índia como alternativa à China, partindo do princípio de que é necessário que algum dos gigantes asiáticos seja a fábrica do mundo, deve fazer lembrar que até ao século XIX eram elas as maiores economias e que só a colonização britânica da Índia e os tratados desiguais impostos aos chineses interromperam essa liderança, então um terço do PIB mundial para cada um dos colossos, hoje quase empatados nos 1,4 mil milhões de habitantes.
Decisivo para o futuro das relações entre a Europa e a Índia, e para o papel-chave que Portugal quer ter nessas relações, é a própria visão que os indianos têm do seu potencial e o modo como serão capazes de ultrapassar obstáculos como o atraso em relação à China (que é a segunda maior economia, só atrás dos EUA, e cinco vezes maior do que a da Índia) e a sua integração num mundo que talvez venha a ser bipolar e não o desejado multipolar.
"A Índia autoperceciona-se como uma grande potência num sistema internacional multipolar do futuro. Parece-me que tem potencial para isso. A economia indiana tem crescido consideravelmente e a própria cultura estratégica da Índia está em adaptação para chegar a esse objetivo. A pandemia poderá atrasar este desenvolvimento, uma vez que, segundo o Banco Mundial, a pobreza no subcontinente aumentou para mais do dobro só no primeiro ano de pandemia, o que provavelmente significa um retraimento económico bastante acentuado. Além disso, tem dois grandes obstáculos para ultrapassar. O primeiro é a China. O ministro dos Negócios Estrangeiros, S. Jaishankar, afirmou num livro que publicou no ano passado que a Índia está ainda hoje a pagar o preço de ter começado a sua reforma económica mais de uma década depois de Pequim. É verdade. A China chegou mais cedo quer às matérias-primas necessárias à industrialização quer aos mercados de exportação. É um problema que a Índia terá de contornar - daí que Nova Deli esteja interessada num acordo comercial com a Europa - que, de alguma forma, contraria o seu princípio quase sagrado de autonomia estratégica. O segundo problema é esta conceção de mundo multilateral. Nova Deli planeia toda a sua política externa partindo deste pressuposto. Volto a citar S. Jaishankar que diz que a política externa indiana passa por empenhar-se na relação com os EUA, gerir a relação com a China, cultivar uma relação com a Europa, garantir a relação com a Rússia e trazer o Japão para mais perto da Índia", explica Diana Soller, investigadora do IPRI-Nova.
Afirma ainda a académica que "esta postura combina com a cultura estratégica indiana de criar e manter relações com todos os Estados poderosos do mundo, mas caso o sistema internacional se bipolarize - sendo os principais atores os EUA e a China - Nova Deli terá de fazer escolhas e verá o seu desejo de ascender a grande potência adiado. "O facto de a Índia ter chegado tarde a esta corrida pelo poder político e económico internacionais condiciona o país bastante mais do que a administração Modi, que, em parte, se legitima através de um nacionalismo orgulhoso projetado no futuro, gosta de reconhecer."
leonidio.ferreira@dn.pt
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