Mário Monteiro: “Para ganhar a obra tinha de dar 120 mil euros”
Mário Monteiro é hoje líder do Chega/Ovar, mas foi durante 40 anos militante do PSD. O seu nome é apontado numa denúncia anónima como tendo sido intermediário de um empreiteiro na entrega de subornos a Salvador Malheiro. Nesta entrevista, assume que entregou vários envelopes ao presidente da Câmara de Ovar e diz-se disponível para contar tudo ao Ministério Público.
Porque decidiu dar esta entrevista?
Eu apenas estou a dar esta entrevista pelo facto de o eng. Salvador Malheiro ter dito na notícia que saiu [no DN] que eu era uma pessoa sem credibilidade e, por isso, quero demonstrar que os factos que vieram na denúncia, que não sei quem fez, são verdadeiros.
Foi surpreendido por essa denúncia?
Claro, porque já se passaram muitos anos e estava longe de pensar que agora, em 2024, vinha a ser envolvido nisto.
O seu nome aparece numa denúncia anónima onde se diz que apresentou o eng. Barros de Sousa a Salvador Malheiro. Qual era a sua relação com Barros de Sousa, que disse ao DN que não se lembrava de si?
Conheço-o perfeitamente. Em 2011 ou 12 ele teve um problema, assaltaram-lhe a casa. Eu nessa altura trabalhava com equipamento de segurança e um sócio que eu tinha, que era um amigo dele, pediu-me se eu ia lá fazer um estudo de segurança. Foi quando o conheci.
Há um momento em que Barros de Sousa lhe pede para o apresentar a Salvador Malheiro?
Ele disse-me que ia concorrer a uns concursos em Ovar. E eu disse, “ah, ótimo, olha, dou-me muito bem com o presidente da Câmara, porque, como sabe, pertenço ao PSD local há mais de 40 anos”. Longe de mim pensar que isto ia ter as proporções que teve.
Marcaram um almoço?
Depois dessas conversas, falei com o eng. Salvador Malheiro. E um dia proporcionou-se o encontro e fomos lá à Câmara e o presidente disse, “então, são quase horas de almoço, vamos almoçar”. Fomos almoçar ao [restaurante] Bosque, onde a conversa foi em torno de obras. Eu, como era um militante muito ativo do PSD, achei aquilo natural, falar em obras... E na altura a obra que estava em cima da mesa era um museu escolar em Válega. Ele [Barros de Sousa] disse que nessa altura já tinha concorrido, estava a preparar o concurso. E então foi acordado, nesse almoço, que ele, para ganhar a obra, tinha de dar 120 mil euros para o partido, para o PSD. E eu achei aquilo natural, como eu não estava metido nessas...
Não percebeu que era uma coisa ilícita?
Não. Eu fiquei até satisfeito. Como era um militante ativo, disse, “pronto, vai-se acabar o problema das contas do partido aqui na terra”.
O partido tinha problemas com as contas?
Claro, foi sempre deficitário. Quem quiser analisar as contas anteriores vê que tinha prejuízos, não grandes, mas também não tinha qualquer tipo de grande atividade.
É verdade que lhe pediram para entregar 120 mil euros em envelopes a Salvador Malheiro?
Foi dito, na altura, que isso tinha de ser por tranches, porque era difícil tirar 120 mil euros de um local. Então ficou acordado que num período, entre meados de 2016 e início de 2017, essas tranches de dinheiro apareciam. E Salvador Malheiro disse ao eng. Barros que seria eu a receber, que ia fazer as entregas, que eu depois entregava ao eng. Salvador Malheiro.
Portanto, servia de correio?
Exato, e eu, à altura, francamente, ou por ingenuidade, ou por outra coisa qualquer, não sei, não me ocorreu que estivesse a cometer alguma situação menos correta. E como aquilo era para o PSD…
Barros de Sousa entregava-lhe dinheiro em envelopes?
Envelopes. O primeiro, que eu vi, porque o envelope não vinha fechado nem lacrado… Eu vi que havia lá uma soma de dinheiro.
Quanto é que estava nesse envelope?
Penso que no primeiro envelope andava à volta de 10 mil euros. Eu contei até oito mil, porque aquilo eram notas grandes, era fácil de contar. Peguei no envelope, fui ter com o eng. Salvador Malheiro e entreguei-lhe.
Como é que fez essa entrega?
Em mão. A primeira penso que foi no estacionamento da Câmara. E os outros envelopes, por vezes, eram entregues em sítios onde ele estava a almoçar ou a jantar. Se estava acompanhado, dava-me a chave do carro para ir lá pôr o dinheiro no porta-luvas ou debaixo do banco, Dava-lhe a chave e ia à minha vida. Se ele estava sozinho, entregava-lhe.
Como é que combinavam essas entregas? Por telefone?
Sim, ele dizia-me, olha que é preciso ir lá falar com o fulano.
O fulano era quem? Barros de Sousa?
O engenheiro Barros. E eu, combinava, ligava ao Barros ou ele ligava para mim a dizer que lhe dava jeito em determinada zona, à saída da autoestrada. E eu fazia uns quilómetros, poucos, e ele fazia a parte toda da parte dele e entregava-me o dinheiro. Pegava no envelope e ia entregá-lo a quem pediu para ser entregue.
Tem ideia de quantas entregas fez?
Eu penso que umas sete ou oito ou nove, por aí. A última não a levantei, porque comecei a ver a dimensão. Comecei a fazer contas, está aqui muito dinheiro envolvido. De qualquer jeito ainda vai sobrar para mim.
Percebeu que afinal podia ser crime?
Eu digo assim, bem, eu não vou andar sempre a fazer de correio, porque eu não tenho nenhum ganho com isto, eu apenas sirvo de estafeta, como se diz na gíria. Sei que é dinheiro porque percebi que era dinheiro, porque é fácil ver o que envelope tem. E os envelopes não vinham fechados, até porque havia uma base de confiança.
Era muito próximo de Salvador Malheiro?
Muito próximo, estive na origem dele.
Como assim?
Em 2013, como era um militante muito ativo, já tinha feito parte de algumas comissões políticas locais, concelhias, e pronto… eu dispus-me a ajudá-lo. Ia fazer a campanha por ele e todas aquelas coisas que é preciso para se preparar uma campanha eleitoral de uma pessoa.
Portanto havia muita proximidade.
Eu estava várias vezes com ele. Eu jantava, como toda a gente sabe na terra. Isto não é nenhum segredo, porque as pessoas viam-nos nos restaurantes.
Quando percebeu que estava a cometer uma irregularidade o que é que fez?
Porque já se começava a ouvir uns zunzuns. Aquilo é um meio pequeno. E eu disse, bem, qualquer dia isto vai sobrar para mim.
O que é que fez? Falou com Salvador Malheiro?
Disse “não contes mais comigo” ao Salvador Malheiro. “Não contes mais comigo para andar a fazer este trabalho. Arranja quem tu quiseres, eu não quero saber nada disso, senão qualquer dia isto vai dar bronca.”
Como é que Salvador Malheiro reagiu a isso?
Ele nessas coisas é muito tranquilo, ele reagia naturalmente. Pronto, após essa situação, a obra do Esmoriztur, neste período de um ano, ano e picos, inicia-se.
Já tinha acabado a do Museu de Válega?
Sim. Após isso, inicia-se com o mesmo empreiteiro. E então, eu fui à inauguração do arranque da obra, mas fui lá como mero simpatizante, achava que aquela obra até era interessante para a cidade de Esmoriz e fui lá, como muitas pessoas estiveram lá. A obra era para se fazer em quatro anos. Passado uns tempos, a obra foi andando. Mais no interior, no exterior via-se pouco. Passado uns tempos, começa a correr um boato de que a empresa que estava a fazer a obra foi à falência.
Falou com Barros de Sousa sobre isso?
Disse-lhe que isto cria mau ambiente, até porque a malta está aqui um bocado chateada na terra, porque a obra parou, depois de ter gastado tanto dinheiro. E diz ele, “pá, eu até um dia destes vou a Ovar, e quando for à Câmara, ligo-lhe para ir comigo”. E passado oito ou quinze dias, ele liga-me, a perguntar se eu estava por Ovar ou perto, se queria à Câmara. Queria que eu fosse com ele, e eu fui.
Ia com ele a que título?
Por amizade, ou por outra coisa qualquer, que na altura que eu pensei que era por amizade.
Quem eram as pessoas que estavam na Câmara para os receber?
O presidente. O Salvador Malheiro depois endossou-o para o engenheiro Pinto, que era o chefe da Divisão de Obras. Tivemos uma reunião, eu fiz a figura de corpo presente, que não era a minha área. O eng. Barros e o eng. José Pinto discutiram ali o assunto de meter mais 300 mil euros na obra. E eu ouvi aquilo e fiquei com a ideia de que os 300 mil euros eram para acabar a obra. Não tinha a noção dos valores.
O vice-presidente, Domingos Silva, também participou?
O eng. Pinto disse que isso não podia ser assim, que o Domingos Silva tinha de assinar, porque ele é que assina. Porque o Domingos Silva era o vice-presidente da Câmara e era o que tinha o pelouro das Finanças. Era próximo do meio-dia, o Salvador Malheiro diz-me, “pá, vamos almoçar”. Então, escolheu-se o restaurante Oxalá. E, portanto, combinaram aí esses 300 mil euros.
Ficou com a ideia de que esses 300 mil euros eram para quê?
Primeiro fiquei com a ideia que eram para acabar com a obra, mas depois não… Pronto, e depois, no almoço, pelas conversas envolvidas, deu-me a ideia de que aqueles 300 mil euros não eram para acabar a obra, devia ser para outra coisa qualquer.
Outra coisa qualquer?
A obra está lá, igual ao que estava.
Foi aí que se afastou definitivamente?
Eu afastei-me definitivamente, assim, aí, sim. Mas a minha separação, o corte de relações com Salvador Malheiro foi na altura da covid.
Por alguma razão especial?
Porque achei que ele, com as atitudes que tomou [impôs uma cerca sanitária a Ovar] , prejudicou muita gente que não tinha condições de viver. E teve de se andar a angariar alimentos para socorrer essas pessoas, e ele não se importou com isso.
Já falou com o Salvador Malheiro desde que saiu a notícia no DN?
Quando eu vi a notícia, no sábado, francamente, até nem lhe dei grande importância. Mas depois comecei a receber mensagens. E recebi uma chamada de Salvador Malheiro, pessoa que já não lidava comigo há ano e meio, que não me ligava. Não atendi, estava muito barulho lá dentro [na loja onde estava a fazer compras], e disse “presidente, eu ligo mais logo”, numa mensagem. Ele manda-me outra a dizer, “sem stress, tranquilo”, pronto. Quando saí do Intermarché, ia para lhe telefonar e ele está atrás de mim no carro, muito tranquilo. Fiquei muito admirado. Ou já sabia que eu estava ali, ou foi por mera coincidência. Pronto, a terra também não é grande, não é difícil de nos encontrarmos.
O que é que ele lhe disse?
“Eh pá, tem calma, isto não é nada. Não sabes quem é que fez a denúncia? Eu gostava de saber. Mas vou saber. Mas isto não vai dar em nada, porque eu já estou farto de responder a estas coisas, isto não dá em nada”. Disse, pronto, “depois mantém-te calmo”.
Malheiro disse-lhe que esta notícia e esta denúncia anónima não iam dar em nada?
Sim. E se eu sabia quem é que foi, porque havia lá factos que de facto pouca gente sabia. E eu disse, “pouca gente? Toda a gente sabe na terra o que se passa, pá. Porque tu não te escondes de ninguém para fazeres o que fazes”. Achei aquilo muito estranho, devido à falta de contacto no último ano e meio. Ele disse que eu não tinha credibilidade, porque era líder da concelhia do Chega/Ovar. E isso é que deu origem a que eu esteja aqui hoje, a falar.
Foi a reação de Malheiro que o fez falar?
Claro, porque vai dizer que eu não tenho credibilidade e depois vem ter comigo, no mesmo dia, a dizer para eu ter calma?
Está disponível para falar com o Ministério Público sobre isto?
Com certeza. Já seguiu uma carta do meu advogado a dizer que estarei disponível sempre, no dia em que for necessário, para falar com as autoridades. Porque não quero passar por ser uma pessoa sem credibilidade. E vou contar os factos do que se passou. Porque isto é verdade. Doa a quem doer. E pode ser que o MP até fique surpreendido com o resto, mas isso já são outras coisas.
Há uma altura em que usa o Facebook para fazer comentários sobre coisas que estariam menos bem na Câmara de Ovar, certo?
Foi na altura da covid.
E houve uma reação de Salvador Malheiro a isso?
A dizer, “estou muito chateado, chamas-me desonesto”. E eu disse, “é verdade, tu fizeste isto às pessoas de Ovar. Fizeste uma cerca sanitária, não a pensar nas pessoas, mas mesmo no teu prestígio pessoal. E passaste a ser conhecido a nível nacional por causa das asneiras que fizeste”.
Na altura era presidente de um clube de futebol?
Não, fui depois. Fui presidente do Sport Clube de Esmoriz.
E o clube recebia um subsídio da Câmara de Ovar?
O clube estava atulhado em dívidas, por isso é que me chamaram para tentar resolver o problema das pessoas a quem não se pagava. Felizmente resolveu-se bastantes coisas. Não consegui resolver tudo porque não cheguei com o mandato ao fim, por culpa do eng. Salvador Malheiro.
Porquê?
Ele, como uma pessoa vingativa que é, primeiro tirou logo 15 mil euros que o clube tinha direito de receber. Tínhamos 52 mil euros de subsídio, devido aos atletas das camadas jovens que o clube tinha. E ele em vez de 52 mil deu 39 mil euros.
Acha que ele retaliou contra si, por causa dos posts no Facebook?
Contra mim diretamente e o clube. Porque o clube é prejudicado, mas o presidente era eu. Aceitei o dinheiro e pedi num e-mail, ao serviço da Câmara, para me facilitar o dinheiro todo de uma vez. Responderam que a Câmara estava com problemas financeiros e que me iam dar em duodécimos. Eu aceitei. Recebi as primeiras duas tranches de três mil euros. Mas comecei a ver que havia muitas interferências da autarquia na condução do clube. Então saí e, na semana seguinte, ele deu um cheque de 33 mil euros ao clube, que era o que faltava pagar.
Salvador Malheiro diz que há uma cruzada contra ele e tenta ligar isso ao Chega. Quer responder a isso?
Isto não é político. Isto é um problema de ilegalidade na Câmara Municipal de Ovar, liderada por ele. Ele não é uma pessoa séria, toda a gente sabe. Não há cruzada nenhuma. Eu estou no Chega, podia estar noutro partido qualquer. Aderi ao Chega porque me pediram, porque sou um indivíduo com dinamismo e houve centenas, ou milhares, de militantes do PSD que saíram e foram para o Chega. Acho que sou um cidadão livre, com os meus direitos normais de cidadania. E estou no Chega como amanhã posso estar noutro ou em nenhum. Porque se o Chega um dia defraudar as minhas expectativas, também saio e acaba-se.