Cartazes da segunda marcha LGBT em Vila Real.
Cartazes da segunda marcha LGBT em Vila Real.Octavio Passos/Global Imagens

Marcelo vetou, mas a lei continua a obrigar as escolas a proteger alunos trans e LGBT

A lei 38/2018, que Marcelo promulgou, consagra a autodeterminação de género como um direito fundamental, proibindo a discriminação e assegurando direitos. Ainda assim, há pais preocupados com veto que trava definição de procedimentos.
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Marcelo Rebelo de Sousa vetou o decreto que estabelecia as medidas a aplicar pelas escolas para assegurar o direito à autodeterminação da identidade de género, mas esse veto não elimina o direito fundamental que ficou estabelecido pela lei de 2018, que o Presidente da República promulgou.

“A lei de 2018 continua em vigor”, sublinha ao DN Isabel Moreira, deputada socialista e uma das responsáveis pela redação deste decreto. Ou seja, a legislação continua a proteger o direito à autodeterminação de género, embora o veto tenha feito cair os procedimentos administrativos que vinculavam as escolas de forma mais explícita na sua proteção.

E o que é que diz a lei que está em vigor? No que toca às escolas, o diploma diz que “o Estado deve garantir a adoção de medidas no sistema educativo, em todos os níveis de ensino e ciclos de estudo, que promovam o exercício do direito à autodeterminação da identidade de género e expressão de género e do direito à proteção das características sexuais das pessoas”, o que inclui assegurar “o respeito pela autonomia, privacidade e autodeterminação das crianças e jovens que realizem transições sociais de identidade e expressão de género”.

Lei proibe discriminação

“Nenhum jovem pode ser discriminado”, afirma Isabel Moreira, sublinhando que o diploma vetado pelo Presidente vinha dar corpo a uma legislação que estava e continua em vigor (a lei 38/2018) que consagra a autodeterminação de género como direito fundamental, na senda de pareceres de várias instâncias internacionais, incluindo a Organização Mundial de Saúde (OMS).

Esse entendimento de vários organismos internacionais vai no sentido de deixar de olhar para o género como uma questão médica, caindo a obrigatoriedade de pareceres clínicos, mas mantendo apenas a exigência de um parecer que determine que a pessoa decide em plena liberdade o género com que se identifica.

É por isso que a lei 38/2018 desliga os procedimentos médicos de mudança de sexo da atribuição do género, ao definir que “nenhuma pessoa pode ser obrigada a fazer prova de que foi submetida a procedimentos médicos, incluindo cirurgia de reatribuição do sexo, esterilização ou terapia hormonal, assim como a tratamentos psicológicos e ou psiquiátricos, como requisito” da mudança de nome do registo civil.

Isabel Moreira recorda que esta foi a lei “que o Presidente da República promulgou” em 2018. E lamenta que agora, na nota de veto, Marcelo Rebelo de Sousa se refira a esta legislação como representando a defesa de “uma causa”.

“A causa são direitos fundamentais. A causa é dele, que promulgou a lei”, vinca a socialista, que diz que Rebelo de Sousa fundamentou a sua decisão “em argumentos que não se entendem” e que decidiu reagindo à “intensificação de uma campanha” que tem como subtexto as chamadas guerras culturais. De resto, a socialista compara os direitos protegidos nesta legislação com os que preservam os direitos das mulheres ou os que garantiram os direitos civis dos negros da América.

As razões de Marcelo

Marcelo Rebelo de Sousa deu essencialmente duas razões para vetar a lei: a necessidade de ter em conta a idade das crianças (algo que não está discriminado no diploma vetado) e a importância de os pais terem um papel mais ativo no processo.  

“Estando em causa realidades tão simples, mas tão significativas, para o dia-a-dia das crianças e dos adolescentes, como as actividades a desenvolver na escola, o vestuário ou acesso a casas de banho ou balneários, lidar com crianças de 5/6 anos do mesmo modo que com adolescentes de 13/14 anos, sem sequer se prever a participação consultiva, mesmo não vinculativa, de pais ou encarregados de educação na definição das medidas e sua adequação a cada situação escolar, parece ser de um voluntarismo teórico que se arrisca a, na prática, esvaziar a concretização do ideal mais generoso”, escreveu o Presidente.

O veto do diploma – que, por o Parlamento ter sido dissolvido não pode ser reconfirmado antes das eleições – não implica o fim da proteção do direito à autodeterminação de género, mas põe em causa “procedimentos administrativos nas escolas”, como explica ao DN o presidente da AMPLOS (Associação de Mães e Pais pela Liberdade de Orientação Sexual e Identidade de Género), António Vale.

Segundo Isabel Moreira, fica dificultada, por exemplo, a obrigatoriedade de a escola reconhecer o aluno por um nome que não seja aquele que lhe está legalmente atribuído, embora António Vale frise que a lei 38/2018 já salvaguarda esse direito e que, em vários casos, a AMPLOS conseguiu valer-se desta legislação para, através da Direção-Geral de Educação, obrigar escolas a usar o nome com que o menor se quer identificar. Com este veto, também fica à consideração do estabelecimento de ensino o procedimento a adoptar para que a criança use as casas de banho ou os balneários em segurança.

“A tentativa era de, com esta lei,  proteger um pouco mais e com isto estamos a desproteger”, lamenta António Vale, que diz que até agora a questão do nome, que é sempre o primeiro passo para uma transição de género social, “tem sido sempre feita com a família e é assim que tem de ser”, desvalorizando os temores que o Presidente invoca sobre a falta de envolvimento dos encarregados de educação.

De resto, nota o dirigente da AMPLOS, “o nome ou o vestuário não são decisões irreversíveis, como os tratamentos hormonais” e por isso entende que não faz sentido fazer distinção das crianças por idades.

Vale também critica a aparente mudança de opinião de Belém sobre o assunto. “O Presidente não está a ser consequente com o que aprovou em 2018”, afirma o presidente da AMPLOS, lembrando que na altura Marcelo Rebelo de Sousa começou por vetar  uma versão inicial do diploma, pedindo que fosse redigido por forma a garantir a necessidade de um atestado para a atribuição de um novo nome.

Apesar de todos contactos de pais que manifestaram o seu “stress” e “preocupação” pelas consequências do veto presidencial, António Vale garante que na maior parte dos casos a lei de 2018 tem sido suficiente para assegurar a proteção dos jovens trans em meio escolar. António Vale dá o exemplo do seu próprio filho que fez a transição social em 2019, mudando o nome, aos 15 anos “sem problemas nenhuns” quer na escola pública que frequenta no centro de Lisboa quer no centro de línguas privado em que também tem aulas.

Maioria das escolas aplica lei sem problemas

“De uma forma geral consegue-se fazer valer os direitos destas crianças. o problema é que as exceções são muito más”, comenta António Vale, notando que a taxa de suicídio entre os jovens transsexuais é particularmente elevada e que a lei  que o Presidente vetou iria “criar consistência” para que as forma de tratamento nas escolas dependesse menos do bom -senso dos diretores escolares.

Filinto Lima, presidente da Associação Nacional de Diretores de Agrupamentos e Escolas Públicas  (ANDAEP) desvaloriza a importância do tema que, embora não haja dados oficiais, representará uma ínfima porção da população escolar (Isabel Moreira acredita que atingirá um universo de “200 casos de crianças e jovens”).

“Para nós esta lei nunca foi um problema. A educação tem tantos problemas”, começa por reagir Filinto Lima ao DN, assegurando que “as escolas estão a aplicar a lei dentro do possível da melhor forma”. E há vários exemplos disso. Um deles é o do Agrupamento de Escolas Frei João de Vila do Conde, que há dois anos decidiu deixar de ter género nas instalações sanitárias e balneários. Nesta escola, há oito alunos que usam casas de banho comuns, cinco deles por questões de identidade de género, três por vergonha ou motivos de saúde.

Mas Filinto Lima conhece outros casos, em que a escola recorreu a outras soluções, como pôr crianças transgénero a usar as casas de banho dos professores, para garantir a sua privacidade.

Filinto Lima lamenta, apesar de tudo, a forma como “esta lei veio incendiar os ânimos” em escolas nas quais já há tantos problemas. “O problema com esta lei não foi a parte substantiva, mas a estratégia que os políticos usaram. Não ouviram quem está no terreno”, critica o professor, que questiona se outros edifícios públicos estão em condições de assegurar aquilo que as escolas já são obrigadas a garantir em relação aos trans.

A forma como a lei “incendiou os ânimos”, como diz Filinto Lima, foi bem patente na Convenção do Chega, em Viana do Castelo, onde os discursos com alusões às “casas de banho mistas” ou à “política de retrete” – como lhe chamou a deputada Rita Matias – foram dos que mais entusiasmaram a sala.

De resto, André Ventura foi o primeiro político a reagir ao veto presidencial, congratulando-se com a decisão. “Ao devolver a legislação à Assembleia da República, o senhor Presidente da República deixa claro que esta norma não entrará em vigor nesta legislatura e deixa claro que só uma nova maioria o poderá corrigir e, eventualmente, aprovar”, disse.

Mas em 2018 a lei que protege o direito à autodeterminação já tinha sido alvo de duras críticas à direita, com o CDS a atacar o considerava ser um “experimentalismo social”. De resto, foi por iniciativa de 84 deputados do PSD e do CDS e do socialista Miranda Calha que o Tribunal Constitucional (o TC) foi chamado a apreciar o decreto-regulamentar do Governo que estabelecia as regras para as escolas protegerem os direitos dos alunos trans e LGBT.  

O TC acabaria por entender que esta matéria não poderia ser regulada por decreto, mas apenas por lei da Assembleia da República e foi por isso que os deputados aprovaram a lei que o Presidente vetou numa altura em que não há maioria para ultrapassar esse veto, porque o Parlamento foi dissolvido.

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