"Magistrados que vão para a política não devem voltar aos tribunais"

"Pouco diálogo, nenhuma concertação e muito distanciamento", disse o presidente do STJ. Na abertura do ano judicial defendeu que as comissões de serviço dos magistrados devem ser repensadas. "Se a vocação política despontar no percurso de magistrado , a opção por esse novo caminho não deverá permitir o regresso à judicatura", declarou
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O Juiz Conselheiro Henrique Araújo escolheu citações para lançar as ideias que entende serem as mais relevantes para o debate sobre a Justiça.

Na cerimónia de abertura do ano judicial, que está a decorrer nesta tarde de quarta-feira, o presidente do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) começou por lembrar a "ironia" do ex-Ministro da Justiça, Laborinho Lúcio.

""(...) todos os anos na abertura do ano judicial temos aquela sessão pública que consideramos importante (...): fala o presidente da República, fala o primeiro-ministro, fala o ministro da Justiça, fala o bastonário da Ordem dos Advogados, fala o Procurador-Geral da República, fala o presidente do Supremo Tribunal de Justiça (...). Cada um deles diz de si bem, relativamente mal dos outros, todos normalmente menos bem do poder político, e o poder político apresenta todos os anos medidas regeneradoras da Justiça. Acaba a sessão, vão todos embora e nunca mais se encontram até ao ano seguinte, em que dizem a mesma coisa ou coisas parecidas" - fim de citação.

Citaçãocitacao "Tem havido pouco diálogo, nenhuma concertação e muito distanciamento quanto aos objetivos a prosseguir"

"Descontada a ironia", assinala Henrique Araújo, "esta apreciação não anda muito longe da realidade", uma vez que "tem havido pouco diálogo, nenhuma concertação e muito distanciamento quanto aos objetivos a prosseguir".

Defendeu que "a cerimónia de abertura do ano judicial deve ser mais do que um momento proclamatório dos intervenientes. Deve incorporar compromissos para um entendimento alargado das várias profissões forenses, de modo a que, no ano subsequente, se possa fazer o balanço do que foi e do que não foi alcançado".

No seu entender "a atual distribuição de forças políticas no Parlamento constitui uma oportunidade única para reformar o sistema de Justiça. Seria penalizador para a sociedade que, num contexto tão favorável, a doce e sedutora inércia acabasse por vencer".

A segunda citação é do Professor Antunes Varela, Ministro da Justiça em 1959: ""Mais do que do desafogo ou do conforto das instalações, mais do que a própria perfeição técnica do sistema legislativo, é de bons magistrados e de honestos funcionários de justiça que a coletividade necessita para seu governo".

O presidente do STJ manifesta o seu acordo com estas palavras "apesar de já terem decorrido mais de 60 anos".

Isto porque "sem querer, de modo algum, diminuir a importância de o sistema judicial estar dotado de magistrados competentes e funcionários honestos, nenhum modelo de justiça resiste sem uma produção legislativa de qualidade. Uma produção legislativa que não obedeça a impulsos espoletados por este ou por aquele caso judicial, pela atuação deste ou daquele tribunal ou por critérios de oportunidade política. As leis não se podem fazer com pressa, a rebate dos sinos."

Para Henrique Araújo seria importante que "a par de uma produção legislativa de qualidade, seria de grande utilidade a existência de um programa integrado de avaliação legislativa para medição do impacto das medidas adotadas em cada momento".

Terceira citação, a de um "autor de um artigo de opinião", cujo nome não foi referido, mas trata-se de António Barreto, no Público: "Sabemos, em poucas palavras, que a Justiça é lenta. Injusta. Socialmente desequilibrada. Cara. Parcial. Elitista. Ineficaz. Incompreensível. Complicada. Burocrática. Complacente com a corrupção. Por vezes, mesmo ela própria corrupta. Permissiva."

O presidente do STJ considera que esta "descrição tão negativa, tão arrasadora, não coincide, felizmente, com a realidade, embora reconheçamos que alguma da adjetivação se relaciona com aspetos a melhorar".

Salienta que "os meios de comunicação social desempenham, repito, um papel de extraordinária importância na divulgação e crítica das decisões judiciais e do funcionamento dos tribunais."

Citaçãocitacao"Aquilo que deveria ser o escrutínio feito através da notícia séria e rigorosa converte-se frequentemente em espalhafato mediático"

Porém "aquilo que deveria ser o escrutínio feito através da notícia séria e rigorosa converte-se frequentemente em espalhafato mediático", designadamente "as repetidas e descaradas violações do segredo de justiça continuam a alimentar, impunemente, as primeiras páginas de alguns jornais; o comentário sistematicamente genérico, de crítica fácil e infundada, ocupa cada vez mais espaço comunicacional; a exposição da vida privada das pessoas a braços com processos judiciais, transforma alguns meios de comunicação numa espécie de arena da devassa".

Reconhece que "é provável" que "pouco se pode fazer quanto a isso", mas pelo menos faz um apelo "ao sentido de responsabilidade da comunicação social como veículo de mediatização da Justiça e também para dizer que é mais do que tempo de se estancar a violação do segredo de justiça e de se punirem os seus responsáveis".

A concluir a sua intervenção, Henrique Araújo assinalou que "uma das grandes preocupações dos tribunais comuns é o envelhecimento das magistraturas".

"Como tenho apontado em diversas ocasiões, o acesso às Relações e ao Supremo Tribunal faz-se muito tardiamente. A promoção ao Supremo verifica-se, em regra, quando já se está muito próximo da idade que permite a jubilação", assevera.

Paralelamente, "a saída de magistrados do sistema não tem sido compensada anualmente com a entrada de novos magistrados, uma vez que o número daqueles excede o destes".

Por isso "é preciso intervir já, nomeadamente através da alteração da lei de acesso ao Centro de Estudos Judiciários e do reforço da sua capacidade formativa. Esta é, provavelmente, a questão mais candente, mais prioritária".

E deixa uma proposta que pode desagradar a alguns magistrados: "É necessário, em nome do princípio da transparência, repensar o regime das comissões de serviço de magistrados judiciais para cargos políticos ou para o exercício de funções relevantes de natureza política, tão nobres e dignas como as funções judiciais. Quando se escolhe a magistratura como profissão, essa escolha deve ter-se por definitiva. Se a vocação política despontar no percurso de magistrado, a opção por esse novo caminho não deverá permitir o regresso à judicatura".

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