António Costa percorreu as instalações inacabadas do futuro Museu da Resistência e Liberdade, no Forte de Peniche, na companhia de antigos presos políticos.
António Costa percorreu as instalações inacabadas do futuro Museu da Resistência e Liberdade, no Forte de Peniche, na companhia de antigos presos políticos.Mário Vasa / Global Imagens

Liberdade, resistência e grades. Costa visita obra do museu que será “testemunho de dor”

O primeiro-ministro cessante encontrou-se com antigos presos políticos no Forte de Peniche, entre eles o antigo deputado do PCP Domingos Abrantes e o fundador do BE Fernando Rosas.
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Paredes inacabadas, corredores refeitos, algumas celas intactas, ainda manchadas sabe-se lá de quê, cheiro sintético a tinta e diluente, vidros duplos estrategicamente colocados, mobília embalada e um letreiro a dizer coffee shop, no pátio da cisterna. É nesta fase de reconstrução que se encontra a Fortaleza de Peniche, onde a 27 de abril deste ano será inaugurado o Museu Nacional Resistência e Liberdade. Na visita que decorreu este domingo, com a comissão instaladora e membros do Governo ainda em funções, o primeiro-ministro demissionário, António Costa assinalou o local como sendo “a última etapa da luta pela resistência e pela liberdade”.

Tanto a viagem por estes corredores históricos como os seus acompanhantes levaram o chefe do Governo a lançar para o futuro o significado desta prisão.

“É deixar este seu testemunho de vida, este seu testemunho de dor, e este seu testemunho sobre o que foi a ditadura [do Estado Novo, o período de 48 anos que antecedeu a era democrática], às gerações que nos hão de suceder e que nunca poderão esquecer para nunca poderem voltar a vivê-lo”, disse o primeiro-ministro na sua intervenção final, entre os antigos presos políticos Domingos Abrantes e Fernando Rosas.

A visita arrastou-se através dos corredores daquela prisão que tinha cumprido o propósito de trancar as pessoas que se opunham, pelas suas ideias de liberdade, à ditadura. Foram décadas de histórias que ambos partilharam com António Costa.

José Tavares Marcelino, ex-preso político
José Tavares Marcelino, ex-preso políticoFoto: Mário Vasa / Global Imagens

Houve paragens obrigatórias, como aquela que aconteceu na cela onde o antigo líder comunista Álvaro Cunhal esteve preso e onde conseguiu pintar, escrever e pensar e, por fim, da qual conseguiu evadir-se. No total, foram onze anos de cárcere que não se limitaram a Peniche nem àquela cela em concreto. Para além de uma “solitária” onde qualquer outra pessoa teria perdido a noção do tempo, Cunhal ainda foi afastado da liberdade na Penitenciária de Lisboa.

Também o antigo deputado comunista Domingos Abrantes sentiu essa privação de liberdade. Foram nove anos e meio, lembrou a quem estava ali presente, enquanto três membros do Governo - a ministra da Presidência, Mariana Vieira da Silva, o ministro da Cultura, Pedro Adão e Silva, e o próprio Costa - o ouviram com uma atenção que se confundia com consideração.

A cela era demasiado pequena para aquela aula, cheia de jornalistas, políticos e resistentes, mas tinha de ser aquela cela em concreto. Era a número 52, onde esteve preso o historiador e fundador do Bloco de Esquerda Fernando Rosas. Para além do espaço reduzido, pouco havia da cela original. Por isso, Fernando Rosas e Domingos Abrantes recordaram os momentos.

Fernando Rosas, ex-preso político e fundador do Bloco de Esquerda.
Fernando Rosas, ex-preso político e fundador do Bloco de Esquerda.Foto: Mário Vasa / Global Imagens

Caricaturas da opressão

Uma das memórias partilhadas por Domingos Abrantes foi precisamente a do guarda que só funcionava com psicologia invertida. “Por princípio, dizia sempre que não aos presos”, continuou o antigo deputado do PCP, acrescentando que “humilhar fazia parte” do funcionamento de Peniche. “Então, a malta dizia: Ó senhor Ricardo, não se pode ir à água, pois não?” A esta pergunta, ele respondia: “Pode, pode.”

“Tinha de se pedir pela negativa. Era tão bronco que nem percebia” a contradição, ironizou Domingos Abrantes.

Já cá fora, no pátio ao qual chamou “recreio”, o antigo preso político José Marcelino contou que pertenceu à geração de encarcerados que pôde beneficiar de televisão, apesar de, segundo se queixou, a programação pouco passar dos concursos de “miss universo”.

No entanto, continuou, em 1972, quando grande parte dos presos nutria ligações ideológicas à antiga União Soviética, os guardas de Peniche estariam no extremo oposto. Estas posições, de acordo com José Marcelino, aqueceram quando, na final de basquetebol dos Jogos Olímpicos desse ano, a equipa favorita na modalidade - a dos Estados Unidos - perdeu por apenas um ponto para a mais odiada, de acordo com os critérios dos carcereiros - a da União Soviética.

Comitiva que acompanhou o primeiro-ministro demissionário António Costa, visitou as obras de instalação do Museu Nacional Resistência e Liberdade
Mário Vasa / Global Imagens

Cumprir o cinquentenário

Esta obra em Peniche, ainda por concluir mas com a garantia de que estará finalizada no dia 27 de abril, para assinalar os 50 anos da era democrática, partiu de uma decisão do Governo liderado por António Costa, em 2017.

No entanto, a inauguração vai acontecer sob a batuta de outro Executivo, desta vez da Aliança Democrática, liderado por Luís Montenegro. Portanto, na reta final da nova vida desta fortaleza agora convertida, será o presidente social-democrata que terá de relembrar o que foi o Estado Novo e o que lhe sucedeu.

Foi em jeito de despedida, descontraído, sem gravata, informal, que António Costa visitou esta obra e não será ele a cortar a fita, apesar do seu discurso antecipar esse momento.

“Não podemos esquecer todos aqueles que, desde 1926 [uma referência ao dia 28 de maio, quando um golpe de Estado criaria as condições para que o regime do Estado Novo fosse decretado, em 1933] até 1974, em sucessivas gerações, mantiveram viva a ideia da liberdade e a aspiração democrática. E que prosseguiram a resistência antifascista e anticolonialista”, afirmou António Costa.

António Costa visitou as obras de instalação do Museu Nacional Resistência e Liberdade, acompanhado por antigos presos políticos.
Mário Vasa / Global Imagens

“Essas mulheres e esses homens, a eles devemos-lhes que os valores da liberdade e da democracia não se tenham perdido na história, tenham sido transportados para o futuro e até termos chegado ao 25 de Abril”, insistiu, acrescentando que fez “parte da primeira geração que já pôde crescer em liberdade”.

Afirmando que só pôde viver em liberdade “porque houve essas gerações que travaram esse combate”, o ainda primeiro-ministro sublinhou a herança de quem resistiu à ditadura.

“Uns que já não estão aqui. Outros, como Domingos Abrantes, que ainda está aqui. Ou as últimas gerações que ainda tiveram de combater a ditadura, como a geração do Fernando Rosas. E como a vida é feita de futuro, nós temos que legar às futuras gerações toda essa memória e todo esse combate. E não é só evocar e agradecer àqueles que lutaram pela liberdade, mas é também recordar o que significou não ter a liberdade”, apelou.

António Costa lembrou ainda que as celebrações dos 50 anos do 25 de Abril não se limitam ao território nacional, até porque estão ligadas ao fim da guerra colonial.

As ex-colónias, “felizmente, graças ao 25 de Abril e à luta que travaram pela libertação, são hoje países irmãos e independentes”, recordou, adiantando que o Governo patrocinou “o Museu da Luta pela Libertação em Angola” e há “um programa desenvolvido com Cabo Verde, centrado no campo do Tarrafal. Recentemente, celebrámos os 50 anos da independência unilateral decretada pela Guiné-Bissau, ainda durante o tempo da luta armada. E com Moçambique temos um acordo para vir a apoiar a recuperação da antiga Rampa dos Escravos, na ilha de Moçambique, que é também uma forma de evocarmos esse nosso passado. Felizmente, virámos a página no momento do 25 de Abril. E esta luta de libertação, gémea, contra o fascismo e contra o colonialismo, é aquilo que nos permitiu reconstruir uma relação diferente e nova com os países que alcançaram a descolonização após o 25 de Abril”, afirmou.

Pormenor de uma cela no forte de Peinche, onde será inaugurado, a 27 de abril, o Museu Nacional Resistência e Liberdade
Mário Vasa / Global Imagens

Na primeira pessoa

A comissão instaladora do museu, representada nesta visita por Fernando Rosas e Domingos Abrantes, inclui protagonistas das histórias que se passaram atrás daquelas grades em Peniche.
Para Fernando Rosas, o “momento político em que vivemos” é importante para salvaguardar a memória de tudo o que aconteceu, não só na prisão.

Referindo-se ao resultado das eleições legislativas mais recentes, que garantiu, por vontade popular, a atribuição de 50 lugares no hemiciclo ao Chega, o historiador relembrou que a evocação dos 50 anos do 25 de Abril acontece “talvez num momento histórico em que a democracia portuguesa é alvo dos maiores perigos e ameaças desde que existe como democracia”.

“Nesse sentido, a inauguração deste museu é e vai ser uma grande festa de memória, de luta, de combate pela liberdade”, garantiu.
Apesar da data marcante na celebração deste ano ser o 25 de Abril, Fernando Rosas explicou por que motivo a inauguração deste museu simbólico vai acontecer no dia 27 do mês da liberdade.

“A população e o movimento das Forças Armadas cercaram o Forte no dia 27 de Abril e impuseram à Junta de Salvação Nacional a libertação incondicional de todos os presos políticos. Por isso mesmo, esse dia 27 de Abril é o dia em que vamos proceder à inauguração formal e final do Museu do Forte de Peniche. Essa inauguração é muito significativa do meu ponto de vista individual”, considerou.

Esta ideia foi acompanhada por Domingos Abrantes, que vincou a necessidade de se falar de uma resistência à ditadura que durou 48 anos e, acima de tudo, não esquecer o quanto custou a liberdade.

“O museu chama-se, precisamente, Museu da Resistência e da Liberdade e esta questão do caráter inseparável de 48 anos de resistência”, lembrou o antigo preso político. “Se perdermos essa ideia, perdemos o que é que foi o fascismo e os sacrifícios que houve”, concluiu.

Na sua intervenção, Fernando Rosas teve também uma palavra de apreço para com o Governo ainda em funções, que, disse, salvaguardou a “memória da resistência e da liberdade”. Por isso, no fim, insistiu: “25 de Abril, sempre. Fascismo, nunca mais.”

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