Jorge Moreira da Silva: “Portugal está na cauda dos que apoiam os países mais pobres”
Jorge Moreira da Silva, ex-deputado, ex-ministro do Ambiente, ex-candidato à liderança do PSD, é agora diretor-executivo da UNOPS, a agência da ONU responsável pela gestão e execução de projetos cujo foco é o desenvolvimento sustentável. Um organismo que está presente em 85 países, o que já o levou a Gaza, onde testemunhou uma “crise humanitária de enormes proporções” e, mais recentemente, a Cabo Delgado, no norte de Moçambique, uma região castigada pelas alterações climáticas e pelo terrorismo islâmico. O também subsecretário-geral das Nações Unidas será um dos oradores do Diálogo de Sustentabilidade marcado para esta sexta-feira, 5 de julho, a partir das 14.30, na Casa das Artes, em Famalicão.
Esteve há poucos dias em Moçambique, concretamente na província de Cabo Delgado, cuja população tem sido castigada, tanto pelos efeitos das alterações climáticas, como pela violência do terrorismo islâmico. Qual foi a situação que encontrou no terreno?
A UNOPS, que é a agência da ONU para as operações, para as infraestruturas e para a gestão de projetos, tem uma presença muito significativa em Moçambique, em especial em Cabo Delgado [fronteira Norte]. Somos responsáveis pela concretização de uma série de projetos que totalizam cerca de 200 milhões de dólares, financiados pelo Banco Mundial e desenhados pelo Governo de Moçambique. Aquilo que percebi no terreno foi, por um lado, a enorme vulnerabilidade da população - estamos a falar de um milhão de pessoas que, perante o risco dos ataques terroristas, teve de fugir das suas casas - e, por outro, o impacto positivo dos projetos que estamos a executar para garantir acesso à saúde, à educação e ao emprego.
Que tipo de projetos e serviços são prestados pela UNOPS em Cabo Delgado?
Temos dois tipos de intervenção. Uma na área da construção de infraestruturas, com 134 projetos a concluir até ao final de 2025, em que se incluem 41 escolas, 24 centros de saúde, 17 mercados e sistemas de abastecimento de água. O objetivo é apetrechar a população com o acesso a infraestruturas básicas, seja a população residente, seja que temporariamente está a ser acolhida nessa comunidade. O segundo tipo de intervenção é a do apoio socioeconómico. Por exemplo, na área da saúde, da psicologia e da psiquiatria, o apoio a mais de 40 mil pessoas traumatizadas com o fenómeno da insegurança. Estamos a falar de crimes brutais, de uma população que viu coisas de que nunca mais vai esquecer. Garantimos serviços básicos como o registo civil: mais de 100 mil pessoas conseguiram cartão de cidadão ou bilhete de identidade. Distribuímos 68 mil conjuntos na área da agricultura, fornecidos em cada época de sementeira. Vão ser entregues 70 barcos de pesca. Este apoio socioeconómico é muito importante, porque Cabo Delgado já era muito vulnerável, mesmo antes dos ataques terroristas, que se iniciaram em 2017: cerca de 60% das crianças estão em situação de pobreza, cerca de 75% da população não tem acesso a saneamento básico.
O que é que o Mundo, e concretamente Portugal, podem fazer para melhorar a segurança em Cabo Delgado e garantir, dessa forma, que os investimentos que a UNOPS está a fazer terão continuidade?
Temos de continuar a apoiar Moçambique na dimensão da segurança. O Governo de Moçambique conseguiu, com o apoio do Ruanda, que as condições de segurança melhorassem significativamente. Mas não basta, é preciso tratar do desenvolvimento. As pessoas saíram de casa, perderam tudo, não vão regressar. Esse milhão de deslocados internos, que saíram do Norte da província de Cabo Delgado, não regressará enquanto não houver condições de emprego, de acesso à saúde, de acesso à educação. É muito importante que a comunidade internacional se mobilize para apoiar Moçambique na vertente de desenvolvimento e não apenas na vertente humanitária. É igualmente importante que os investidores privados regressem a Cabo Delgado. Os melhores antídotos para contrariar o potencial recrutamento dos mais jovens por parte dos grupos terroristas são o emprego e a educação.
Cabo Delgado está fora do radar do Mundo, mas há um outro conflito que nos entra todos os dias pela casa dentro, a guerra em Gaza. Esteve, há alguns meses, em Rafah [no Sul da Faixa]. Como descreve o que ali testemunhou?
A UNOPS trabalha em Gaza, como na Ucrânia. Trabalhamos em 85 países, com forte preponderância em contextos de conflito, de violência e de fragilidade. Estamos em Gaza há vários anos a fornecer combustível para a produção de eletricidade. Mais recentemente, o secretário-geral das Nações Unidas [António Guterres], na sequência de uma resolução do Conselho de Segurança, atribuiu à UNOPS a responsabilidade pelo desenho e gestão de um mecanismo para acelerar a ajuda humanitária a Gaza. Estive na zona fronteiriça de Israel, no Egito e na Jordânia, para perceber quais os constrangimentos à chegada de ajuda, e dentro de Gaza, para perceber os constrangimentos na distribuição dessa ajuda.
O que foi feito entretanto para que a ajuda humanitária possa chegar à população?
A UNOPS colocou monitores e inspetores no terreno para tornar mais célere a produção de combustível, para tornar mais célere a ajuda humanitária. Desenvolvemos uma plataforma centralizada, para garantir que a ajuda é a que verdadeiramente faz falta, para tornar a operação mais eficiente, mais alinhada com as necessidades das pessoas. Mas, apesar de todos os esforços, há uma quase impossibilidade de distribuir ajuda em Gaza. Os bombardeamentos tornam a circulação impossível. Há funcionários das Nações Unidas que morreram, incluindo um colega da minha equipa da UNOPS. A ajuda já não consegue entrar em Rafah, essa fronteira já não é utilizada, sobra apenas uma entrada em Gaza. E não se consegue distribuir a ajuda que entra, não há condições de segurança.
Consegue vislumbrar uma solução para contornar esse quadro?
É imprescindível um cessar-fogo humanitário, a libertação dos reféns, a garantia de que a ajuda humanitária consegue chegar, em segurança, àqueles que mais precisam. A situação é dramática: mais de 80% da população não tem acesso a água potável, a cólera está a alastrar, assim como doenças respiratórias e do sistema digestivo. Apenas 14 dos 36 hospitais de Gaza estão parcialmente em funcionamento. Mais de 80% de todas as casas, de todas as infraestruturas foram destruídas. E imperioso parar esta destruição e apoiar a população. O que aconteceu a 7 de outubro, o crime perpetrado pelo Hamas, foi hediondo, brutal, não tem perdão. Mas não faz sentido que a população civil palestiniana sofra uma punição coletiva pelos crimes do Hamas. Já morreram mais de 38 mil pessoas, metade são mulheres e crianças. Estamos perante uma crise humanitária de enormes proporções. E este conflito tem dimensões sem paralelo com outros. Uma delas é a de que não há refugiados, porque as pessoas não conseguem sair. Outra é que a ajuda humanitária não consegue chegar em segurança, porque os funcionários das Nações Unidas e das agências humanitárias estão em risco de perder as suas vidas. E, em terceiro lugar, não há jornalistas no terreno.
No que diz respeito ao conflito de Gaza, o discurso público é maniqueísta. Ou se está por Israel e com a democracia; ou se está pela Palestina e com os Direitos Humanos. Quem está contra os métodos israelitas é antissemita; quem está contra a resistência palestiniana é cúmplice de genocídio. E o Jorge Moreira da Silva, de que lado está?
Fico perplexo com esse maniqueísmo. A posição das Nações Unidas e a minha posição pessoal têm sido de equilíbrio. Criticar, nos termos mais enfáticos, o crime de terror do Hamas a 7 de outubro, matando mais de mil pessoas em Israel, com agressões sexuais, com manifestações de violência inaceitáveis. E, ao mesmo tempo, sublinhar a injustiça de uma punição coletiva. O direito internacional humanitário está a ser violado. Até as guerras têm regras. Em vez de uma lógica maniqueísta, de tentar escolher um lado, precisamos de paz, precisamos de segurança. Israel tem direito à sua segurança, a Palestina tem direito a ser um Estado, os cidadãos têm direito a receber ajuda humanitária.
O mais recente Relatório sobre os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) não é animador. Parece óbvio que o mundo não vai conseguir cumprir a Agenda 2030.
Estamos no momento da verdade, perante uma situação de colapso ou de avanço. Muito do que será o futuro do desenvolvimento e do planeta está relacionado com a nossa capacidade de resgatar e acelerar os ODS. Mais do que ter uma posição nostálgica ou pessimista em relação à falta de concretização, temos de encontrar nesse relatório a inspiração e a motivação para acelerar. Infelizmente, apenas 17% dos ODS estão em fase de concretização e temos até um retrocesso em parte desses objetivos. A meio do caminho [os ODS foram aprovados em 2015], estamos muito longe de cumprir os 17 ODS, as 169 metas previstas na Agenda 2030. E isso deve ser visto como uma matéria de responsabilidade coletiva, dos cidadãos, das empresas, dos Estados, mas também numa lógica de oportunidade. Há duas ou três coisas que aprendemos com as crises que temos enfrentado, crises de refugiados, proliferação de guerras, crise climática, pandemia. A primeira é que os pobres são sempre os mais penalizados, dentro de cada país e a nível global. A segunda tem a ver com a interdependência. Não basta resolver o problema num país. Veja-se o que aconteceu com a pandemia e aquilo que está a acontecer com as alterações climáticas. Não adianta avançar no Norte se os países do Sul não forem apoiados na descarbonização. A terceira é a da multidimensionalidade. As crises não são apenas sociais, ou económicas, ou ambientais.
Mas, então, o que falta para conseguir avançar na execução dos objetivos da Agenda 2030?
Faltam três coisas. Desde logo o financiamento, que está muito aquém do necessário. Há uma lacuna anual de financiamento, só nos países em desenvolvimento, de quatro biliões de dólares [4.000.000.000.000$]. Depois, uma segunda dimensão, a das políticas. Não basta dinheiro, é preciso reformas políticas. Os países têm de se reformar, criar condições para que o investimento seja produtivo. E uma terceira dimensão, aquela em que a UNOPS mais se centra, a capacidade de concretização. Muitas vezes há dinheiro e até há políticas, mas falta capacidade para desenhar e concretizar projetos e assegurar que eles atingem os seus objetivos. Ou seja, financiamento, políticas e capacidade de implementação.
O único ODS já atingido por Portugal é o do combate à pobreza. Mas na ação climática está no vermelho, ou seja, no pior patamar de avaliação. Como acelerar as políticas de desenvolvimento sustentável no nosso país?
Para um país como Portugal, ou qualquer outro país da União Europeia, para não particularizar, há duas dimensões essenciais. A primeira é que falar de desenvolvimento sustentável é positivo, mas temos que ir além da sensibilização. Essa está feita, a população está alinhada com os ODS, as empresas também. Temos que passar para a ação, para a concretização, o que envolve escolhas políticas às vezes difíceis. Não é um tema para falar em Nova Iorque nas Assembleias Gerais, ou para apenas levar às escolas como sensibilização ambiental, ou umas ações de formação nas empresas. Este é um tema estruturante, porque não haverá paz, segurança, desenvolvimento e proteção das pessoas e do planeta se o desenvolvimento sustentável não for concretizado com políticas e financiamento.
E qual é a segunda dimensão essencial para um país como Portugal garantir maior celeridade na concretização das metas de desenvolvimento sustentável?
A da solidariedade. E não estamos em linha com a ambição necessária. Há dois caminhos possíveis, sendo que só um é aceitável. Um caminho é dizer ‘eu, Portugal’, ou ‘eu, França’, ou ‘eu, Estados Unidos’, vou concretizar o desenvolvimento sustentável em casa. Vou olhar para os 17 objetivos, desde a erradicação da pobreza, até a ação climática, a valorização dos oceanos, ou a proteção da biodiversidade, e vou concretizar em minha casa. O outro caminho é fazer em casa, mas também ajudar os outros. E só este caminho é válido, por razões que as pessoas facilmente perceberão. Como podemos pedir a países africanos que descarbonizem e reduzam as emissões de maneira a termos neutralidade carbónica em 2050, quando 700 milhões de pessoas no mundo não têm acesso a eletricidade? Como podemos pedir que invistam na economia verde e na economia azul se 2,2 mil milhões de pessoas no mundo não têm acesso a água segura e 3,5 mil milhões de pessoas não têm casa de banho? Como podemos pedir que invistam no desenvolvimento sustentável se 800 milhões de pessoas estão em situação de pobreza extrema?
Ou seja, umas das razões para os atrasos na Agenda 2030 é a falta de solidariedade dos países desenvolvidos?
O défice de solidariedade, do meu ponto de vista, é o maior défice na Agenda 2030. Eu não estou tão preocupado com a agenda verde, com a descarbonização. Ou melhor, estou preocupado, porque estamos na direção certa, mas à velocidade errada. Mas estou ainda mais preocupado com a falta de apoio aos países em desenvolvimento. Sem isso não haverá descarbonização sustentável. E a equação é muito difícil, por exemplo, na ação climática: precisaríamos de reduzir as emissões em 45% a nível global até 2030, quando, neste momento, está previsto que aumentem em 11%. E precisaríamos de atingir a neutralidade carbónica em 2050, para ter um grau e meio de aumento da temperatura até ao final do século. Ora, de acordo com as metas que os países aprovaram, vamos ter um aumento da temperatura de 2,7 a 2,9 graus. A descarbonização no Sul, que é essencial, só pode ser feita se houver apoio à erradicação da pobreza. Dou um exemplo em relação a Portugal: a ajuda pública ao desenvolvimento está na ordem dos 0,17% a 0,19% do PIB, quando a meta para os países da OCDE é de 0,7%. Só cinco países da OCDE cumprem essa meta. E Portugal é um dos países da OCDE que menos financia os países em desenvolvimento. Estamos na cauda dos países que apoiam os países mais pobres. É um tema em que seria importante que os partidos, os políticos, as organizações se mobilizassem. Mas, só para concluir esta questão, há ainda uma terceira dimensão, a das empresas, que têm um papel muito importante, liderando a inovação na descarbonização, na utilização eficiente de recursos, na igualdade de género, na promoção da igualdade de oportunidades, nas melhores condições para os seus funcionários, na relação com o território e com o ordenamento. Julgo que os empresários já perceberam que consumir verde significa poupar e produzir verde significa vencer.
Falou na necessidade de fazer escolhas políticas difíceis. Tendo em conta o cenário atual na Europa, com a força eleitoral que vai ganhando a direita radical, um conjunto de partidos não valoriza as políticas ambientais, disponíveis até para desmantelar o Pacto Verde Europeu, partidos nacionalistas, virados para si próprios e para os seus, não fica em causa a capacidade de termos uma Europa e um mundo mais sustentáveis?
Esse é um tema central, porque o aqui e o agora não vai funcionar. Isto é, qualquer prática política ou ideológica que privilegie uma lógica apenas soberanista e nacional, do aqui, o que interessa é o aqui, e qualquer lógica que privilegie apenas a atual geração, o agora, e não as próximas gerações, é inconsistente com a agenda de desenvolvimento sustentável, que precisa da cooperação entre povos e de solidariedade. Tem de ser o aqui e o ali, todos em conjunto, cooperando, para, de uma forma solidária, apoiar os que são mais vulneráveis. E o agora também não funciona, porque temas como as alterações climáticas precisam de uma resposta que reabilite o direito das próximas gerações ao futuro. Alguns protagonistas políticos, a nível internacional e a nível nacional, têm agendas populistas ou radicais e protecionistas que não são compatíveis com o desenvolvimento sustentável. Sabemos que aquilo que se investe em desenvolvimento e em prevenção de conflitos fica 16 vezes mais barato do que aquilo que gastamos em remediação, isto é, em ajuda humanitária e em apoio às consequências dos fluxos migratórios. Portanto, prevenir compensa. Nas alterações climáticas é o mesmo. O que investirmos em descarbonização permitirá aumentar o PIB em 4% até 2030. É importante que este tipo de argumentos sejam discutidos no espaço público. Confesso que não percebo a razão pela qual os multilateralistas e os defensores do desenvolvimento sustentável e da solidariedade internacional têm dificuldade em enfrentar, do ponto de vista do debate aberto, estes temas. É uma questão de ter coragem para apresentar argumentos, que são fortes. Não podemos é deixar a população sem acesso a esta informação e depois, na prática, acabarem por ir atrás da solução mais fácil e mais populista.
O que eu vejo, nessa sucessão de decisões que fui tomando, é que na prática fiquei sempre no mesmo sítio. E o mesmo sítio é o desenvolvimento sustentável, a ação climática e a cooperação internacional. Eu procuro servir, em cada momento, onde acho que sou mais útil. Como pode ver, eu acabo por partir de uma aventura para outra sem uma lógica de carreira. Neste momento, não faço qualquer plano, gosto muito do que estou a fazer e muito gratificado por estar a servir com uma equipa de seis mil pessoas em 85 países. É uma experiência incrível trabalhar com essas pessoas no apoio aos mais vulneráveis. Não faço nenhum cálculo, nos próximos tempos tenciono continuar onde estou, nas Nações Unidas.