Governo muda lei dos metadados sem mexer na Constituição

Executivo apresenta proposta em junho. António Costa garante que lei inconstitucional não afeta os casos já julgados, mas a interpretação está longe de ser pacífica.
Publicado a
Atualizado a

O Governo vai apresentar em junho, na Assembleia da República, uma proposta de lei para ultrapassar o veto constitucional à chamada lei dos metadados, deixando assim pelo caminho a hipótese de uma revisão constitucional. A decisão foi anunciada ontem pelo primeiro-ministro, depois de uma reunião do Conselho Superior de Segurança Interna (CSSI), após a qual António Costa defendeu que a declaração de inconstitucionalidade do Tribunal Constitucional (TC) não terá efeitos nos casos já transitados em julgado.

Em causa está a lei dos metadados, que determina a conservação dos dados de tráfego e localização das comunicações pelo período de um ano, de forma a permitir uma eventual utilização em sede de investigação criminal. A lei tem esbarrado sucessivamente no TC e, num acórdão do mês passado, os juízes do Palácio Ratton concluíram que guardar dados de tráfego e localização de toda a população, de forma generalizada, "restringe de modo desproporcionado os direitos à reserva da intimidade da vida privada e à autodeterminação informativa", pelo que o diploma foi declarado inconstitucional. Na passada semana, a própria Procuradora-Geral da República recorreu da decisão, invocando a nulidade do acórdão do TC sobre os metadados. Mas, na última sexta-feira, os juízes-conselheiros decidiram "não tomar conhecimento do requerimento", argumentando que a PGR não tem legitimidade processual para suscitar a nulidade do acórdão. Ainda assim, o TC fez questão de acrescentar que os argumentos de Lucília Gago são "manifestamente improcedentes".

Depois de ter já admitido uma revisão constitucional cirúrgica para resolver a questão, António Costa defendeu ontem que esta não será a melhor via para solucionar o problema. Pelo caminho, o Presidente da República já tinha avisado que "não há revisões pontuais da Constituição" - uma vez aberto o processo de revisão constitucional, "tudo fica aberto".

Afastado o cenário de revisão constitucional, António Costa anunciou que o Governo vai tentar uma nova versão da lei, procurando um equilíbrio entre os valores constitucionais em equação. "A ministra da Justiça tem um grupo de trabalho que já está a funcionar, de forma a que, desejavelmente em junho, logo que a Assembleia da República se liberte do debate do Orçamento do Estado para 2022, se possa ter um novo quadro legislativo. Respeitando a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia e do Tribunal Constitucional e que não desmunicie o Estado de Direito das ferramentas para combater a criminalidade mais grave", afirmou o primeiro-ministro.
Recusando "especular sobre qual será o intervalo mais razoável" para a conservação dos metadados, António Costa referiu que será necessário encontrar o equilíbrio entre os valores em confronto na "porta mais estreita" deixada pela decisão do TC e utilizando "essa porta na estrita medida do necessário".

Mas António Costa recusa que a declaração de inconstitucionalidade da lei venha a fazer perigar processos judiciais já transitados em julgado. "Chamo a atenção que o artigo 282 número 3 da Constituição da República é muito claro: as declarações de inconstitucionalidade com força obrigatória geral não afetam os casos julgados, a não ser quando o Tribunal Constitucional não ressalva essa consolidação do caso julgado", o que não aconteceu neste caso, defendeu o líder do Executivo. Para António Costa esta declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral não afasta o que o diz a Constituição - "Ou seja, os casos julgados são casos julgados". Afirmando-se consciente de que o Código de Processo Penal prevê revisões extraordinárias quando há declarações com força geral de inconstitucionalidade, o primeiro-ministro reiterou que o "Código de Processo Penal tem de estar submetido à Constituição".

Mas a interpretação de António Costa está longe de ser pacífica. Para o constitucionalista Jorge Bacelar Gouveia, o primeiro-ministro está "equivocado" - a declaração de inconstitucionalidade poderá ser suscitada sempre que os metadados tenham sido prova essencial, seja em casos ainda em curso ou já transitados em julgado. "Há uma lei que é considerada inválida e há um princípio do direito penal que é o da aplicação da lei mais favorável ao arguido. Se a alei é inconstitucional, aplica-se a que vigorava antes, sendo mais favorável. E qual era? Nenhuma. Portanto, não se aplica nenhuma", refere Bacelar Gouveia. Ou seja, a declaração de inconstitucionalidade tem "eficácia retroativa, na medida em que há um vazio legal" de efeitos retroativos. Ontem, em declarações à Rádio Renascença, Cândida Almeida, antiga diretora do Departamento Central de Investigação e Ação Penal, admitiu que o chumbo da lei dos metadados pode vir a afetar processos como a operação Marquês ou o caso BES .

susete.francisco@dn.pt

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt