Primeiro é o AR5, da portuguesa Tekever, a descolar na pequena pista para drones, em Troia. Minutos depois sobe aos céus como se fosse um helicóptero o Talon DT-300, da Rotrom, 70km de autonomia e com capacidade para uma carga de 30kg, explica Samuel de Bellefontaine. Nem imagina o técnico da companhia britânica que alguns portugueses já puseram a alcunha de “o chouriço” ao aparelho, o que não invalida que olhem com respeito para este UAV (Unmanned Aerial Vehicle). Os seis minidrones que transporta são armas letais, já testadas, aliás, no contexto deste REPMUS24, que terminou na sexta-feira e que o almirante Gouveia e Melo classifica como “o exercício de drones marítimos mais importante do mundo”, acrescentando, com ironia, “a não ser que haja na Rússia ou na China algum que eu não conheça”. Uma referência ao contexto geopolítico, em que nenhum país, grande ou pequeno, descura o valor dos drones, comprovado na guerra em curso na Ucrânia e no recente conflito entre azeris e arménios pelo controlo da região do Nagorno-Karabakh..Foram 2500 as pessoas envolvidas este ano no REPMUS, de 23 nações participantes, mais sete países observadores, entre eles a Austrália, o Japão e a Coreia do Sul, aliados dos EUA no Pacífico e interessados em ver o que se testa neste exercício que junta militares, academia e empresas, e é realizado há vários anos pela Marinha Portuguesa, agora em parceria com a NATO, a Agência Europeia de Defesa e a Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto..Como explica o capitão Adam Allica: “A Austrália tem relações próximas com a NATO, e mais particularmente com os EUA e o Reino Unido, no âmbito do AUKUS. Viemos aqui para entender o que está a acontecer com os mais recentes sistemas autónomos robotizados, para ver a aplicabilidade na Austrália. E a presença dos nossos parceiros do AUKUS aqui dá-nos também oportunidade para contactá-los diretamente, sem o desafio das distâncias e dos fusos horários.”.Acrescenta o diretor-geral de inovação da Royal Australian Navy, que “um exercício como este é ótima oportunidade para passar algum tempo de qualidade juntos para trabalharmos em alguns pormenores de cooperação. Existem especificidades da Europa, diferentes das da Austrália, mas quando estamos a falar sobre um contexto militar é sempre possível aprender com a experiência europeia, tirar algo dela”..Não é só com americanos e britânicos que o militar australiano tem conversado por este dias em Troia. Ao seu lado está o vice-almirante Chaves Ferreira, que como comandante naval é responsável pela parte operacional da Marinha Portuguesa. “Basicamente, o sucesso deste exercício assenta naquilo que nós chamamos de triângulo estratégico. O que é isso? Nós temos num dos lados a academia, as universidades, no outro lado a indústria, e na base temos as Marinhas. Ou seja, as Marinhas identificam as necessidades operacionais no que se respeita aos Maritime Unmanned Systems. A academia, sempre em cooperação com as Marinhas, desenvolve os projetos para dar resposta a estas necessidades, que a indústria faz acontecer. Ou seja, a indústria realiza esses projetos”, explica o vice-almirante. “E qual é a grande van- tagem, e por isso eu digo, sucesso? É que estamos a trabalhar todos muito perto uns dos outros, no dia a dia, e portanto não há aquele timing que se perde de andar para um lado, andar para o outro, conversa. Não, estamos aqui todos juntos, ao mesmo tempo: experimenta, testa, volta a experimentar, até que depois pode sair o projeto.”.O nome do exercício tem que ver com os tais Maritime Un- manned Systems, ou MUS, a que se somam o REP de Robotic Experimentation and Prototyping, o que pode ser traduzido por “experimentação e prototipagem robótica aumentadas por sistemas marítimos não-tripulados”. E se uma parte do REPMUS decorre em Sesimbra, é em Troia, onde está baseado o Centro de Experimentação Operacional da Marinha (CEOM), que muito do mais importante acontece..“Esta Península tem condições excecionais para um exercício deste género. Shalow waters, águas rasas, no lado do estuário do Sado, e depois, no lado do oceano, o deep sea, uma profundidade de 1300 metros por causa do canhão de Setúbal”, diz o comandante António Mourinha, diretor do CEOM..“A Humanidade inventou drones para fazerem tarefas perigosas, sujas ou aborrecidas”, foi o título de uma entrevista que há um ano, quase dia por dia, fiz ao comandante Mourinha, durante o exercício Dynamic Messenger, que em 2023 a NATO realizou logo a seguir ao REPMUS, também em Troia e Sesimbra. Em inglês, fala-se dos três D: Dangerous, Dirty and Dull. Ora, se alguém sabe bem o que é ter de lidar com estas tarefas perigosas, sujas e aborrecidas são os ucranianos, que desde a invasão russa de fevereiro de 2022 travam uma guerra assimétrica, em que os drones têm tido um papel de destaque, também no domínio marítimo, desafiando o controlo do Mar Negro pela Marinha Russa. E no REPMUS voltaram a participar ucranianos, como os dois militares, com um camuflado em tons entre o azul e o cinzento, que vi durante o briefing matinal em Troia. Uma participação discreta mas não secreta, pois como as bandeiras dos países participantes estão colocadas nos postes à entrada do CEOM por ordem alfabética, o azul e amarelo ucraniano destaca-se numa ponta. .Testagem de drones aéreos no Centro Operacional da Marinha, em Troia.Crédito: Leonardo Negrão.“Usaram coisas que nós já tínhamos usado e muita da tecnologia que testámos aqui é usada na frente de batalha na Ucrânia”, sublinha o almirante Gouveia e Melo (ver entrevista nestas páginas), referindo-se ao uso de drones pelos ucranianos na guerra que travam há 31 meses contra a Rússia, com apoio político, financeiro e militar da NATO, o que tem levado a ameaças por Moscovo aos Estados-membros, incluindo Portugal. .Em maio, foi noticiado que os militares ucranianos, graças a um fornecimento britânico, estavam a usar drones de reconhecimento da Tekever, uma empresa criada por antigos estudantes do Instituto Superior Técnico e presença habitual no REPMUS..Gouveia e Melo, Chefe do Estado-Maior da Armada (CEMA) - que acredita tanto nas vantagens dos drones que é o responsável pela encomenda de um chamado porta-drones que em 2026 deverá entrar em serviço (o navio vai chamar-se D. João II, em homenagem ao monarca que batizou o Cabo da Boa Esperança) - não esconde o orgulho no REPMUS, e no seu inglês impecável recebe um grupo de jornalistas estrangeiros, que leva de Troia a Sesimbra numa lancha ultrarrápida, apreendida em tempos aos narcotraficantes..Na popa, três motores Yamaha a totalizarem impressionantes 900 cavalos. Sem acelerar muito, foram uns 25 minutos para uma viagem que rapidamente deixou Troia para trás, pouco tempo permitiu ver Setúbal no horizonte, e passou célere junto às praias da Arrábida, como a Albarquel, a Figueirinha ou Galápos..No ano passado, fiz o mesmo percurso, mas no navio espanhol Furor, que navegou pelo Sado e depois, já em mar aberto ,sempre acompanhado por dois drones de superfície, um a estibordo e outro a bombordo, em treino de missão de proteção. A participação da Marinha espanhola no REPMUS não só é uma tradição, como a experiência levou a planos para criação de uma espécie de CEOM. “Esse centro ainda é um projeto embrionário, com a ideia de centralizar todos os desenvolvimentos e toda a experimentação em veículos não-tripulados na Marinha Espanhola, e poder dar orientações às diferentes empresas para obterem as capacidades que a Marinha precisa. Pensamos implementá-lo ao longo do ano de 2025. A localização será inicialmente em Rota, provavelmente com filiais, principalmente em Cartagena, que é onde temos tudo relacionado com a guerra abaixo da superfície marinha. Portanto, é provável que utilizemos as instalações de Cartagena para realizar esses desenvolvimentos e experimentos em tudo o que envolve veículos não-tripulados abaixo da superfície”, explica Carlos Rosano, capitán-de-navio, que equivale ao nosso capitão-de-mar-e-guerra..O comandante Rosano, que se estreou este ano no exercício, confessa estar “impressionado com as facilidades que têm aqui em Troia”, apesar de “estar familiarizado com os desenvolvimentos, especialmente os espanhóis, que ocorreram ao longo dos anos no REPMUS”. Acrescenta acreditar que “em todas as Marinhas do mundo o veículo não-tripulado, o drone, é um multiplicador de capacidades porque não só permite a sua utilização em áreas de alto risco sem pôr em perigo a vida do operador, mas também permite a persistência em áreas de operação que os veículos tripulados não possuem”..O REPMUS juntou 17 navios de vários países da NATO, como o espanhol Tornado, os holandeses Johan De Witt e GeoSea, os alemães Kalkgrund e Kronsort, o francês Acheron e o britânico Patrick Blacket. Dez eram portugueses, incluindo o submarino Arpão e a fragata Bartolomeu Dias. .Foram feitas centenas de exercícios, incluindo simulação de operações militares, com as Blue Forces da Aliança Atlântica a terem de enfrentar as Red Forces, num cenário fornecido pelas dunas de Troia. E, em Sesimbra, o outro polo do exercício, testaram-se drones para a guerra antiminas..Um objetivo importante é garantir a interoperacionalidade entre os aliados, como destaca David Burton, comodoro britânico na reserva: “Este ano, temos mais de 2500 pessoas envolvidas. Temos mais de 130 empresas. Temos 30 nações. E, claro, o benefício real disso é que temos acesso a ativos não-tripulados que uma nação não pode fornecer sozinha. E por que é isso importante? Bem, no futuro, não só teremos de treinar juntos, como teremos que lutar juntos. Então, temos uma oportunidade aqui de resolver esses problemas relacionados com os padrões de interoperabilidade que nos permitirão desenvolver capacidade juntos, prioridade para a NATO.”.O comodoro Burton rejeita a ideia de que Portugal é um pequeno país, mesmo que neste caso “small is beautiful”, pois “criou um centro de inovação que pode realmente fazer as coisas avançar em ritmo acelerado. Podemos aqui operar de uma forma muito mais ágil do que, talvez, se fosse organizado por entidades maiores. A agilidade é um aspeto realmente importante para o sucesso do REPMUS”. .Crédito: Leonardo Negrão.A grande importância da interoperabilidade entre os países da NATO, que nasceu há 75 anos em plena Guerra Fria com 12 fundadores e agora vai já em 32 membros, é reafirmada por um outro participante, o académico americano Craig Sawyer, que trabalha para a Aliança Atlântica, para quem “a proximidade criada ao longo dos anos entre muitos participantes, com todos a quererem aprender com os outros, permite uma partilha de conhecimento muito importante. Não só entre as Marinhas, as empresas e as universidades, como entre as diferentes Marinhas nacionais”. .Também Stefan Pahl, comandante alemão, especialista na guerra antiminas, enfatiza a necessidade de partilha de experiências: “Na NATO, nós precisamos de fazer coisas juntos. Não se trata apenas de lutar juntos, antes precisamos trabalhar juntos, e para isso, precisamos trabalhar, não apenas como um grupo, mas como um grupo de pessoas coeso. Então, precisamos de algum tipo de standardização para lutar contra todas essas ameaças que sabemos existir.”.Pahl faz uma pequena visita guiada aos jornalistas que acompanham Gouveia e Melo no Cais de Sesimbra usado pelo REPMUS. Veem-se drones suecos, franceses, britânicos, etc., etc. Estão agora em terra, mas têm sido intensivamente testados na água nos últimos dias. As formas são em regra alongadas, a lembrar um torpedo. Alguns desses drones submarinos (UUV, de Unmanned Underwater Vehicles) destacam-se pelas dimensões, como aquele ao serviço da US Navy que o comandante Williams mostra ao chefe do Estado-Maior da Armada, momento logo aproveitado pelos fotógrafos para retratar a aliança entre Portugal e o mais poderoso país da NATO. E como são capazes de cooperar portugueses e americanos nesta lógica nova da guerra de drones..Esta guerra do futuro, este novo conceito de guerra com drones, Gouveia e Melo fez questão de explicar ainda em Troia ao grupo de repórteres estrangeiros, e que pude assistir: “Qual foi a primeira prova desse conceito? A guerra entre o Azerbaijão e os arménios, com os primeiros vislumbres do que será a guerra de drones, e a guerra na Ucrânia, que mostra completamente como está a funcionar. Imaginem um país sem Marinha, sem navios, negar o uso do espaço marítimo a uma Marinha poderosa. Como um milagre, fazendo o quê? Usar drones. Então pode-se derrotar hoje uma fragata que custa mil milhões de euros, um billion no modo americano de dizer, com um drone que custa 30 000 euros. E não acontece só na Ucrânia. Por exemplo, no Mar Vermelho, algumas ameaças assimétricas atacam os nossos navios com drones que custam de 20 000 a 30 000 euros. E toda a vez que temos de nos defender de um drone, estamos a disparar mísseis de um milhão de euros. Então, se fizerem mil ataques, e tivermos de lançar mil mísseis para defender os navios, primeiro de tudo, os stocks de mísseis vão acabar. E, segundo, são mil milhões de euros contra 20 milhões de euros. Então a assimetria não é apenas a eficácia das novas ideias, fazer de maneira diferente, mas também a maneira económica de fazer guerra. Porque guerra é logística. Uma guerra que demora muito tempo é sempre logística. E logística é economia. E então, com o passar do tempo, por que a Rússia está a usar os Shahed? Porque não são caros e saturam as defesas da Ucrânia. Se a Ucrânia, para se defender dos drones Shahed, tiver de disparar mísseis que custam muito caro, não será bom para a defesa. Porque os sistemas que estamos a usar lá, ou que eles estão a usar lá, para se defender, custam muito dinheiro. Contra a guerra assimétrica, tem de se fazer guerra assimétrica.”.O REPMUS regresa em 2025. Este ano, num dos últimos dias, o exercício recebeu a visita do presidente Marcelo Rebelo de Sousa, do ministro da Defesa Nuno Melo e do chefe do Estado Maior General das Forças Armadas, o general Nunes da Fonseca.