"O problema de tentarmos ver eleitoralismo nestas medidas é que, na verdade, vai haver relativamente pouco tempo para os que beneficiam das medidas poderem senti-las como fazendo a diferença", explicou ao DN o professor de Economia no ISCTE Ricardo Paes Mamede. "São dois meses, na verdade, até às eleições. Uma coisa, é o IUC [Imposto Único de Circulação], que tem um impacto muito grande. Era uma medida muito polémica, estava a arreliar muita gente. Todas as outras medidas, a não ser que fossem medidas simbólicas com impacto muito significativo, é muito difícil de dizer que elas são pensadas, são feitas a pensar nas eleições, porque os efeitos são relativamente modestos e o período em que esses efeitos vão ser sentidos também vai ser modesto", conclui o economista..Começa esta quinta-feira o debate na especialidade em torno do Orçamento do Estado para 2024 (OE2024), que culminará no dia 29 de novembro, com a votação final global do documento. No dia 31 de outubro, a aprovação na generalidade do OE2024 originou protestos nas bancadas da oposição e levou, dias mais tarde, centenas de pessoas à rua a contestar uma medida em concreto: o aumento do IUC para carros anteriores a 2007. O ministro das Finanças, Fernando Medina, defendeu a medida com unhas e dentes, garantindo que este agravamento fiscal nunca seria superior a 25 euros por ano. No entanto, ao longo dos anos, os aumentos poderiam ultrapassar os 1000%, fosse em carros a gasolina ou a gasóleo..Entretanto, o prazo estipulado para entregas das propostas de alteração ao OE2024 foi atingido no dia 14 de novembro. Nessa terça-feira, Medina ainda garantia que "o Governo sustenta a proposta que fez quanto a um aumento máximo de 25 euros por ano" no IUC..Porém, entre uma centena de propostas apresentadas pela bancada parlamentar socialista para mudar o OE2024, uma delas gerou controvérsia nos vários partidos na mesma medida em que foi aplaudida, numa miscelânea de críticas vagas, sustentadas e esperançosas: o aumento do IUC afinal não andaria para a frente e a decisão caberia ao PS, que, por ter maioria absoluta no hemiciclo, tem o poder de fazer aprovar a alteração proposta. Entre a escolha de consubstanciar a medida no Orçamento do Estado, de a aprovar na generalidade e de a deixar cair, houve uma sucessão de acontecimentos que podem ou não ter influenciado o desfecho desta história..A 7 de novembro, o primeiro-ministro, António Costa, demitiu-se, justificando a sua decisão com uma referência a si num comunicado da Procuradoria-Geral da República que o apontava como estando sob investigação do Supremo Tribunal de Justiça num caso de corrupção relacionada com lítio e hidrogénio, que atingiria algumas pessoas próximas de si e dentro do Governo. Três dias depois, o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, anunciaria a dissolução do Parlamento e a convocação de eleições legislativas para março de 2024..Como ainda está a decorrer o processo de aprovação do OE2024, agora com a discussão na especialidade, há medidas orçamentais que podem dar visibilidade à bancada parlamentar do PS, uma vez que a maioria absoluta dos deputados socialistas é que vai determinar o destino das contas públicas para o próximo ano, seja lá qual for o Governo que saia das eleições de 10 de março..Nesta fase, impõe-se a análise às propostas de alteração ao OE2024, no sentido de perceber se se tratam de medidas que antecipam a campanha eleitoral que se avizinha e que puxam por um resultado favorável, ou se estão centradas nos problemas do país. Uma ideia não anula necessariamente a outra.."Neste momento parece que o candidato do Partido Socialista em melhores condições de ganhar as eleições internas é alguém que nem sequer estava no Governo e, portanto, também não vai poder estar para reivindicar para si avanços que têm sido tomados recentemente", defende Ricardo Paes Mamede, numa referência ao antigo ministro das Infraestruturas e da Habitação, Pedro Nuno Santos, que avançou com uma candidatura para liderar o PS e suceder a António Costa. Os outros aspirantes ao cargo são o atual ministro da Administração Interna, José Luís Carneiro, e o dirigente socialista Daniel Adrião, que entrou na corrida esta semana.."Tirando o IUC, não me ocorre nenhuma medida que tenha esse impacto" de convocar o eleitorado para o lado do PS, conclui o professor de economia..No exercício de procurar medidas que possam levar o eleitorado indeciso a piscar o olho ao PS, economistas e politólogos têm uma visão heterogénea. São mais de 100 propostas que, na sua maioria, passam ao lado dos cidadãos mais ou menos desatentos. Uma delas, prevê "taxas de retenção progressivas para trabalhadores independentes", o que passa por haver descontos diferentes para o IRS para trabalhadores que passem recibos verdes, dependendo de quanto recebem, afastando-se assim da taxa fixa de 25% atualmente em vigor. Ainda que esta medida possa beneficiar quem potencialmente tem rendimentos mais baixos e um contexto instável de trabalho, será que esta resolução chegou à maioria das pessoas?.A juntar-se a esta proposta de alteração do OE2024, há uma para a introdução da dedução das despesas do serviço doméstico no quadro das obrigações declarativas de IRS, algo que os socialistas consideram "relevante não só para o cumprimento da Agenda do Trabalho Digno, mas naturalmente para a consolidação de instrumentos de justiça fiscal", de acordo com as declarações do líder parlamentar socialista, Eurico Brilhante Dias, disponíveis na página do PS..De igual modo, podem entrar nesta lista a sugestão de colocar no mesmo nível de plafonamento, em termos de taxas de transação, os cartões de refeição, equiparando-os a cartões de débito. Ou o aumento do complemento de deslocação para cerca de 13 mil estudantes bolseiros deslocados, que aumenta de 250 euros para 400 euros.."O grande problema não está no eleitoralismo, está no adormecimento da sociedade civil em termos de grupos organizados de defesa ou que se organizem rapidamente", disse ao DN o professor catedrático do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP) da Universidade de Lisboa José Adelino Maltez, para quem "são muito raros os movimentos como este", que juntou centenas de pessoas em várias cidade para protestar contra o aumento do IUC.."Acho que as grandes políticas orçamentais portuguesas tratam o país como se fosse uma bela adormecida", remata o politólogo. "E eu insisto, não qualifico isto como eleitoralismo. Todos os sistemas políticos, incluindo o Governo contra as oposições são caixas negras com uma seta de entrada de reivindicações e outra seta de saída de resposta a essas entradas no sistema. É um jogo de inputs-outputs. E o sistema democrático é todo ele feito de inputs-outputs. O que falta em Portugal são grupos de pressão da sociedade civil. São inorgânicos. E portanto, naturalmente, quem está no poder percebe que ali há um buraco onde se pode ter entrada porque não existe organização reivindicativa adequada", defende..Com a subida do IUC afastada pelo PS, a oposição insurgiu-se, alegando uma manobra eleitoralista. Quando a subida do IUC tinha sido aprovada na generalidade, as vozes contra foram semelhantes. Esta foi a posição do PSD, Chega e IL. Então, o que é que o PS fez ao OE2024 para recuar numas medidas e acrescentar outras?."Eu chamo a isto, em termos de análise política fria, uma espécie de politização do orçamento", continua Adelino Maltez. "Quer dizer, o orçamento não tinha passado pelos filtros políticos do PS e agora eles utilizaram os filtros políticos, utilizando as suas vias internas de informação, nomeadamente as reivindicações locais e regionais e sindicais. Portanto há aqui uma chamada de atenção: cuidado, não façam orçamento sem antes virem cá debater um bocadinho connosco. Nós é que somos políticos. Portanto o orçamento foi despolitizado. E, claro, o PS agora está a demonstrá-lo", conclui.."A questão principal era a transição energética", lembra ao DN o professor catedrático do Instituto Superior de Economia e Gestão da Universidade de Lisboa (ISEG) João Duque, a propósito do argumentário do ministro das Finanças para manter a subida do IUC em carros anteriores a 2007, que por isso mesmo são considerados mais poluentes. "É um princípio sagrado com o qual vamos forçar os contribuintes a mudar o paradigma e não há como começar devagarinho e ir acentuando a pressão para que as pessoas mudem mesmo", ironiza o economista..Para João Duque, "eles [o Governo] sabiam isto há 6 meses, há 5 meses, há 3 meses. Isto não mudou, Portugal não mudou, não descobriram que afinal os portugueses foram todos comprar carros velhos. Não, não mudou nada. Portugal é o mesmo. E portanto, das duas, uma: para mudarem agora, é porque os princípios deles não existem, não têm princípios nenhuns. E vai às eleições defender esses princípios e vai dizer o seguinte: vocês estão todos errados, mas é uma emergência climática. Nós já devíamos estar a mudar carros há muitos anos. Não há amanhã. Ou, então, é o discurso da Greta" Thunberg, diz João Duque, aludindo à ativista sueca..Para o professor de economia, "é isto que faz afastar os cidadãos da política, porque percebe-se que há aqui um oportunismo", analisa. "Se não tivesse havido esta crise com a demissão do primeiro-ministro e do Governo, alguém acredita que eles iam mudar? Não iam", conclui..vitor.cordeiro@dn.pt