Das políticas para o livro ao património. Partidos propõem mais dinheiro para a Cultura
Aspeto pouco tratado nos debates televisivos, a Cultura está presente (embora com importância variável) nos programas dos partidos com assento parlamentar. Se se anuncia o objetivo comum de reforçar o orçamento destinado ao setor (alguns falam mesmo na velha aspiração nunca alcançada de atingir 1% do PIB em sede de Orçamento Geral do Estado), as prioridades mudam também conforme a ideologia. Em foco estão áreas como o apoio às artes, a política do livro, museus e património, ou a memória e identidade nacional (aspetos enfatizados por AD e Chega). Mas será o suficiente? Ou a forma mais adequada?
Diretor artístico da companhia de teatro que tem o seu nome, João Garcia Miguel admite sentir alguma perplexidade ao constatar que “quase todos os partidos propõem medidas idênticas, nomeadamente a atribuição de 1% do Orçamento do Estado ao setor da Cultura.” O problema, para ele, é o passo que se dá a seguir, após 10 de março: “Nenhum deles concretiza realmente como é que aplicaria esse reforço, se ele existisse. As grandes questões continuam a estar ausentes.” O que, em sua opinião, traduz uma visão pouco profissional no modo como os políticos, da esquerda à direita, encaram o setor: “Continuamos a olhar para a Cultura como uma atividade que não é desenvolvida por profissionais, mas por alguém a quem, um dia, apeteceu escrever um poema ou fazer um filmezinho que descarrega na internet.”
E enuncia ao DN a sua lista de perplexidades: “Podíamos combater a desertificação do interior do país a partir da Cultura, com o apoio a companhias de teatro ou de dança, pintores, cineastas, criadores que se quisessem fixar. Mas não se fala disso. Como é que é possível que não haja um trabalho ligado à Cultura e às artes que envolva os imigrantes? Como é que não se promove uma verdadeira ligação entre as artes e a Eeducação, levando as crianças e jovens a reaprender a ler, a escrever, a criar uns com os outros? Até do ponto vista economicista, que é tão caro aos políticos, se pode desenvolver a ideia de que Cultura é uma mais-valia e um património.”
Reforçar o investimento
No preâmbulo dedicado ao setor cultural, o programa do PS começa por associar Cultura e Estado Social. Assim sendo, aposta na democratização, “visando o envolvimento de todas as pessoas num maior acesso às artes e aos bens culturais, bem como numa mais assídua e consciente participação”. De igual modo, “assentará na valorização dos profissionais do setor, que têm direito a viver melhor, menos sujeitos à intermitência e à precariedade”.
Também a AD identifica um problema de subfinanciamento crónico do setor cultural, a que associa uma “visão centralista do mesmo e a existência de baixas taxas de participação cultural por parte de boa parte da população”.
Forças como o BE, CDU, Livre, PAN e Chega reivindicam mesmo a necessidade de aumentar a dotação orçamental para a famosa meta de 1% do PIB, reclamada há décadas por vários setores da sociedade.
O financiamento das artes visuais e performativas é chave nesta matéria. A AD propõe-se desenvolver “uma estratégia nacional para estas disciplinas, enquanto o PS fala em “reforçar as propostas para o apoio às artes, levando-as a todo o território nacional.” Com um caráter mais pedagógico, afirma o desejo de “acentuar a presença das artes em todos os ciclos do ensino público.” A este propósito, a AD fala ainda num “programa nacional de apoio a estruturas de programação, residência, incubação e de criação artística independentes”.
Mas se para a coligação formada por PSD, CDS e PPM, a valorização dos profissionais da Cultura passa essencialmente pela aposta na formação contínua, os partidos mais à esquerda referem-se ao Estatuto do Profissional da Cultura. É o que acontece com o BE, que escreve: “Nos anos da pandemia, assistimos a uma tomada de consciência e uma capacidade de organização coletiva do setor sem precedentes. Foi esta mobilização que fez a pressão necessária para a criação do Estatuto dos Profissionais da Cultura, cuja definição têm sido o campo da disputa da dignidade do trabalho no setor.”
Assim, as principais propostas do BE para esta área são: a alteração do Estatuto dos Profissionais da Cultura, com a celebração de contratos de trabalho e combate à precariedade, em especial ao falso trabalho independente e ainda a “imposição de mecanismos de justa retribuição a autores e intérpretes na transposição das diretivas relativas a direitos de autor e direitos conexos em streaming e no Mercado Único Digital”.
A CDU, por sua vez, propõe-se combater o que considera serem “as falsas soluções previstas no Estatuto do Profissional da Cultura e lutar pelo estabelecimento de mecanismos eficazes de acesso às prestações sociais e a uma carreira contributiva estável para os trabalhadores da cultura”. Ainda nesta matéria, o PAN promete “avançar com um projeto-piloto de Rendimento Básico Incondicional para agentes da Cultura” e o Livre fala na necessidade de rever o Estatuto.
Mercado editorial e livreiro
O partido que mais se detém sobre a política do livro é a Iniciativa Liberal, com o objetivo, como é seu apanágio, de liberalizar o setor, revogando a Lei do Preço Fixo do Livro em vigor. Isto porque a IL “acredita que os preços dos livros devem ser formados em mercado concorrencial, combatendo as limitações aos descontos possíveis nos primeiros quatro meses após a publicação de uma obra.”
O que, segundo Pedro Sobral, presidente da direção da APEL - Associação Portuguesa de Editores e Livreiros revela o “desconhecimento de como o mercado do livro funciona em Portugal”. E mostra-se disponível para esclarecer quais “são os efeitos positivos da lei do preço fixo, independentemente desta ser ou não uma limitação ao funcionamento regular do mercado”.
“Nós temos todos os dados económicos para explicar por que razão a Lei do Preço Fixo pode ser melhorada, mas não pode ser revogada, porque tal significaria um dano irreparável quer para a rede livreira, como também para o efeito positivo que temos tido nos últimos tempos.”
As críticas do presidente da APEL não se centram apenas na proposta da IL, mas estendem-se a todo o espetro partidário: “Nem a Cultura, nem a questão da estratégia para o livro e para a leitura foram sequer tratadas nos debates. Mesmo a Educação foi tratada apenas do ponto vista orçamental, sem evidenciar a existência de um plano estratégico capaz de resolver os nossos problemas estruturais. Ainda agora, os números do PISA vieram revelar o enorme problema que continuamos a ter no que são as bases educativas das gerações futuras.” E acrescenta: “Não é que nós, APEL, esperássemos que, de repente, surgissem uma série de propostas financeiras para o quer que seja. Aquilo de que o setor precisa não é propriamente de injeções de dinheiro, mas de uma estratégia de médio e longo prazo para aumentar os níveis de literacia em Portugal, o que passa necessariamente por repensar os currículos escolares, de modo a tornar a leitura um hábito.”
As questões da identidade nacional e da memória histórica também estão presentes em vários programas. Não por acaso, o capítulo do programa do Chega para a Cultura intitula-se Promover a nossa História, Cultura e Tradições. É a luz a que devem ser lidas algumas das suas propostas como a criação do Museu Nacional dos Descobrimentos.
Também a AD inclui no seu programa para a Cultura a celebração dos 900 anos da Batalha de São Mamede, em 2028.
A CDU manifesta preocupações com a memória histórica, mas vai em sentido contrário. Neste caso, o que se propõe é o apoio a iniciativas destinadas à preservação da memória da resistência e da luta contra o fascismo, enquanto o Livro pretende “descolonizar a cultura, nomeadamente o discurso historiográfico sobre o país”, promovendo, entre outras iniciativas, o estabelecimento da origem do património dos museus.
O PAN acena as suas bandeiras, propondo a total abolição “dos espetáculos tauromáquicos e, como tal, eliminar todos e quaisquer apoios públicos a este subsetor”. Na mesma linha de pensamento, preconiza a proibição de quaisquer atividades de entretenimento que recorram ao uso de animais.
Em momentos de mudança como este, João Garcia Miguel admite a sua angústia “Confesso que sempre que há eleições, eu tremo. A AD, por exemplo, já me deixou várias vezes à míngua, reduzindo o financiamento às artes de forma drástica.” Mas acentua que importa tomar decisões corajosas, não só em Portugal: “Já não se pode olhar para a Cultura como um assunto das elites. A Europa tem de perceber que está a perder um comboio que ela própria criou. Se queremos continuar a ter uma palavra a dizer no mundo, temos de fazer uma aposta determinada na Cultura.”
Pedro Sobral acredita, por sua vez, que o desenvolvimento do país depende de conseguirmos melhorar os índices de leitura: “Só com acesso universal ao livro é que o país pode, de facto, desenvolver-se. Mas esta ideia está completamente ausente dos programas políticos - quer à esquerda, quer à direita.”