Política
31 janeiro 2023 às 23h10

Da "deslealdade" à "rampa deslizante": o que dizem os juízes do TC

Declarações de voto mostram uma profunda divisão entre os juízes conselheiros do Tribunal Constitucional. Marcelo Rebelo de Sousa afasta referendo e diz que acórdão aponta o caminho a seguir pela Assembleia da República.

A maioria de sete juízes contra seis que fez vingar a declaração de inconstitucionalidade do decreto que despenaliza a morte medicamente assistida formou-se com quatro juízes eleitos pelo Parlamento e indicados pelo PSD, a que se somaram os três nomes eleitos para o Tribunal Constitucional por cooptação dos pares. Do outro lado ficaram cinco juízes conselheiros também eleitos pelos deputados, mas por indicação do PS, a que se somou um sexto nome, indicado pelos sociais-democratas. Recorde-se que o TC declarou a inconstitucionalidade de uma norma que, ao definir "o sofrimento físico, psicológico e espiritual" como condição para aceder à morte medicamente assistida, deixa uma "intolerável indefinição" sobre se estes requisitos são cumulativos ou alternativos.

Se a vitória tangencial - que acabou por ser determinada pelos nomes cooptados - mostra a divisão entre os juízes do TC, as declarações de voto expõem o fosso que os separa. De um lado critica-se uma argumentação em favor da inconstitucionalidade que "não é suficientemente plausível", no outro apontam-se outras inconstitucionalidades ao decreto e fala-se mesmo numa "rampa deslizante precoce" do quadro legal.

Um dos textos fala mesmo de uma "incompreensível deslealdade entre órgãos de soberania". Numa dura declaração de voto conjunta, Mariana Canotilho, António Ascensão Ramos, Assunção Raimundo e José Eduardo Figueiredo Dias (juízes que votaram contra a declaração de inconstitucionalidade, todos indicados pelo PS) referem que a "razão pela qual o decreto falhou o teste de conformidade constitucional foi uma singela letra" - o "e" da expressão "sofrimento físico, psicológico e espiritual". Para estes juízes conselheiros o "exercício de filigrana interpretativa que conduz à decisão" de inconstitucionalidade resulta "num standard de controlo que não se pode cumprir sem risco de abrir espaço a novas e distintas críticas à lei, numa espiral infinita de objeções possíveis". Os signatários desta declaração de voto sublinham que "há uma linha, por vezes ténue, entre um louvável rigor jurídico e o estabelecimento de condições impossíveis". Quando obedece ao primeiro o Tribunal Constitucional "exerce, na plenitude, as suas funções de guardião da Constituição", mas "quando ultrapassa tal fronteira", escrevem os quatro juízes, "invade a esfera de competências" e a "expressão da vontade geral do legislador democrático, desrespeitando o princípio da separação de poderes" - daí a "deslealdade". Noutra declaração de voto, Joana Fernandes Costa recusas dúvidas na interpretação da expressão que levou à inconstitucionalidade - "Atentando no elemento gramatical, não parece haver dúvidas de que a conjunção «e» pertence à categoria das conjunções coordenativas aditivas, que se definem como sendo aquelas que unem dois termos ou orações, estabelecendo entre eles uma relação de adição ou soma".

As diferentes perspetivas dos juízes conselheiros do TC levaram, aliás, à rejeição de um primeiro memorando, redigido por José António Teles Pereira, e à consequente mudança do relator do acórdão. Na sua declaração de voto, este juiz conselheiro volta a reafirmar-se "vencido" quanto "à asserção de compatibilidade da eutanásia com a proteção constitucional da vida humana", defendendo também uma declaração de inconstitucionalidade mais alargada (posição que expressou no memorando inicial), extensível ao facto de o decreto deixar à consideração do paciente se opta pela eutanásia ou pelo suicídio assistido. José António Teles Pereira não é o único a sustentar esta posição, mas houve uma outra questão que dividiu os juízes quanto a esta matéria em específico - o facto de o Presidente não ter pedido a apreciação da constitucionalidade desta questão em específico. O próprio presidente do TC, João Caupers, sustenta na sua declaração de voto que a "eutanásia não pode constituir uma alternativa livre: o recurso a ela deve estar condicionado à impossibilidade do suicídio assistido". "Apenas desta forma se pode respeitar o princípio da proporcionalidade, na vertente da necessidade", escreve, mas sublinhando a seguir que que "as normas a propósito das quais se poderia suscitar esta questão não foram incluídas no objeto do pedido de fiscalização do Presidente da República, não podendo, por isso, ser apreciadas" - a posição que vingou entre a maioria dos juízes conselheiros. Entre os que votaram pela inconstitucionalidade, há também quem aponte já "uma espécie de rampa deslizante precoce" no quadro legal, dando sustentação à argumentação de Marcelo Rebelo de Sousa de que houve um ampliar de situações em que será possível recorrer à eutanásia.

Depois de Luís Montenegro ter anunciado que o PSD vai reapresentar em setembro a proposta de referendo à eutanásia, Marcelo Rebelo de Sousa veio esta terça-feira afastar o cenário de uma consulta popular: "A Assembleia da República recusou já uma vez o referendo e não o apreciou da outra vez. É uma decisão que já tomou, está tomada". Sobre o acórdão do TC, o Presidente da República sustentou que o Constitucional tem procurado "facilitar a tarefa" da Assembleia da República - "Quer no primeiro acórdão, quer neste, de alguma maneira explicita qual é o caminho que deve ser seguido".

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