Carlos Matos Gomes: "Nunca vivemos numa democracia como a que existiu do 25 de Abril ao 25 de Novembro"
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Carlos Matos Gomes: "Nunca vivemos numa democracia como a que existiu do 25 de Abril ao 25 de Novembro"

O coronel Carlos Matos Gomes combateu nas três frentes da guerra colonial e ganhou duas Cruzes de Guerra. Foi Capitão de Abril. Nesta entrevista, falou do livro autobiográfico 'Geração D'.
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(Entrevista originalmente publicada a 7 de abril de 2024)

Chega a Moçambique como militar com 20 anos. Qual era a experiência de África para um miúdo  nascido em Vila Nova da Barquinha?
A experiência de África que eu tinha era a de ter muitos colegas oriundos da África portuguesa que estudaram comigo no Colégio de Tomar.

De toda a África portuguesa?
De toda. De Moçambique, de Angola, da Guiné, de Cabo Verde. Até de fora de África, pois também de Timor havia. De maneira que não tinha nenhuma noção de racismo. Tinha a ideia de que éramos portugueses, todos iguais.

No Colégio de Tomar havia essa camaradagem entre os miúdos?
Havia, sim. Toda a gente se praxava uns aos outros e convivíamos de manhã à noite. Havia negros que estavam no grupo de forcados, havia outros que representavam figuras históricas portuguesas, como o Gualdim Pais. E, portanto, é um choque tremendo quando chego a África e vejo aquilo que era a exploração e a violência do racismo contra os africanos que não eram cidadãos portugueses, porque não tinham direitos. Eram recrutados para fazer trabalhos de obras públicas e não eram pagos. Eram explorados nos seus coletivos agrícolas. Eram agredidos...

É um choque, mas, como conta no livro, não chegou a África com aquele ideal de que ia defender Portugal, defender a pátria.
A minha geração chega a África e já não tem a noção de que a pátria era do Minho a Timor e nem tem a noção da defesa do regime. Tem a noção de pertencemos a uma nação e a um povo que é europeu e que está inserido na história da Europa. Portanto, aquilo que vai ser a guerra para a minha geração é uma questão política. O regime que existe aqui neste país tem que resolver este problema, que é o problema de uma guerra, como todos os outros regimes tinham resolvido, como a República tinha resolvido na Grande Guerra. Mal, a vários títulos, mas mantendo Portugal no seio da Europa e das políticas europeias. O que não aconteceu com a recusa de integrar o movimento descolonizador.

Mas, enquanto militar que esteve em vários teatros de guerra, há também aquela consciência de que tem de lutar nem que seja pelos camaradas que estão consigo. Ou seja, há um momento em que a guerra já não é em nome de ninguém, é por vocês, pela vossa sobrevivência.
Essa é a grande questão dos militares e aquilo que temos de transmitir aos nossos soldados. A um soldado não se pode dizer que ele vai defender a pátria. Há uma história muito conhecida do rei D. Luís, que em jovem era oficial da Marinha e encontrou uns náufragos ali no Norte de Portugal e perguntou: “Vocês são portugueses?” E eles responderam: “Não, não, somos da Póvoa de Varzim”. [risos] E, portanto, nós combatemos por causa do camarada que estava ao nosso lado, para o defendermos, para nos defendermos a nós. E para regressarmos a casa.

Foi comando em Moçambique, também em Angola, voltou a Moçambique e depois esteve na Guiné. Sentiu a diferença da situação de guerra nas diferentes colónias?
A diferença mais forte entre Angola e Moçambique era a relação dos colonos brancos relativamente à tropa. Em Moçambique, a grande maioria dos colonos brancos estava abaixo do paralelo da Beira. E achava que a guerra era no Norte e era uma questão dos portugueses que iam daqui da metrópole, de tal forma que, quando começaram a ser mobilizados jovens brancos moçambicanos, disseram: “Então já não há homens em Portugal para vir combater?” Essa era a ideia. E a outra ideia era que, se a situação fosse muito grave em Moçambique, faziam uma aliança com a África do Sul. Portanto, havia a ideia nos militares que iam daqui da metrópole de que estavam a fazer uma guerra para a qual os moçambicanos brancos não contribuíam.

E em Angola?
Era diferente, porque Luanda estava muito perto das zonas de guerra. Então, no início, e a primeira vez que eu fui para Angola combater foi em 1969, ainda estava muito presente a questão dos massacres no Norte. Havia uma boa relação entre os colonos brancos e a tropa. Portanto, os militares europeus em Angola tinham maior suporte da população do que em Moçambique. Na Guiné, a comunidade branca era pequeníssima e não tinha nenhum relevo. Eram cerca de cinco mil colonos. E estavam sediados em Bissau e alguns em Bafatá. A questão que existia na Guiné era a relação da tropa portuguesa com 14 ou 15 etnias que entre elas não se entendiam. A língua era diferente, os códigos sociais e as religiões eram diferentes.

A guerra na Guiné era a mais difícil para a tropa portuguesa?
Era, porque a Guiné é um território muito pequeno e que ficava alagado em mais de um terço com as marés, o que quer dizer que com o alagamento do território ficavam apenas as zonas mais altas à superfície, que era onde estavam os quartéis. O que quer dizer que para o PAIGC era muito fácil descobrir os alvos e acertar. E para as tropas portuguesas era muito difícil movimentarem-se no lodo, nas chamadas bolanhas. Era muito difícil também gerir as marés para os navios navegarem, porque se apanhavam uma maré contrária os navios ficavam a seco, portanto encalhavam e ficavam expostos. Por outro lado, o clima da Guiné era tremendo, com temperaturas e humidade muito altas, e tudo isto depauperava, tanto que a Organização Mundial de Saúde aconselhava que os europeus na Guiné não estivessem mais de 18 meses. Mas a falta de efetivos aqui em Portugal para render as tropas que lá estavam levou a que até ao final as comissões na Guiné fossem estendidas até aos 24, 27 meses. Eu estive 24 meses na Guiné.

Ao todo, quanto tempo esteve na guerra de África?
Cinco anos e tal.

Conheceu o general António de Spínola na Guiné. Queria perguntar-lhe a sua opinião sobre Spínola em duas vertentes. Uma é a do chefe militar em África e a outra é a do Presidente da República logo a seguir ao 25 de Abril, que acaba por ser visto como o homem que já quer ser um novo César.
Spínola, enquanto comandante-chefe militar de operações de guerra de contrassubversão, é o general que vai mais longe na ideia da doutrina de que as guerras subversivas são questões essencialmente políticas e têm que ter resolução política. E ele procura isso enquanto governador e enquanto comandante-chefe da Guiné, isto é, ele diz às suas tropas, em primeiro lugar, “aquilo que eu quero é que vocês não percam a guerra, eu não peço que ganhem a guerra, eu quero que vocês não a percam”. Por outro lado, teve sempre um cuidado extremo em dar diretivas à sua tropa para não exercer nenhuma violência relativamente às populações, nem sequer com o inimigo. Isto é, ele queria manter relações de afeto e que nunca pudessem ser acusados, Portugal e as próprias tropas portuguesas, de terem cometido violências que cortassem os laços afetivos que ele considerava essenciais.

Isso pedido por um homem que tinha dado provas de coragem física enorme...
E deu, e deu também provas de uma grande inteligência e de um grande bom senso enquanto comandante-chefe e enquanto governador, na medida em que estabeleceu esses laços de afeto, de emoção e de confiança com a população. Que depois não consegue estabelecer quando está em Portugal investido nas funções de Presidente da República.

No 25 de Abril de 1974, no seu caso, estava ainda na Guiné?
Eu estive na Guiné até o general vir para Lisboa, estive até depois disso. Todos os oficiais do grupo do Spínola vêm com ele no verão de 1973. A partir do verão de 1973, que é quando começa o Movimento dos Capitães, deixam de existir praticamente spinolistas na Guiné. O que permite ao grupo que tinha uma visão diferente da dele de descolonização ter uma ação decisiva na Guiné no 25 de Abril, que foi estabelecer imediatos contactos com o PAIGC, declarar um cessar-fogo, fechar a PIDE e libertar os presos políticos.

O conflito do MFA, dos Capitães de Abril, com Spínola começa na Guiné. Spínola foi megalómano, achava que ia ser o De Gaulle português, um César?
Não. Tem a ver, obviamente, com a personalidade, mas não tem a ver com megalomania. Spínola é um general que governou a Guiné enquanto general. Isto é, com uma autoridade que lhe é dada por um Estado. E ele executa e exerce a sua autoridade de cima para baixo e não necessita de ser apoiado nem de granjear um voto eletivo. Tem uma legitimidade própria e não uma legitimidade dada pelo povo. Por outro lado, quando chega aqui a Portugal, não conhece nada. Esteve cinco anos afastado, a viver uma outra realidade, e quando chega aqui não percebe que Portugal era uma sociedade, já em 1974, evoluída, aberta ao exterior. Havia uma nova classe social culta, havia já um grupo de estudantes e de classe média que se relacionava com o estrangeiro, que exigia participar na vida política, e não propriamente aplaudir um César. E é esta incompreensão, esta impossibilidade de perceber o que estava aqui a acontecer, que leva a que ele ande sempre fora do tempo. Até a imagem que transmite à sociedade portuguesa é completamente errada. Ele aparece de monóculo, de boné, de capote com a gola vermelha, a fazer discursos de pingalim, de mão elevada. Ora, isso já tinha passado.

O espírito revolucionário era o oposto disso.
E a sociedade já também não aceitava isso. E há um outro aspeto. Ele era profundamente anticomunista. E tudo aquilo que vê de manifestações pela liberdade ele entende que são os comunistas que estão por trás, para tomarem conta do poder. Mesmo quando é a tropa ou quando são casais de namorados que vão no carro namorar ali para o pé da casa onde ele vivia, em Massamá [risos].

No seu livro expressa grande admiração por Otelo Saraiva de Carvalho. Está a falar do militar, do operacional do 25 de Abril?
Estou a falar de tudo. O Otelo era um homem culto. Em segundo lugar, era um homem com uma grande intuição política. O Otelo é o responsável pela introdução do povo na Revolução. Quando o Fernando Salgueiro Maia está no Largo do Carmo, na pior situação possível em que um comandante pode estar, que é ter as suas viaturas, os soldados, num local fechado, em que qualquer caixa de fósforos que estivesse ali ardia ou uma garrafa que se tivesse partido podia ter provocado uma situação de pânico que se tornava incontrolável, liga e pergunta para a Pontinha, para o posto de comando: “Eu tenho aqui esta população a entrar, o que é que faço?” E o Otelo diz-lhe: “Esta revolução é para o povo e o povo tem de entrar.”

Isso é mesmo Otelo a falar, não é?
[Risos] É. “O povo tem que entrar, pá.” O Salgueiro Maia foi o responsável por tudo aquilo correr bem, mas o Otelo tem, desde o início, a intuição de que o povo é que tem que dizer o que é que quer, e esta era a ideia inicial do Movimento dos Capitães. Quando nós dizemos que vamos derrubar o regime, e vamos derrubar o regime porque o regime não ouve os seus cidadãos, não está legitimado, então temos que dar voz ao povo. E dar voz é isto, é ouvir as pessoas, é deixá-las vir e decidir o seu futuro.

Falou aqui do Salgueiro Maia, alguém que conheceu intimamente.
Nós conhecemo-nos desde os 11 anos, porque o Salgueiro Maia também andou no Colégio de Tomar. Eu estava lá e o pai do Fernando Salgueiro Maia era o chefe da estação de caminhos de ferro de Tomar. Portanto, ele era um ano mais velho do que eu, em idade, mas depois na Academia Militar estava um ano depois de mim, porque, devido à profissão do pai, ele desde que nasceu tinha que ir mudando de estação, de terra, e nestas mudanças perdia anos e, portanto, entrou um ano depois de mim. Estivemos em Moçambique, ele esteve numa companhia de comandos que a minha companhia  rendeu. Estivemos na Guiné ao mesmo tempo, em algumas das mesmas operações. Mantivemos sempre uma relação.

Porque é que Salgueiro Maia ficou um pouco como o herói impoluto da revolução? Por ter morrido jovem?
Uma parte é isso. A outra é que ele era efetivamente um homem desligado… não do poder, nem da política, mas desligado da representação do poder. Recusou ser membro do Conselho da Revolução e ser membro de variadíssimos organismos. Portanto, nunca quis nenhuma dessas prebendas que se podiam oferecer. E tinha uma consciência política muito presente. Tinha, em primeiro lugar, consciência de classe. Tinha também a consciência de ser alentejano, a consciência geográfica. E tinha uma relação de humanidade com os seus subordinados. Ele era sempre um cúmplice dos seus subordinados. E, portanto, era um comandante de altíssima categoria.

No seu livro diz também que o 25 de Novembro de 1975 não é exatamente a história  simples  que hoje se conta. Mas há duas figuras, dois triunfadores do 25 de Novembro, por quem confessa grande admiração, que são o general Ramalho Eanes e Mário Soares. São dois fundadores da democracia essenciais?
Não, nenhum deles é fundador de democracia nenhuma. A democracia é um processo que, aqui em Portugal, vai percorrendo várias etapas até chegar àquilo que é o modelo da democracia liberal, que existe na Europa apenas a partir da Segunda Guerra Mundial. Nós estamos hoje a falar de democracia, mas nunca vivemos numa democracia tão alargada quanto a que existiu desde o 25 de Abril até ao 25 de Novembro. Aquilo que vai limitar e enquadrar e meter em redil partidário a democracia é o 25 de Novembro.

A democracia foi mais efetiva no período revolucionário?
Absolutamente. O que é que acontece? A democracia mete medo aos democratas formais, isto é, àqueles que modelam os sistemas de representatividade, que é o que existe. Nós vivemos numa democracia de representação indireta, e indireta a níveis altíssimos. Por exemplo, o procurador-geral da República tem uma legitimidade em quarto ou quinto grau. Desde que eu elejo um deputado até chegar à representatividade do procurador-geral da República vão cinco ou seis passos.

Mas no caso do Presidente da República, até elegemos  por voto direto.
Sim, e por isso é um órgão de soberania. Como a outra figura institucional de democracia direta, que é a Assembleia da República, também é órgão de soberania. Mas quase tudo é indireto.

Voltando a Eanes e Soares...
Eles são os protagonistas da transformação de um processo político que poderia ter variadíssimas saídas. São os protagonistas do atual regime democrático. E são-no porquê? Em primeiro lugar, porque tinha sido decidido fora de Portugal que o regime político de Portugal tinha de ser um regime político idêntico ao dos outros países europeus. Tinha de ser um regime que não metesse medo aos falangistas espanhóis aqui ao lado, que estavam no início do processo de transição. É curioso que o general Franco morre nas vésperas do 25 de Novembro, a 20. E Juan Carlos é rei a 22. Era importante para a Europa e para os Estados Unidos que houvesse aqui um regime que não assustasse os franquistas.

Quem está a ouvi-lo e não leu o seu livro nem o conhece vai pensar que é comunista. Nunca foi comunista?
Não, nunca fui comunista. Também deixei de acreditar em outros salvadores muito cedo [risos]. E também sou de tal forma arrogante, porventura, que não aceito que sejamos todos iguais. Quero preservar a minha diferença e a minha liberdade. Quero preservar as minhas capacidades, o meu direito à dúvida e o meu direito a correr os meus riscos e a ser responsável por eles. Agora isto não me impede de fazer uma análise. E aquilo que os outros deixaram fazer aqui, à situação portuguesa, foi um regime igual a todos os outros, digamos um prêt-à-porter, sem fantasias. Nesse caso eu sou tão comunista quanto o Eça de Queiroz, que disse que a democracia era uma coisa que nós importávamos da Europa e que nos ficava normalmente curta nas mangas e apertada na barriga [risos]. E daí que aquilo que digo é que o Eanes e o Soares são importantes porque eles tiveram a capacidade de conjugar as imposições exteriores, adaptá-las e, digamos, fazer aquilo que as costureiras fazem, que é adaptar a roupa que nós compramos já feita e depois apertam na barriga, dobram nas pernas e nas mangas. Eles tiveram essa capacidade de o fazer, e de o fazer mesmo assim sem grande violência, embora tenha havido uma violência clara, porque também era importante mostrar ao exterior que havia essa rutura com o processo revolucionário. E um dos que sofre com isso é claramente o Salgueiro Maia, que teve que ser retirado de Santarém, que era a sua unidade, porque não se podia dizer nos Estados Unidos ou em Bruxelas que tudo mudou no regime e então a figura que era o Salgueiro Maia mantinha-se no mesmo sítio? É por isso que teve que ser “exportado” para os Açores.

A sua veia romancista, os livros que assina como Carlos Vale Ferraz, é a experiência de África que lhe dá o essencial do material?
África dá-me esse essencial porque nós, os ficcionistas, elaboramos sempre a partir de qualquer coisa em nós mesmos. Todos os livros são autobiográficos. O nosso ego é sempre o primeiro. E os meus livros são também autobiográficos. E nós contamos sempre as nossas histórias, aquilo que temos. O contar vem um pouco da tradição da minha família, de um tio, um tio do meu pai, com quem eu passava as férias, em Cernache do Bonjardim. Ele tinha uma quinta, a Quinta de Vale Ferraz. O meu pseudónimo vem dessa quinta, desse fabuloso contador de histórias.

Daqueles colegas de que falou do Colégio de Tomar, há pelo menos dois que chegam muito alto nos novos países africanos.
Sim, o  general João de Matos, que chegou a chefe do Estado-Maior de Angola, e o Júlio Semedo, que foi embaixador na Suécia do PAIGC. Depois, quando o PAIGC declara a independência unilateral, e é reconhecido, foi embaixador do PAIGC nas Nações Unidas, e é lá que ele está quando há o 25 de Abril aqui. Depois vem das Nações Unidas para Londres, para a primeira negociação do PAIGC com Portugal.  

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