António Vitorino: “O plano do Governo para as migrações é feito com bom senso e uma base de trabalho positiva”
Comecemos pelo projeto europeu. No seu entender, está a ser atacado pelos europeístas ou pelos extremistas anti-Europa?
Historicamente houve sempre uma corrente eurocética que saiu reforçada nestas últimas eleições europeias. Não tanto quanto se receava, diga-se de passagem. Não chegaram aos 25% de votos, que era o que se temia.
Obviamente, são muito mais assertivos e utilizam os argumentos contra a Europa, que têm, sobretudo, a ver com aquilo que chamo o mal-estar social europeu. A imigração é um dos exemplos dessas armas que são usadas pelos eurocéticos para desacreditar o projeto europeu.
A responsabilidade maior agora é dos europeístas, dos que acreditam na Europa e mostrar que a Europa pode fazer a diferença. De alguma forma estou otimista. E é espantoso eu dizer isto, porque não é meu costume. Mas estou, porque acho que a pandemia reconciliou os europeus com a Europa, por tudo o que se fez para responder aos problemas concretos das pessoas, não às grandes construções teóricas, mas aos problemas concretos durante a pandemia. Seja do ponto de vista da saúde, mas também do ponto de vista social. Foram dois sinais claros. Com o plano agora de resiliência e de recuperação, etc.
São exemplos de que a Europa tem um papel muito importante a desempenhar na vida das pessoas. Mas isso ficou refletido nos resultados eleitorais para o Parlamento Europeu. A circunstância de ter havido uma maioria das três famílias políticas que historicamente têm garantido a estabilidade do projeto europeu, é positivo.
É verdade que os liberais perderam um pouco, cerca de 20% da representação. Algo muito ligado à França e também um pouco a Alemanha. Mas a verdade é que o Partido Popular Europeu (PPE), do centro direita reforçou a sua votação. A quebra dos socialistas é muito ligeira e, portanto, estas três famílias continuam a ser a força motora do projeto europeu.
Mas se toda a gente viu esta deriva extremista a crescer, porque é que nenhum líder nacional tratou de a corrigir?
Essa deriva é uma deriva que tem incidências nacionais muito fortes. Isto é, nós vemos a resultante para a Europa. Mas a realidade do crescimento é nacional. Basta olhar para Portugal, não é? Quer dizer, o crescimento do Chega nas últimas eleições legislativas é um fenómeno estritamente nacional que por acaso não se reproduziu nas eleições europeias.
Aquilo que é o percurso da extrema direita em alguns países já se adivinhava há muito tempo. O partido Wilders ganhou as eleições na Holanda, a senhora Meloni ganhou as eleições em Itália e as europeias também, o que não sucedeu, por exemplo, na Holanda.
E temos um partido e um primeiro ministro que sempre foi bastante eurocético, na Hungria há já três mandatos. Portanto, há um microclima nacional.
Depois, o que eu acho é que existe claramente uma subida de grau da coordenação entre as várias correntes, que não é fácil porque eles estão divididos agora em três grupos desde a semana passada, com este novo grupo criado pelo primeiro ministro húngaro.
O que significa que ser contra a Europa une, mas nenhum deles, isoladamente, tem qualquer proposta positiva sobre o futuro europeu. E é esse o combate que é preciso travar. Mas isso é curioso. Como é que se falam as forças que são nacionalistas e, portanto, divisionistas no sentido do que é o federalismo ou o projecto europeu?
Usam como discurso a União, a unidade?
Acho que esse a explicação é muito simples e nós devemo-la aos britânicos. Isto é, o Brexit foi um desastre. Eu acho que já ninguém hoje pode negar que o Brexit tenha sido um desastre para o Reino Unido e também um enfraquecimento da Europa. Há que dizê lo claramente.
Como modelo, o Brexit não funcionou. Portanto, os eurocéticos, que não são destituídos de massa cinzenta, perderam o tapete. Perceberam que não era por essa via que podiam defender aquilo que é a sua leitura nacionalista e fizeram claramente uma agulha para minar a Europa por dentro e ir ganhando posições dentro do contexto europeu para sabotarem o projecto europeu.
Veja o caso da senhora Le Pen, que era contra a saída da França da Europa. Onde é que isso está hoje? Desapareceu. Depois, nas eleições seguintes, já só era com sobre a saída da França do euro. Onde é que isso está? Desapareceu.
Hoje já nem sequer fala verdadeiramente da NATO. Diz que é preciso encontrar formas de segurança e defesa europeias que garantam a paz, que é um eufemismo para explicar que não está empenhada no apoio no apoio à Ucrânia.
Portanto, há aqui um recuo do que era a agenda dura e a sua substituição por uma agenda que eu chamaria disfarçada soft, que tem um objectivo político claro que é minar as instituições por dentro e é contra isso que nós temos que lutar.
E lutar significa fazer a diferença para os europeus, mostrando que a União Europeia tem um papel imprescindível no bem estar, na prosperidade e também na paz.
E em França, acha que Emmanuel Mácron foi o grande culpado em por “secar” os moderados no país?
É verdade que o presidente Mácron aparece com uma estratégia de aniquilar os partidos tradicionais republicanos, socialistas e os comunistas. esse sentido, constituir-se como a única referência não extremista da França. Mas a França é um país sempre muito especial. Há uma velha frase que dizem os franceses preferem fazer revoluções em vez de fazer reformas.
De alguma forma, o aparecimento de Mácron foi uma revolução no sistema partidário. Nunca conseguiu construir um partido alternativo e, portanto, a mudança não é só de protagonistas, é também uma mudança estrutural. Isso deu espaço para que houvesse uma polarização quer à direita, a Frente Nacional, agora à União Nacional, quer à esquerda a França Insubmissa, que é fruto de um conjunto de dissidências do Partido Comunista e do Partido Socialista também, e que se afirmou como um polo alternativo que talvez, nestas eleições, perca um pouco de peso em virtude de nós estarmos a assistir a uma recuperação ainda tímida.
Mas, apesar de tudo, há uma recuperação do Partido Socialista (PS), que ficou em terceiro lugar nas eleições para o Parlamento Europeu e que agora subiu de 70 candidatos nas eleições para cerca de 175. Veremos qual vai ser o resultado final.
Mas não passaria pela cabeça de alguém que o frentismo, nesta altura, ainda pudesse fazer caminho. No entanto, foi a única alternativa que pelo menos na primeira volta que surgiu…
O sistema eleitoral francês é muito especial. É um sistema onde os candidatos têm que saber jogar com o sistema e evitar triangulares. Quer dizer, três candidatos vão à segunda volta…
O terceiro mais votado se tiver mais 12%…
Pode ir. Aliás, sobre o sistema francês costuma-se dizer à primeira escolhe-se, à segunda elimina-se. É a lógica de um sistema maioritário a duas voltas. Isso significa que nestas eleições, que vão agora ocorrer no domingo, vai haver, espero eu, um número muito significativo de candidatos terceiros, candidatos que não se apresentaram para permitir a concentração de votos na segunda volta.
Portanto, não haverá muitas triangulares. Vamos ver. Estamos a gravar esta entrevista na terça-feira, dia 2, e só mais logo saberemos quantas triangulares vão, de facto, ter lugar. Mas que estas eleições vão ser diferentes das últimas, isso vão, de certeza absoluta. Repare nas últimas, na primeira volta só cinco deputados é que foram eleitos com mais de 50% dos votos.
Nestas eleições temos cerca de 65 candidatos que já foram eleitos à primeira volta. Infelizmente a maioria deles é da União Nacional.
Falámos de Mácron, mas do outro lado está o Sr.. Orbán? Que perigos é que oferece para esta arquitetura?
Orbán é um político muito hábil. Não adianta subestimar o seu jogo de cintura, porque mantendo relações muito íntimas com Putin e com a Federação Russa, até do ponto de vista económico, diga-se de passagem, as sanções europeias não se aplicam.
A Hungria tem energia a um preço particularmente confortável, além de ter ela própria centrais nucleares de fabrico russo, algumas delas ainda do tempo da União Soviética. Orbán é um político nacionalista, claramente, que tem como ideia de que tem de se posicionar no limite possível do esticar da corda.
Mas quando se trata de esticar da corda, nós já vimos isso, foi tomar um café, o que não é bem um ato heroico, digamos assim. Eu tomo quatro por dia e a minha mulher diz que tomo demasiado.
Isso aconteceu mesmo.
A sua experiência de comissário europeu e diretor da Organização Internacional para as Migrações (OIM) faz com que tenha uma visão conflituante sobre a política de migrações da União Europeia (UE)? Recentemente foi aprovado o Pacto para as Migrações.
Como para esta política e para este Pacto?
Este Pacto vem substituir a legislação que eu propus há 20 anos. E isso só por si é um dado que diz tudo. Nós vivemos durante 20 anos com iniciativas legislativas que eu tomei quando fui comissário e, obviamente, o mundo mudou muito.
Por muita previsão que eu pudesse ter tido há 20 anos, nós não podíamos imaginar a tensão geopolítica, a proliferação das crises humanitárias, a guerra civil na Síria, por exemplo, na crise de 2015, o que se passa neste momento em Gaza… Quando fui para o Iémen em 2018, havia seis crises humanitárias de topo. Quando eu saí, havia 11. Isto diz muito, muito.
A realidade é que o mundo da mobilidade humana, sobretudo depois da pandemia - que foi um algo inédito e onde pela primeira vez o mundo parou no sentido estrito do termo, o que para uma organização que que cuida da mobilidade humana, imagine o que é que isto não significou -, portanto, o corte epistemológico da pandemia, mais a proliferação das crises humanitárias e o crescimento da pressão migratória, prova que a UE tinha que adotar um novo quadro de referência para poder responder aos desafios das migrações.
Ao que acresce que as migrações hoje são, de facto, um tema altamente divisor na política. Há uma espécie de campo de escolha para o afrontamento político, para a polarização, para a radicalização de posições a propósito das migrações. Reconheço que hoje aprovar a legislação europeia sobre migrações a 27 Estados-membros - eu aprovei-a nos tempos em que éramos 15 - é muito mais difícil.
É só divisor na política ou também na própria sociedade?
É divisor nos dois planos, embora convenha entender que não é igualmente conflituante em todos os países. Repare quando o Eurobarómetro da Primavera enumerou as dez principais preocupações no conjunto da UE, a emigração vinha entre o quinto e a sétima dos cidadãos.
Nalguns países como, por exemplo, na Europa do Sul, a preocupação com a imigração não era tanto apenas com os que vêm, mas também com os que saem, com a emigração. Sabe qual é o país onde há maior volume de percentagem de emigrantes? Hoje é a Hungria. O que é muito curioso. Portanto, no Eurobarómetro as migrações não vinham no topo da agenda.
Contudo, em países como a Áustria e e a Alemanha, vinha como a preocupação número um. Porém, o espaço do debate político ocupado pelas migrações foi muito superior a outras prioridades do Eurobarómetro que as pessoas consideravam muito mais relevantes.
Portanto, é um tema que joga com a economia, joga com a identidade, joga com a coesão das sociedades. Tudo isso está em cima da mesa quando nós falamos de imigração.
Aconteceu o mesmo na nossa campanha para as eleições europeias, a imigração marcou praticamente todos, todos os debates. O que é que é preciso para ser moderado neste debate sobre os fluxos migratórios?
É simples. Ter bom senso.
E o que é que é preciso para ter bom senso?
Em Portugal, um país que tem uma história de emigração tão profunda e que não há praticamente nenhuma família portuguesa da minha geração que não tenha tido um familiar emigrado em França, na Suíça, na Alemanha ou no Reino Unido, por exemplo, durante os anos 60 e 70 do século passado, é um bocadinho confrangedor ver, por exemplo, que os populistas aqui cantam a cantilena da cartilha do Steve Bannon.
Aquilo é tick the box, é assinalar os temas todos, tenham ou não tenham qualquer correspondência com a realidade. Que em Portugal há demasiados imigrantes - estamos abaixo da média europeia a 10%, eventualmente 12%, comparados com o resto da Europa, em média.
Depois temos uma espécie de estado de negação. Sabe quantas pessoas são imigrantes e que trabalham na agricultura e pescas em Portugal? 40%. Faça a seguinte exercício: tire 40%, a mão de obra da agricultura pára e veja o que é que acontece.
Olhe para a restauração e hotelaria, o turismo. 30% de mão de obra estrangeira, um terço da mão de obra que do setor que garante 15% do PIB português são estrangeiros, são imigrantes. Olhe para a construção civil. São 28% quando nós o que precisamos é de construir casas, não é?
No outro dia alguém me referia que o PRR, em matéria de construção da habitação, vai exigir mais imigrantes, não menos. Portanto, há aqui um estado de negação e uma retórica que é tributária de uma leitura identitária e extremista da vida coletiva que os populistas alimentam, que depois não tem correspondência com a realidade, com as necessidades da economia e também com os desafios da coesão social. Eu não subestimo isso.
O que está a falhar ou que falhou? Provavelmente foi a forma de de regularizar essa imigração, não é? Sabe que estamos com 400 mil processos pendentes. São pessoas que estão, muitas delas que estão cá já a trabalhar há algum tempo e que não têm os documentos válidos.
O que é que é preciso a partir de agora, porque o Governo apresentou o Plano de Ação para as Migrações, para acolher e integrar de forma digna todos esses imigrantes que fazem falta?
Eu vou dizer uma coisa que me vai custar algumas críticas na minha área política, mas acho que o plano do Governo para as migrações é feito com bom senso e, nesse sentido, é uma base de trabalho positiva. No tom e na narrativa. Falta agora passar aos detalhes e muitas vezes, como sabe, o diabo está nos detalhes.
E quais são esses detalhes?
Em primeiro lugar, é preciso limpar os atrasos, os pendentes. Nunca fui um grande fã da manifestação de interesse. Devo confessar, é um método possível que foi aqui aplicado a Portugal. Tem uma vantagem e uma desvantagem.
A vantagem, vou dizer isto assim, de uma maneira um bocadinho eufemística, é um método indolor de regularização contínua. Outros países fazem movimentos de regularização. Nós próprios, portugueses, já fizemos. Mas tem um reverso da medalha, que é o efeito de chamada.
Repare que neste mundo das migrações é muito frequente a palavra passar rapidamente dizendo onde é que há mais hipóteses e isso tem um efeito de atração.
Manifestamente, o Estado português não estava preparado para responder a esse súbito efeito de chamada que ocorreu nos últimos nos últimos três anos.
Portanto, a prioridade das prioridades agora é regularizar essas pessoas, clarificar a situação, não apenas dos que já estão a descontar há mais de um ano, mas também o que é que acontece a aqueles que ainda não têm um ano de descontos ou que nem sequer se chegaram a inscrever junto da AIMA (Agência para a Integração, Migrações e Asilo) para esse fim.
Essa é a primeira preocupação. Uma segunda preocupação que eu tenho e que é mais ambiciosa - e acho que sem isso não há uma política de imigração - é sermos proativos. Isto é, não estarmos apenas à espera que venham aqueles que nos procuram, mas sabermos ter uma estratégia de atração daqueles de que precisamos. E eu sei que me vão dizer, pois, os Einsteins deste mundo… pois, com certeza, os Einsteins são muito bem-vindos.
Ir à origem.
Sim. Mas não é só de Einsteins que precisamos. Para tratamento de crianças, tratamento de idosos não é preciso ter um doutoramento para isso. É isto que este Governo vai ter de fazer. Vai ter que identificar quais são as áreas mais carentes de mão de obra e ser proativo nos países de origem.
Concordo com a preferência em relação aos países da CPLP, faz todo o sentido. A integração é mais fácil, até pela comunhão da língua. Alguns países fazem isso e são proativos. O Canadá é o exemplo perfeito de uma política de Pre-Departure Preparation. O que é que isto quer dizer? Preparação das pessoas antes de partirem para o Canadá.
Isso exige que as associações patronais se mobilizem para identificar as suas necessidades e colaborem com as autoridades do Estado, com os postos consulares, para garantir que esse processo é eficaz. E é aí que, às vezes, nós portugueses, temos pequenos problemas de funcionalidade.
Porque o privado não funciona bem com o Estado?
O privado, em primeiro lugar, tem de aprender que tem de ir à busca, tem que ir à procura. Não podem ficar à espera dos que vêm. Em segundo lugar, é necessário que haja flexibilidade dos mecanismos administrativos.
Um visto de trabalho é algo pesado, mas um visto de procura de trabalho pode ser um instrumento mais ágil. Autorizações discricionárias em função das necessidades do mercado laboral são sempre possíveis.
Portanto, o que eu preconizo é que haja uma grande flexibilidade nos mecanismos e que haja uma estreita colaboração entre as entidades empregadoras, os sindicatos. Atenção, eu não ponho os sindicatos fora deste filme porque o interesse dos sindicatos é que havendo falta de trabalhadores, que os trabalhadores que vêm sejam legais, com condições de trabalho dignas e decentes.
Por isso, a vigilância da imigração ilegal, que dá origem a abusos e violações da dignidade dos imigrantes, é menos uma questão dos postos de fronteira e é muito mais uma questão da Autoridade para as Condições de Trabalho (ACT).
Mas há um problema. Deixe-me por aqui uma pedra na engrenagem que é o Canadá. Quem recruta fica a trabalhar no Canadá. Em Portugal quem recruta não fica necessariamente a trabalhar em Portugal, porque está num espaço um pouco maior...
Nós temos um fenómeno de remigração, mas o facto de se estar regularizado em Portugal como imigrante não dá direito a ir trabalhar para Espanha. Não, tem que iniciar um processo outra vez. Esse é um dos problemas que existe. Vou contar-lhe uma história que eu vivi, que nós vivemos.
Não sei se se recordam, de 90 mil ucranianos aqui em Portugal no início dos anos 2000. Foi a grande época da construção dos estádios para o Euro 2004. Mas e esses 90 mil estiveram cá e quando acabou essa onda de construção civil, houve uma quebra na indústria de construção em Portugal. Isso coincidiu com o boom da construção em Espanha.
O que, razoável e racionalmente, os ucranianos fizeram depois de se regularizarem cá, foi atravessar a fronteira, que aliás não existe, como se sabe. Mas qual foi a consequência disso?
Ficaram ilegais.
Ora bem, passaram a ser imigrantes ilegais em Espanha porque não há nenhuma coordenação no espaço europeu e as facilidades de circulação não são acompanhadas de uma espécie de concertação do estatuto legal.
E não há soluções e medidas estruturantes, para ou regular, harmonizar os fluxos migratórios? No fundo, os fluxos migratórios nunca vão parar. Aliás, alguém ligado aqui às migrações me dizia que este fim das manifestações de interesse não vai impedir que continuem a entrar imigrantes em Portugal. Ou seja, no fundo, o que é que conhece desta realidade no mundo que tenha funcionado neste aspeto?
Há alguns fenómenos que convém ter em linha de conta e percebê-los bem. Por exemplo, os fluxos migratórios são muito sensíveis às flutuações do mercado de trabalho, ao contrário do que muita gente possa supor.
Quando há uma crise de desemprego num país tradicional de destino, há imediatamente uma redução do fluxo migratório para esse país. Porque as pessoas querem vir trabalhar e se é mais difícil de encontrar emprego não vem. Funciona assim.
De facto, isto não é retórica, nem é uma história de encantar. Esta é a realidade que eu vi em concreto em muitos sítios. É verdade que quando há crises económicas, também muitas vezes os imigrantes fazem - utilizando uma expressão popular - das tripas coração para ficarem mesmo com todas as dificuldades.
Na crise financeira de 2007- 2008, os mexicanos nos Estados Unidos, que enviam muito dinheiro para o México, deixaram de poder mandar esse dinheiro. E o que se verificou, coisa espantosa nunca vista antes, é que era do México que vinha o dinheiro para os mexicanos nos Estados Unidos, porque se entendia que a crise ia durar algum tempo apenas, e, portanto, era preciso aguentar as pessoas que lá estavam e que depois viriam a ressarcir.
Este fluxo é muito interessante e muito mais racional do que nós possamos supor. Agora, os imigrantes que estão em situação irregular, na esmagadora maioria dos casos não entram irregularmente nos países de destino. Entram regularmente com um visto e passaporte. Só que estão só autorizados a estar aqui três meses. Mas ao fim de três meses ficam. E é a partir desse momento que ficam em situação irregular.
O que é preciso é garantir que essas pessoas não ficam sujeitas a abusos, a violação e a empregos degradantes que o seu estatuto de ilegal não lhes permite recorrer às autoridades. Não sei se me faço entender.
Isto é uma situação kafkiana. Porque eles estão irregulares, não podem identificar-se às autoridades porque correm o risco de ser expulsos, são objeto de abuso e os empregadores sem escrúpulos beneficiam disso, pagando salários mais baixos ou nem pagando o salário de todo. Isto exige uma atenção muito especial sobre o funcionamento do mercado laboral, em primeiro lugar.
Em segundo lugar, a integração dos emigrantes é um fenómeno micro. Ele joga se a nível do local de residência, do local de trabalho e, talvez vos surpreenda, das escolas.
Quando a imigração é familiar, as crianças têm um papel de socialização das famílias brutal, de uma efetividade…
Diria que é o maior caso de sucesso e a melhor forma de integração?
No caso português, é de certeza absoluta. No outro dia estive a fazer uma conferência numa escola onde havia 30 nacionalidades. Isto exige um esforço enorme aos professores, da administração escolar. Mas ali na escola é que se faz a verdadeira integração cultural da juventude dos jovens.
Os professores é que são os verdadeiros mediadores?
Além dos professores, há mediadores específicos em vários sítios para esse efeito. Mas, sem dúvida alguma, o grande choque da linha da frente foi assumido pelos professores, que fizeram um trabalho notável e que tiveram de se adaptar àquilo que era o modelo clássico, de todos os meninos iguais e de todas as meninas iguais para uma muito maior diversidade.
Isso contribui só para a geração que está na escola ou depois também contribui para os pais e para o resto da sociedade?
Se quiser, entre aspas, contamina os pais. Não mais do que isso. É o grande fator de socialização dos pais em muitas destas famílias, que tem uma cultura diferente da nossa. Por exemplo, as mães não trabalham, são domésticas e, portanto, o grande contacto com a dinâmica social é feita através dos filhos e os filhos transmitem aos pais essa experiência de diversidade e de multiculturalidade que é a sua vida quotidiana.
É por isso que eu digo que o local de residência é muito importante. As autarquias locais têm um papel essencial e aí há equilíbrios às vezes difíceis de encontrar. Reconheço isso. Segundo lugar, os locais de trabalho.
Patrões e sindicatos têm que olhar para a imigração como algo que é muito importante. E também formação profissional. Não há muita sensibilidade em Portugal para que se invista na formação profissional dos imigrantes.
Isso é um erro que nós vamos pagar caro, porque com 30% de imigrantes na restauração e na hotelaria, se não lhes derem formação, a qualidade do serviço vai baixar inevitavelmente. E isso é negativo para as empresas. Pronto, já disse, já mandei o recado para o Turismo, que é responsável por 15% do PIB. E, finalmente, a escola.
Teve a experiência, como diretor da OIM, dos diversos fluxos migratórios que existem. Qual é que é a situação que considera mais grave? Ou então, se quiser ir pela positiva, a qual é que é a melhor?
São todas elas situações muito difíceis, onde morre muita gente. Provavelmente, a rota onde morre mais gente hoje em dia de que se saiba, é a rota do Mediterrâneo central entre a Líbia e a Tunísia e a ilha italiana de Lampedusa.
Mas, por exemplo, o número de pessoas que estão a ir para as Ilhas Canárias, a partir do Golfo da Guiné, do Senegal, está em crescendo constante. Aí a contabilidade dos que morrem nessa rota ainda é mais difícil de fazer, porque o mar, o Atlântico, não é o Mediterrâneo. O Atlântico é um mar, o Mediterrâneo é um lago agitado.
Há outras rotas extremamente mortíferas, por exemplo, a do Corno de África para o Golfo de Aden, para o Iémen, que é um país em guerra civil. Mas estes fenómenos são muito curiosos, porque dependem muito da perceção que se tem.
Sabe quantas pessoas tentaram entrar na Europa e ficaram retidas no ano passado pelas várias fronteiras marítimas, Mediterrâneo Oriental, Mediterrâneo, Central, Mediterrâneo Ocidental em relação a Espanha, Ilhas Baleares também, e na rota do Atlântico? Cerca de 126 mil pessoas. Sabe quantas pessoas estão retidas na fronteira sul dos Estados Unidos com o México? São dois milhões.
Portanto, é bom que tenhamos consciência da proporção das coisas, para não dizerem que estamos a ser invadidos pelos africanos. Isso é uma fantasia, porque 82% dos africanos que emigram, emigram de um país africano para outro país africano. Só 16% se dirigem à Europa. Portanto, sobre a a perceção de que estamos a ser invadidos, os números mostram que é completamente diferente.
Depois, temos zonas onde nem sabemos quantas pessoas morrem. Por exemplo, a atravessar o deserto do Saara ou a atravessar o deserto da Líbia, nem sequer temos contabilidade possível.
Qual é a zona do mundo para onde há o maior fluxo de migrantes?
Neste momento, digo-lhe que é para os países do Golfo Pérsico, para os Emirados, para a Arábia Saudita, para o Qatar. Qual é o país onde, intrarregional, a emigração é mais intensa? É claramente na Ásia do Sudoeste. Filipinas, Tailândia, Indonésia.
Depois, em 2021 houve cerca de 250 mil pessoas que atravessaram o Darien Gap. Na década anterior, 250 mil pessoas atravessaram a selva do Darien Gap. Isto dá lhe uma ideia de como estas coisas podem mudar muito rapidamente. Os números de uma década foram feitos num ano e daí para cá os números têm triplicado sempre, todos os anos.
No seu entender, a pressão sobre a Europa, vai aumentar? A essas pessoas que estão retidas nas fronteiras devia ser dada permissão para entrar? Há capacidade da Europa para receber essas pessoas todas?
Vamos lá ver. Isso da Europa-Fortaleza também não é bem assim. No ano passado, entraram regularmente na Europa sete milhões de pessoas. Não é exatamente grau zero. Só não se pode dar um prémio à irregularidade, digo-lhe claramente.
Sei que isto é impopular, mas para mim é evidente. Porque, se estamos a premiar a irregularidade, nós estamos a enfraquecer o argumento a favor da imigração regular. E é isso que nós queremos. Tem de ser.
Tem de ser dada a alternativa de se legalizarem…
Evidentemente. As pessoas que tentaram entrar irregularmente e que ficaram detidas vão ter que ser retornadas aos países de origem. Essa é a solução.
Agora, cada país decide à sua própria maneira. Há países que decidem regularizações. Fala-se numa regularização em Itália neste momento que pode chegar a 500 mil pessoas.
Historicamente, houve países como a Espanha, quando era primeiro-ministro José Luís Zapatero, que regularizou 400 mil. Nós regularizámos 80 mil ucranianos, como disse há pouco. O Berlusconi, quando foi primeiro-ministro num governo, aliás com a Liga Norte, regularizou 700 mil. É o recordista das regularizações.
Portanto, cada país decide por si próprio o que é que quer fazer. Porquê? Por duas razões fundamentais. Não vou elaborar muito sobre isto, mas são muito importantes.
Primeiro, retornar as pessoas ao país de origem sai caro e muito dispendioso. Em segundo lugar, uma coisa é a decisão de expulsar um imigrante irregular, outra coisa é a expulsão efetiva. E os números são bastante diferentes.
É por isso que os governos, normalmente, não gostam muito de divulgar estes números, porque são sempre fonte de embaraço e que vulnerabilizam a retórica “voz grossa” que muitas vezes faz.
E pagar aos países para reter as pessoas que tentam viajar? Estamos a falar do Norte de África, por exemplo, da Turquia...
A Turquia beneficia de um acordo de financiamento, mas não é pagar à Turquia, é pagar para a sustentação dos refugiados que estão na Turquia. São três milhões e meio de sírios que estão na Turquia. Isso tem como consequência melhorar as condições de receção dessas pessoas que, sem esses seis mil milhões, obviamente, teriam muito maior dificuldade em viver na Turquia durante este período.
Isso está verificado?
Sim, eu várias vezes fui à Turquia e verifiquei que a Turquia não tem, para os refugiados sírios, restrições ao acesso ao mercado de trabalho. Esse é um aspeto importante. Mas não têm liberdade de circulação.
Os refugiados estão confinados a determinadas regiões. Isso não impediu, contudo, que a maioria deles se tenha concentrado na região de Istambul, obviamente já do lado do continente europeu, com um secreta esperança de terem uma oportunidade de virem para a Europa desenvolvida.
Já na Líbia...
A Líbia é um caso de um Estado falhado e, portanto, aquilo que se faz na Líbia, o Alto Comissariado de Refugiados (ACNUR), é prestar o mínimo de assistência humanitária a um sistema que é todo ele um sistema corrupto, perverso, totalmente inaceitável e que não é sustentável.
Portanto, a externalização das fronteiras externas e pagar a outros para controlar as fronteiras externas é algo que tem um preço, em termos de reputação e em termos de violação dos direitos fundamentais, muito pesado.
Voltando a Portugal. Já assumiu publicamente que o fim do SEF foi uma má solução. Continua a ter essa ideia, apesar dos desenvolvimentos que tem havido sobre a transferência de competências, etc.?
Eu não estou em desacordo com a ideia de separar o controlo policial de fronteiras da organização administrativa da imigração. Antes pelo contrário. Acho que é um passo correto e acho que o SEF, nessa parte, sempre teve um prestígio e um reconhecimento, merecido, dos seus homólogos. Agora é manifesta e evidente que, com este efeito de chamada, que não aconteceu isoladamente a questão da separação.
Aconteceu numa altura em que houve um grande fluxo de chegadas. Portanto, isso manifestamente correu mal, porque aquelas imagens das pessoas em tendas porque não conseguiam encontrar alojamento ou as imagens à porta da AIMA agora são mais negativas para os defensores da imigração do que todos os discursos do dr. Ventura.
Então, o problema está na não capacitação da AIMA?
Sim. Eu acho que houve aqui um erro de cálculo. Aquele período de impacto levou dois anos a transitar, durante esse período houve um enorme afluxo e a capacidade de resposta do Estado português não existia.
Por isto, o tempo que passou deveria ter sido usado, precisamente, para capacitar a AIMA e para preparar melhor o processo de transição?
Eu percebo que era preciso um novo sistema informático, formar pessoal e ter pessoal suficiente para tratar disso. Ainda não percebi muito bem como é que vai ser feito, mas há um compromisso do Governo de ter uma task force para se ocupar disso. E mesmo assim, o prazo que está previsto para recuperar o atraso é um ano.
Estamos mesmo a fechar. Está mais perto de ver o PSD contrariar as intenções do Chega ou absorver algumas delas?
Não vou falar do PSD, não vou falar do Chega. Vou só dizer que em alguns países europeus, infelizmente, algumas forças políticas do mainstream, chamemos-lhes assim, pensaram que era preferível adotar a retórica dos extremos.
Não são só, aliás, do PPE. Há sociais-democratas que também fizeram isso. Se vir a política de imigração da Dinamarca, causa arrepios. Devo dizer que, em regra, isso não funciona.
Isto é, se deita fora o menino com a água do banho, se deita fora os princípios com a ideia de que consegue estancar a retórica populista, estão enganados. Alguns casos há onde não é exatamente assim, onde estancaram o progresso da extrema-direita.
A questão é saber se isso é permanente ou se é apenas uma primavera, neste caso um outono, porque as ideias não são boas.
Integrou um Governo que não tinha maioria na Assembleia da República. Hoje em dia é diferente. Ou seja, hoje em dia é mais fácil ser uma maioria relativa ou ser oposição?
Nada na política hoje é mais fácil do que era. Nada, nada. Não vale a pena.
Hoje sorri em relação às dificuldades que se viram na altura?
Há coisas que se repetem num Governo minoritário do engenheiro Guterres de que eu fui ministro da Presidência e ministro da Defesa.
Obviamente que cada iniciativa que tomávamos tínhamos de ter um juízo de prognóstico sobre como é que iriam reagir as oposições, que espécie de maiorias negativas é que se poderiam formar e tentar evitar que elas se formassem.
Isso não é só uma questão de má vontade das oposições. Isso também exige algum pedalar da parte dos governos. E nós pedalávamos muito. Posso garantir-lhe.