Ana Maria Belchior: “A corrupção é um assunto saliente entre o eleitorado”
Quando poderemos ter noção do impacto que a demissão do primeiro-ministro, na sequência da Operação Influencer, terá no grau de confiança dos portugueses nas instituições políticas?
Não é possível determinar com rigor o tempo que medeia entre a divulgação pública de um escândalo, neste caso dos resultado desta operação, e os seus efeitos a nível da confiança dos cidadãos nas instituições envolvidas. Contudo, é expectável que, a haver um efeito na opinião pública, tal já tenha ocorrido. Isto porque sabemos que existe uma relação muito consistente e estreita entre a cobertura noticiosa dos assuntos políticos e a relevância que os mesmos alcançam junto do público. Quanto maior a ênfase noticiosa e a gravidade veiculada na cobertura noticiosa do assunto, maior o reflexo em termos de preocupação desses mesmos assuntos junto do público. E este foi claramente um caso amplamente noticiado e que mancha o Executivo. Temos mesmo já alguns dados que apontam para a respetiva repercussão pública. Sondagens realizadas pelo ICS-ISCTE mostram que, entre junho e final de novembro de 2023, a confiança nas instituições políticas portuguesas se degradou um pouco mais, com uma queda de seis pontos percentuais entre os que dizem confiar no Governo (em novembro, apenas 28% o afirmam). Embora não possamos estabelecer uma relação causa-efeito, é muito plausível que esta quebra da confiança do Governo decorra, pelo menos em parte, da divulgação dos resultados desta operação. Note-se, porém, que o descontentamento com a performance do Governo se começa a sentir a partir de final de 2022, com uma maioria crescente dos portugueses a considerar que este está a fazer um mau trabalho. A Operação Influencer poderá ter contribuído para o acentuar desta tendência. Que, aliás, não é exclusiva do governo.
Portugal corre risco de tornar-se mais um país em que o sistema judicial tem uma influência decisiva na vida política, como no passado sucedeu na Itália ou no Brasil?
Não creio que este episódio nos dê indicações suficientes para qualquer especulação neste sentido. Pode, contudo, afirmar-se que estamos longe dessa realidade. Não obstante os problemas da nossa democracia, que são vários, existe uma clara separação dos poderes políticos no que respeita ao funcionamento dos órgãos de soberania. Aliás, toda a discussão e questionamento que se levantou em torno da ação das instituições no âmbito da Operação Influencer revelam, na minha opinião, essa maturidade democrática. Mostra que eventuais ingerências entre poderes não são consideradas normais nem aceitáveis.
Uma eventual confirmação de indícios de atividade criminosa por parte de António Costa, após José Sócrates ter ficado enredado no processo do Marquês, seria uma machadada na confiança dos eleitores?
Naturalmente que sim. Caso se venha a confirmar, trata-se de algo muito grave, com sérias repercussões políticas, entre as quais o acentuar da quebra de confiança dos eleitores no Governo e nos partidos políticos. Já de si, bastante baixa - respetivamente, 28% e 17%, em novembro.
Quem terá ganhos mais imediatos com ocorrências como a descoberta de mais de 75 mil euros em dinheiro vivo no escritório de Vítor Escária, chefe de gabinete do primeiro-ministro?
A ilação mais imediata sobre quem beneficia da suspeita de corrupção ou tráfico de influências junto de atores próximos do primeiro-ministro é a oposição, de modo lato. Contudo, os partidos que mais poderão capitalizar são os que fazem dos crimes de corrupção e afins uma bandeira, como é o caso do Chega. Este contempla o “substancial agravamento das penas para os crimes de corrupção” nos seus programas eleitorais, e tem colocado no centro do seu discurso político o problema da corrupção da elite política. A este respeito, por um lado, sabemos que os partidos populistas de extrema-direita, como o Chega, se alimentam em grande medida de escândalos políticos, como os associados a crimes de corrupção; por outro lado, sabemos também que a corrupção é um assunto saliente entre o eleitorado português, o que tem levado o Chega a dedicar-lhe um nível de atenção desproporcionada. Trabalhos académicos recentes (de Mariana Mendes e James Dennison, publicados em 2020 e 2022, nas revistas West European Politics e South European Society and Politics, respetivamente) relacionam estes factos com o sucesso eleitoral deste partido. A aceitar que assim seja, é de esperar que o Chega esteja entre os que mais capitalizam com a divulgação deste caso.
Desde 2015, quando escreveu Confiança nas Instituições Políticas, o sistema partidário sofreu grandes transformações, nomeadamente com o surgimento do Chega, da Iniciativa Liberal e do Livre, enquanto partidos fundadores da democracia portuguesa, como o CDS e o PCP, enfrentam dificuldades. Até que ponto essas transformações estão relacionadas entre si?
Em regra, o surgimento de novos partidos no sistema partidário afeta os demais partidos, não só em termos das respetivas bases eleitorais, como de eventuais redirecionamentos das orientações programáticas. Embora se trate de eleições muito personalizadas, numa análise de transferência de votos nas eleições presidenciais de 2021, observou-se que André Ventura conseguiu captar votos à esquerda e à direita, embora sobretudo à direita. Da mesma forma, Tiago Mayan Gonçalves mobilizou nestas eleições algum eleitorado do PSD. Este exemplo serve para mostrar que estas dinâmicas de transferência de votos são expectáveis, e que ocorrerão em maior ou menor medida, fruto da mudança do padrão de concorrência eleitoral. Os pequenos partidos tradicionais, como o PCP ou o CDS, poderão ser mais penalizados em termos eleitorais (por comparação ao PS ou ao PSD), dada a sua menor dimensão e a maior proximidade destes aos novos partidos no plano da competição eleitoral.
Um dos indicadores associados à falta de confiança dos eleitores é terem a noção de que os partidos são todos iguais. Os partidos que estão a conquistar eleitorado fazem-no por conseguirem ser vistos como “marcas diferenciadas”?
De modo geral, novos partidos apenas vingam do ponto de vista da representação parlamentar se forem percecionados pelos eleitores como oferecendo um pacote alternativo de políticas ou como sendo atores partidários distintos. Isto é, o seu sucesso é devedor dessa mesma diferenciação, pelo menos aparente, aos olhos dos eleitores.
Qual é o motivo para não ter surgido em Portugal uma força populista de esquerda, como o Movimento Cinco Estrelas, rivalizando com o populismo de direita?
Contrariamente ao que sucedia à direita, em termos programáticos esse espaço não está disponível à esquerda. Temas como o ambiente, a democracia direta ou as ditas questões morais libertárias, como o casamento homossexual ou o aborto, estão já assimiladas pelos partidos políticos à esquerda. Dos estudos até agora realizados, o Bloco de Esquerda e o PCP emergem como partidos com alguns laivos de discurso populista, patente na crítica recorrente à classe política e à elite económica e financeira.
Sendo a democracia a pior forma de governo à exceção de todas as outras, é preferível ter uma democracia com grande peso de partidos populistas e/ou extremistas ou tentar a sua ilegalização, como já foi requerido ao Tribunal Constitucional?
O problema dos partidos populistas de extrema-direita é o facto de defenderem políticas e princípios iliberais (o problema não se coloca com o populismo de esquerda). Estes partidos não são em si antidemocráticos, pois, de modo geral, aceitam jogar de acordo com as regras do jogo democrático, e não diabolizam a democracia. Contudo, as ideias que advogam podem favorecer a polarização e a iliberalização dos eleitorados. Um sistema político em que estes partidos tenham grande peso corre risco de violar as normas de funcionamento das instituições democráticas, como aliás temos exemplos recentes, com o caso de Trump nos Estados Unidos e de Bolsonaro no Brasil. A ilegalização, por si só, não parece ser a solução, pois estes partidos respondem a preferências e interesses políticos de uma faixa do eleitorado. Fazer desaparecer os partidos não erradica o problema. A resposta a este desafio é mais complexa, envolvendo, no meu entender, o repensar da atuação dos partidos e lideranças tradicionais.
O registo de proximidade extrema entre Marcelo Rebelo de Sousa e os portugueses é necessariamente positivo para reforçar laços ou, pelo contrário, pode constituir um dessacralização excessiva da Presidência da República?
Foi uma forma de envergar o papel de Presidente, com consequências mais positivas que negativas. A grande proximidade aos cidadãos poderá ter contribuído para uma certa reconciliação dos portugueses com a política. A avaliação dos portugueses em relação ao Presidente Marcelo Rebelo de Sousa foi em quase todo o período dos dois mandatos bastante positiva, na ordem ou acima de 55%, tendo mesmo alcançado os 70% após a emergência da pandemia. Em contexto de grande insatisfação e desconfiança dos portugueses em relação à política e aos políticos, estes dados são algo salutar.