Enzo Traverso: “Portugal tem a sua própria extrema-direita, como noutros países europeus. (...) É um movimento com características nacionalistas, xenófobas, racistas, autoritárias, antidemocráticas.&a
Enzo Traverso: “Portugal tem a sua própria extrema-direita, como noutros países europeus. (...) É um movimento com características nacionalistas, xenófobas, racistas, autoritárias, antidemocráticas.&aPedro Rocha / Global Imagens

“A esquerda deve criar um novo horizonte de expectativas. Uma utopia para o século XXI”

Historiador, que leciona na Universidade de Cornell, nos EUA, esteve em Lisboa para o congresso 50 Anos do 25 de Abril, organizado pela comissão organizativa das comemorações do cinquentenário. Ao DN, abordou a sua perspetiva do 25 de Abril, falou sobre as Europeias e deixou dicas de como olhar para o futuro.
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Celebrámos há pouco tempo os 50 anos da Revolução dos Cravos. O Enzo é italiano, mas leciona nos Estados Unidos. Enquanto historiador e europeu, como olha para este episódio? Já estava envolvido na política?
Sim. Era muito jovem, mas já politizado, tal como jovens da minha geração. E o meu pai tinha sido o autarca da sua cidade, eleito pelo Partido Comunista. Nessa altura, era uma força política muito forte em Itália. Por lá, o impacto do 25 de Abril foi enorme e diria que em toda a Europa também. Então, durante uns anos, vivemos a acompanhar os acontecimentos em Portugal. Como disse na minha intervenção, Lisboa transformou-se no coração da esquerda europeia naquela altura. Isto é importante porque, acho, há uma certa discrepância entre a nossa memória, a memória de muitas pessoas que acompanharam os acontecimentos da Revolução, nessa altura - já para não falar dos seus atores -, e uma certa perceção retrospetiva da Revolução e do ponto de partida da modernização e da democratização de Portugal. Isto é um truísmo, claro. Mas, ao mesmo tempo, acho que é bastante problemático projetar no passado a imagem do Portugal contemporâneo. O 25 de Abril teve esse impacto: a modernização e a democratização do país. A Revolução Portuguesa foi vivida como uma revolução socialista e pertence a essa sequência histórica das revoluções socialistas do século XX.

Recentemente, foi lançado - sobretudo pelo nosso Presidente - um debate sobre eventuais reparações às colónias, seja através de apoio financeiro ou protocolos de cooperação. Qual a sua opinião sobre estes meios e mecanismos? São algo que se deve ter em conta?
Confesso que não tenho seguido a atualidade política portuguesa após as eleições e a mudança de Governo. Mas, enquanto historiador, acho que o 25 de Abril foi, também, um desafio. Um desafio real entre as expectativas muito altas da esquerda europeia, do socialismo de então, e a revolução colonial. Foi um ponto de viragem entre o socialismo na Europa e o colonialismo em África. E, deste ponto de vista, foi uma espécie de desafio de uma certa ideia global de socialismo que dominou os Anos 1970.

Ainda que tenha sido uma descolonização algo tardia...
Exato. Não há dúvida nenhuma de que as colónias portuguesas foram as últimas a serem libertadas. No entanto, este diálogo entre a revolução colonial e a revolução europeia foi muito poderoso, muito forte. Isso parece-me ser, claramente, uma das características da Revolução portuguesa. E também explica o porquê de ter sido um golpe de Estado pacífico, de certa forma. Num certo sentido, a violência tinha sido exportada para África e isso foi um dos rastilhos para se fazer a revolução. A Guerra Colonial durou 13 anos [começou em 1961 e terminou em 1974]. Então, com isso, não se produziu uma Guerra Civil ou não se atravessou esse processo.

Permita-me agora olhar para a atualidade. Em junho teremos eleições europeias. Enquanto historiador, e olhando para o passado e para períodos como o que agora vivemos, considera que estamos num ponto de viragem na política europeia?
Falámos do colonialismo português como sendo o último na Europa. Seguindo esta lógica, Portugal foi agora o último a terminar uma exceção: a de ser um país sem uma direita poderosa. Isso terminou e, infelizmente, a meu ver, Portugal tem agora a sua própria extrema-direita, como noutros países europeus. Defino-a como uma direita pós-fascista. Não é, exatamente, um movimento neofascista, mas sim uma espécie de repercussão. É um movimento com características nacionalistas, xenófobas, racistas, autoritárias, antidemocráticas e neoliberais. E o Chega surge depois do aparecimento da Frente Nacional francesa, da AfD alemã, dos Fratelli, em Itália, e de Viktor Orbán, na Hungria. Há até uma tendência global, que vai para lá das fronteiras europeias, com os casos de Donald Trump, nos EUA, e de Jair Bolsonaro, no Brasil. É uma tendência global, que me parece representar um desafio para a esquerda.

Como pode, então, a esquerda reinventar-se em tempos como os nossos?
Esse é o grande problema para a esquerda. Em Portugal e a uma escala global. A esquerda deve criar um novo horizonte de expectativas. Uma utopia para o século XXI, se quisermos. Se não se conseguir fazer isso, muitos movimentos de extrema-direita vão desenvolver-se, infelizmente. Vivemos numa era sem utopias e isso é um grande desafio. Esta falta de uma utopia contempla aquilo a que muitos académicos e historiadores definem como o nosso regime de historicidade. O século XXI está a ser vivido no presente, sem ter capacidade de se projetar para o futuro. Quando se pensa em futuro, pensa-se em catástrofes ecológicas, ou como um perpetuar do capitalismo e da nossa ordem económica e política atual. A esquerda deve conseguir quebrar esta jaula de ferro do presente. Deve ser capaz de inventar uma nova perspetiva para o futuro. Mas isto não é fácil e é algo que nos distingue dos séculos anteriores. No século XIX, havia a ideia do progresso. O século XX foi o século em que apareceu o socialismo como alternativa ao capitalismo. E o século XXI iniciou-se ao normalizar e naturalizá-lo. O capitalismo é uma espécie de ordem ontológica para os humanos. Temos de mostrar que há uma alternativa. Mas, até agora, a esquerda não foi capaz de esboçar as características dessa possível nova ordem. E isso é um problema grave. Mas é também um problema para a direita, porque quando as utopias terminarem a direita também diminuirá. Olhando para a História, no século XX via-se que o fascismo tinha as suas próprias utopias: o Reich de mil anos, o mito do Novo Homem ou a grandeza de um novo Império Romano criada por Mussolini e pelo fascismo italiano. O salazarismo foi um pouco diferente, porque era muito mais conservador nesse aspeto. Existe um grande debate entre académicos, porque muitos não aceitam retratá-lo como uma forma de fascismo, mas sim como um regime político autoritário.

E qual é a sua visão sobre o assunto?
Acho que há diferenças entre o salazarismo e outras formas de fascismo europeu, em particular os dois grandes paradigmas: o fascismo italiano e a ideologia nacional-socialista da Alemanha. Essas diferenças são óbvias. Em Portugal, nunca houve nada semelhante a um movimento fascista em massa, como em Itália ou na Alemanha. Não obstante, o salazarismo pertence ao campo magnético dos fascismos europeus, que já de si é uma constelação bastante heterogénea. Nessa constelação, encontram-se várias ditaduras, ditaduras militares, ideologias, regimes políticos bastante diferentes uns dos outros. Portugal era uma ditadura que pertencia a esta tendência, apesar, claro, das suas especificidades. Deste ponto de vista, a ideia do 25 de Abril como o fim do fascismo europeu está correta. Não se tratou de um mal-entendido.

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