Costa entre a "propaganda" à bazuca e o dever de "neutralidade" exigido pela CNE
A Comissão Nacional de Eleições (CNE) já deu um puxão de orelhas a António Costa e lembrou-lhe o "dever de neutralidade" que lhe assiste como primeiro-ministro, que vai gerir uma "bazuca" de 7 mil milhões de euros de dinheiros europeus destinados a recuperar a economia e a sociedade. Isto porque Costa, também secretário-geral do PS, tem acenado do Plano de Recuperação e Resiliência, que será financiado por essas verbas, nas suas incursões na campanha eleitoral autárquica socialista. A oposição tem clamado, como é óbvio, contra a "propaganda" a que os autarcas do PS também têm deitado a mão.
Mas com um PRR tão volumoso no arsenal político, seria expectável que o líder do Governo o colocasse temporariamente na gaveta quando veste o fato de secretário-geral socialista?
João Villalobos recorda que quer o PSD quer o PS tiveram historicamente, nos respetivos governos, apoios da União Europeia em momentos decisivos que coincidiram com as suas campanhas eleitorais, e que deles fizeram uso como argumento de campanha. "Basta recordar Cavaco Silva, António Guterres e José Sócrates", frisa o consultor de comunicação.
Mas admite que há, neste momento, uma diferença substantiva - e volta ao exemplo da era cavaquista. Nessa altura, vivia-se o ciclo do da transformação de Portugal para que pudéssemos acompanhar o desenvolvimento dos outros países. Agora, diz, "estamos completamente dentro da UE e a "bazuca" é como se fosse uma conta aberta para que o governo resolva os os problemas que foram criados pela pandemia".
Ainda assim, perante as recorrentes investidas de António Costa no terreno do PRR em solo de eleições autárquicas, João Villalobos considera que "seria sonso dizer que nas mesmas circunstâncias alguém faria diferente". Isto porque "faz parte da lógica da comunicação política capitalizar aquilo que são as circunstâncias e as oportunidades dadas para obter bons resultados eleitorais".
O consultor de comunicação excluiu as lógicas ideológicas da sua análise e diz que é preciso "lucidez" para entender que "o processo europeu deu muito jeito a António Costa, e ele soube aproveitá-lo".
Quanto às queixas da oposição sobre a "propaganda PRR", João Villalobos considera que fazem bem os partidos quando saltam dessa retórica para a exigência de saber como se garante a aplicação equitativa e correta dos fundos pelo país e pelos projetos, no controlo da transparência do dinheiro.
"O Governo já ia fazer um pão-de-ló com o seu plano de crescimento e com o PRR vai fazer a cobertura e até o pode transformar em bolo de casamento. Para onde as fatias irão ser distribuídas, essa é que é a questão", assegura o consultor de comunicação. E é nesse ponto que a oposição se deveria concentrar.
É neste aspecto que censura mais o facto de os candidatos do PS terem usado o argumento das boas relações com o governo para ter mais investimento como arma política: "Dizer que vão ter mais fatias do bolo de verbas que são para todo o país não é legítimo. Assim sim, estamos no campo do eleitoralismo". Uma argumentação que, considera, "deve até chatear o Governo, no sentido que dá a ideia de conivência e de aparelhismo".
Ora foi precisamente nas questão do controlo e transparência na aplicação dos fundos do PRR que o Paulo Rangel insistiu no debate do Estado da União, quando interpelou a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen. O eurodeputado do PSD e vice-presidente do PPE não deixou, no entanto, de alertar para o uso abusivo por parte do governo português do argumentário da 'bazuca' durante a campanha eleitoral autárquica.
"O Plano de Recuperação é para relançar a economia e as empresas e para dar oportunidades aos jovens. Não é para pagar as despesas do orçamento, como em parte está a acontecer em alguns países, incluindo no meu. E não é para ser usado como arma de campanha eleitoral, como está a fazer agora todos os dias o primeiro-ministro português", disse em Estrasburgo na passada quarta-feira e reiterou ao DN.
Rui Calafate, também consultor de comunicação, converge na ideia de que nenhum primeiro-ministro num ato eleitoral despiu essa farda para fazer campanha apenas como líder do respetivo partido. "Todos fizeram campanha em todos os atos eleitorais, sejam autárquicas, europeias ou legislativas", frisa.
Mas sublinha que é importante reter que a "bazuca" é o dinheiro para Portugal e não é do PS, partido que está "circunstancialmente" no poder: "Era importante saber se os primeiros ministros europeus estão a usar em alguma campanha eleitoral as questões da "bazuca", nomeadamente na Alemanha, onde há eleições também a 26 de setembro".
Para Rui Calafate, quando estão em causa dinheiros públicos, a comunicação deve ser cautelosa e deve mesmo haver, como recomendou a CNE a António Costa, "o dever da neutralidade".
"Compreende-se, no entanto, que um primeiro-ministro use o melhor que tem para a campanha e os milhares de milhões que vão entrar em Portugal são uma mais-valia para as obras que irão acontecer no mandato deste primeiro-ministro e do PS". E também é natural que a oposição use como arma de arremesso a utilização do argumento da "bazuca" por parte do Governo. "É tão jogo político do primeiro-ministro, como da oposição", diz.
Mas qual a eficácia da utilização deste argumento dos milhões por parte de António Costa? "Mais importante que a bazuca é o facto de o PSD estar fraco", considera o consultor de comunicação. "Devia haver neutralidade do primeiro-ministro, mas tanto fazia António Costa falar de granadas, artilharia ou de helicópteros. O que quer que seja, que o que pesa é o facto de Rui Rio contar muito pouco nestas eleições e quem está com problemas de afirmação é o líder do PSD", diz Rui Calafate.
O consultor de comunicação afirma ser normal que as eleições autárquicas sejam um cartão amarelo ao Governo e este já tem seis anos de ação política. "Não conheço ninguém que esteja a augurar que haja esse enorme cartão amarelo ao governo, mas sim um cartão vermelho à oposição".
Ontem, depois da advertência da ERC, António Costa voltou ao PRR, mas na pele de primeiro-ministro e numa iniciativas de apresentação dos projetos para a transição digital no Estado. Fê-lo com elogios aos funcionários públicos e ao seu papel durante a pandemia, bem como autoelogios às medidas do Governo. "Sim, tudo isto provou que precisamos de um Estado forte, mas que tem de ser ágil, eficiente. O Estado tem de se libertar da burocracia. O PRR tem um papel fundamental, porque permite fazer mais e de forma mais eficiente".
A oposição toda, em particular o PSD, carregou na tinta das críticas ao Governo. Rui Rio considerou ontem que a CNE já "deu razão" ao partido sobre as queixas de falta de neutralidade do Governo na campanha, mas não pretende apresentar uma queixa formal.
O presidente do CDS, Francisco Rodrigues dos Santos, espera que a posição da Comissão Nacional de Eleições seja "suficiente para parar" com o que considerou serem "condutas indecentes".
A coordenadora bloquista, Catarina Martins, considerou que a CNE está a fazer bem o seu papel na advertência sobre promessas eleitorais porque existe "sempre uma enorme tentação de instrumentalizar uma ação governativa" para ganhos partidários.
O Presidente da República interpelado sobre o assunto pelos jornalistas recusou-se a comentar. "Não posso opinar sobre a campanha eleitoral. Tudo o que dissesse seria estar a intervir e não posso nem devo".
No programa Em Nome da Lei, da Renascença, o porta-voz da Comissão Nacional de Eleições, João Machado, admitiu que as inaugurações e promessas que o primeiro-ministro anda a fazer pelo país podem pôr em causa os deveres de imparcialidade e isenção, mas a CNE "apenas age quando recebe queixas, porque não tem meios para investigar autonomamente".
João Machado revelou, no entanto, que "até agora, a CNE não recebeu qualquer participação". Pelo contrário, as queixas contra órgãos do poder autárquico já vão em 553, para um total de 730 participações.
Este responsável admitiu ainda que "a CNE apenas age quando recebe queixas, porque não tem meios para investigar autonomamente".
Durante a semana, António Costa tentou afastar as críticas com a ideia de que os fundos de Bruxelas vão chegar a todos.
"É preciso que não se irritem, porque o PRR não é o plano do PS, nem do PAN. É mesmo um plano do país, disponível para todos os portugueses, empresas e municípios. Todos podem utilizar estes recursos", disse. E, para as empresas, Costa voltou a garantir que os fundos existem: "É fundamental que não deem ouvidos aos que dizem que o PRR é só para o Estado gastar consigo próprio, porque desperdiçam a oportunidade que têm para utilizar os fundos exclusivos para as empresas".