Dois dias na vida de António José Seguro. "Falta coragem na política para travar a cultura da desconfiança"
Gerardo Santos

Dois dias na vida de António José Seguro. "Falta coragem na política para travar a cultura da desconfiança"

Seguro diz estar "num processo de reflexão", mas "ninguém" acredita que não seja candidato a Presidente. Ao longo de dois dias, o DN acompanhou o que é parte do dia-a-dia do ex-líder do PS.
Publicado a
Atualizado a

O dia de quarta-feira há de revelar nostalgias; algum desconforto com as câmaras de televisão: a preocupação com a “cultura política de trincheiras”; o jornal sem “necrologias, nem casamentos e batizados” que criou em Penamacor - tinha então 16 anos; o fascínio juvenil com González que descobriu pela televisão espanhola que a portuguesa mal se via; a Joana “mulher de força” e o “ourives” da terra; o “orgulho” da vinha, “tinha que ter Rufete”, em “homenagem” ao pai; o “futebolista” que de guarda-redes passou a “camisola 11” apesar de “algumas dificuldades em driblar” e que se cruzou com Rui Barros; o “tipo normal e aluno médio, tranquilo, fortíssimo nas convicções, muito responsável, perfeccionista” que no dia anterior, em Lisboa, no ISCSP, se revelou, ao falar aos alunos dos “territórios” - que “a organização do Estado condiciona com sobreposições de poder” -, um Seguro “diferente e mais solto” do que aquele que na televisão se vê “obrigado” a uma “pose” que “não é consciente”, mas que é “quase inevitável”.

Quem o conhece bem não hesita em dizer que “ele pessoalmente é diferente” do António José Seguro que diante de microfones e câmaras “se retrai” ficando “preso” e “preocupado” com a “ponderação”.

“Não é consciente, não é consciente da minha parte”, confessa o candidato em “reflexão”. Lita, a professora reformada que horas depois encontraria em Penamacor, frente à mercearia, que o viu “nascer à porta” de casa - “a avó dele era amiga da minha avó e já a mãe dele era amiga da minha mãe” -, não estranha que Seguro, o “Tozé”, continue “a ser o que era e sempre foi”.

“Muito responsável e pessoa séria. Ai, isso lhe garanto, não duvide. Sempre foi assim”. A frase é dita quase ao mesmo tempo em que Luís, irmão de António José Seguro que acabou de chegar, insiste para que vejamos “num instante” a casa onde o Tozé nasceu, que “é já ali a 50 metros”.

“Já estás as desviar as coisas, não pode ser”, diz Seguro. Lita, invocando a sabedoria dos anos de “vizinhança”, de sorriso rasgado, resume tudo numa frase: “Ele já tem tudo programado. Sempre foi assim”.

“Temos que ir para cima... às casas, tenho lá o senhor Manél à espera”, explica Seguro enquanto o irmão Luís o desafia a ir “aos do mercado, que ficavam todos contentes se fosses lá”. “Tenho o senhor Manél à espera”, repete Seguro.

O encontro, horas antes da passagem pela “lojinha”, como lhe chama, em Penamacor onde foi descarregar azeite, estava marcado para Castelo Branco, por volta das 10:15, no restaurante onde Seguro ia deixar as caixas de vinho para o jantar com “amigos”, “autarcas” e até, perceberíamos mais tarde, “amigos que são do PSD” e que fizeram questão de o sublinhar.

Gerardo Santos

Voltemos ao dia anterior, terça-feira, no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP), em Lisboa.

António José Seguro vai dar aulas dali a cerca de 45 minutos. As mesas do gabinete 16 estão arrumadas, sem “amontoados de papelada”. Está “quase tudo” em computador. Da mochila preta, que traz consigo, retira um caderno com anotações. O professor universitário com “dez anos de treino” confessa a “falta” de “treino na comunicação” e que estar, agora, na televisão é “muito diferente do espaço reservado da sala de aulas onde há outra liberdade”.

“Não no conteúdo”, esclarece, “mas na forma”. Um cuidado “maior” que pode, admite, “retirar alguma eficácia na comunicação”. E “já” muitas vezes sentiu que “podia ter dito de maneira diferente” É, diz, maior a “preocupação da substância” do que a “preocupação com a imagem”.

António José Seguro diz que regressou “ao espaço público” por ser “determinante afirmar uma atitude de moderação”, que os “extremismos” estão a “acantonar”.

“Sou muito afirmativo nas minhas convicções, mas a minha atitude não é um posicionamento ideológico. A moderação é para mim muito importante porque vivemos hoje numa cultura de trincheiras. A democracia não são trincheiras políticas, são diálogos. Não se pode governar uma parte contra a outra parte. Senti essa necessidade da intervenção pública porque isto está a deslaçar, está-se a perder qualidade democrática, as instituições estão a ser fragilizadas”.

A explicação é dita com ar sério. As palavras são ditas pausadamente. O tom só muda quando fala do “que vem fora do sistema” e dessas “soluções” que não “são para o melhorar”, mas para “destruir”.

“A certa altura, as alternativas podem ser vistas como rotativismo, que não dá resposta a uma série de problemas. Então aí, há uma parte das pessoas que vão buscar o quê? Soluções fora do sistema. Quando as soluções vêm de fora do sistema não é para o melhorar, mas sim para o destruir. E, portanto, o meu papel não é ficar sentado no sofá: é agir. E foi o que fiz”, explica António José Seguro.

Porém, há “algo” que se sobrepôs. É “mais interpelado” sobre a “candidatura” e só depois “falam comigo sobre aquilo que disse ou devia falar sobre determinado assunto”.

E é candidato? “Estou num processo de reflexão”. A frase breve e nem sempre afirmativa, há alturas em que vem acompanhada de um sorriso, há de ser repetida no dia seguinte.

De repente há um toque de campainha antiga de porta, um repetido ding-dong metálico. É um aviso no telemóvel de Seguro. Está na hora de ir para as aulas.

E afinal que caderno é esse?, pergunto. “É fundamentalmente só coisas para o programa”. Anotações? “… onde não procuro um ponto de vista só para ver se posso fazer diferente, apesar de haver hoje em dia tantas pessoas a analisar, a falar, a opinar”, resume.

Na sala, a maioria dos alunos são mulheres. Todos estão de telemóvel e de computador portátil. O professor António José Seguro fala das várias camadas de poder, das sobreposições políticas e jurídicas, dos “territórios” que assim, desta forma, “a organização do Estado condiciona” desde as juntas de freguesia às CCDR e de “outras” que “se misturam” numa “conflitualidade”.

Os gráficos que vai mostrando esclarecem as muitas e “complexas” sobreposições. Enquanto fala vai andando de um lado para o outro, questiona, interpela, leva os alunos a participar, a “discutir a partir dos conteúdos”.

“Criar”, explica, “uma proximidade” que permite “discutir o que se passa na vida, o que se passa na realidade, incentivar a capacidade de análise”.

Terminada a aula, marcamos o encontro no dia seguinte. Um desacerto nosso, de meia-hora, levar-nos-ia a Escalos de Cima, freguesia acima de Castelo Branco e a meio caminho de Penamacor. António José Seguro antes das 11:00 já lá estava. Percebo que já teria chegado há pelo menos 10 minutos. “O vosso carro estacionado ali [um pequeno largo de estacionamento junto a um pequeno jardim] fica bem. Aqui não há problemas”, indica.

Seguimos viagem juntos. O primeiro destino é a mercearia, ou a “lojinha” como diz, de que é proprietário em Penamacor e onde vai deixar azeite.

Gerardo Santos

António José Seguro conhece bem estas estradas. Há zonas sinuosas e estreitas, mas “sempre foi assim”. E sugere conhecer, pelo que diz, os problemas da sua “Beira Baixa” desde os tempos em que em Penamacor “não havia água no Verão”.

Terras tão próximas de Espanha “sofrem” com os “impostos e o preço da energia”. E o exemplo mais simples é o da botija de gás que “nesta zona custa para aí 36, 37 euros” quando do outro lado da fronteira “custa menos 20 euros”.

Está de olhos na estrada, mas há um endurecer na expressão. O mesmo no tom de voz.

“Esta gente já é penalizada porque não tem gás natural e sofrem ainda a penalização de pagarem as bilhas de gás quase ao dobro de Espanha. E no caso de Penamacor, veja que a fronteira está ali a cerca de 15 quilómetros”.

António José Seguro nasceu em Penamacor e depois do secundário, em Castelo Branco, foi para Lisboa. Nos “primeiros tempos” vinha a casa de “15 em 15 dias” de autocarro e demorava “para aí umas cinco horas”. E nessa altura o “meu pais ia-me buscar” a Castelo Branco, mas quando “era miúdo” a viagem era de “seis ou sete horas” dependia se apanhavam ou não os camiões da madeira “ali nas estradas de Vila Velha de Rodão”.

A “estranheza”, confessa, foi a de se “sentir estrangeiro em Lisboa”. Um “processo” que passou de “ficar a estudar no quarto” que os pais alugaram para a “integração” de fazer “amigos” e na Juventude Socialista - que tinha começado em Penamacor.

António José Seguro que entrou na “política por via do associativismo”, porque “em Penamacor não havia nada”, entusiasma-se a contar a história de um jornal - a Verdade de Penamacor - criado por um grupo de adolescentes que “meteu mãos à obra” e que só mais tarde, depois dos avisos do “chefe das Finanças” que “foi falar com o meu pai”, é que perceberam que era necessário “legalizar” porque “começava a haver muita gente incomodada com as notícias do jornal”.

Acabou legalizado, com tipografia e porte pago, elogiado por Luís Fontoura, então secretário de Estado da Comunicação Social, e por António Paulouro, diretor do Jornal do Fundão, mas “começou por ter três ou quatro folhas A4 agrafadas” que eram escritas “naquelas máquinas antigas”. E no dia em que foram tratar “da legalização ou do porte pago, já me lembro bem, estava lá o Paulo Portas a tratar do Independente”.

De início “íamos buscar notícias ao Diário de Notícias, ao Diário de Lisboa ou ao Diário Popular, por exemplo, recortávamos e fazíamos. Evoluiu, passámos a ter notícias nossas, irreverentes. O que não havia era nem necrologia, nem casamentos nem batizados, o que criava uma irritação e um problema às pessoas que também queriam saber disso”, diz com um sorriso largo.

António José Seguro, que teve que ter carteira profissional de “equiparado a jornalista” e que até foi chefe de redação, explica detalhadamente “a intervenção cívica, a intervenção cultural” e o “problema” dos que “como havia o jornal da Igreja, tinham que assinar os dois jornais porque gostavam da maneira como nós tratávamos as notícias”.

A viagem até Penamacor está a meio - são quase 30 minutos pela N233 - e Seguro recorda que “a televisão espanhola chegava com maior a nitidez” à sua terra do que a RTP e que foi assim que “viu” e “ficou muito impressionado com Felipe González”.

“E a certa altura”, diz, que “tocado” pela influência do antigo primeiro-ministro espanhol concluiu que a “política era uma forma cívica de intervir mais global e mais efetiva” do que o jornal. A outra “influência” chama-se António Guterres e “tudo porque fui um dia assistir a um comício dele”. E “aliás”, acrescenta, “ele até esteve no congresso distrital da JS, daqui, onde fui eleito líder da Juventude Socialista”.

“A luta aqui em Penamacor, nessa altura, era entre os conservadores e os progressistas. O CDS, por exemplo, tinha aqui um peso enorme, muito. E nós éramos um grupo de jovens com uma irreverência brutal, púnhamos as coisas em causa, queríamos respostas, porque queríamos sobretudo mudança” e “não se esqueça que não havia água no Verão, a luz só vinha por uma hora ou duas, não havia médicos”

“Foi”, diz de rosto sério e de voz colocada, “essa vontade de melhorar as coisas que me levou a inscrever na JS. Daí a inscrição na JS e no PS”. E na JS foi simples: “Cheguei lá e disse que me queria inscrever”, mas antes informou o pai da decisão.

Estamos quase a chegar. António José Seguro aqui ou é “Tozé”, “António José” ou “António”. Mas há quem, como o próprio ao telefone, diga “António Seguro”.

“Tozé, aqui, são pessoas que me tratam com carinho, como quase família, a proximidade. E há os do “Tozé”, não daqui, para diminuir”, diz rindo.

Exemplo? “Eu era secretário de Estado e tinha uma inauguração para fazer. Sabe o que estava na placa? Dr. Tozé Seguro”.

A inscrição de António José Seguro no PS acontece depois da derrota socialista, em dezembro de 1979, frente à recém criada AD. Em outubro do ano seguinte volta a haver eleições legislativas. A Frente Republicana e Socialista (PS, UEDS e ASDI) que juntava Mário Soares, Lopes Cardoso e Sousa Franco contra a AD, liderada por Sá Carneiro, vai a votos e “perdemos”.

A memória é interrompida pela chegada a Penamacor. Do olhar, da voz, e até do encolher de ombros sobressaem nostalgias de um concelho que ainda não tinha perdido, como aconteceu na última década, mais de 16% da população.

“Começo a perceber que se estão a perder pessoas, umas que foram embora, outros morreram. Já não é a Penamacor do início do século. E isso é uma tristeza”, lamenta.

As ruas estão vazias. António José Seguro conduz até à sua mercearia. É ali que Joana, a “mulher de força”, gerente e sócia o aguarda. E onde instantes depois aparecem Lita, a professora reformada que o viu “nascer à porta” de casa, e Luís, o irmão do meio. Tozé é o mais novo dos três, Alberto é o mais velho.

Minutos depois, Seguro que estava com pressa porque tinha que “ir às casas”, guia-nos até às suas quatro casas de Alojamento Local, lugar “onde nasceu Penamacor”, que precisam do trabalho de “ourives” do senhor Manél”, o construtor das Casas da Penha.

Gerardo Santos

O cuidado com os detalhes e a preocupação com a “memória” do que eram aqueles lugares atravessados e construídos pelo granito entusiasmam-no. E dali “vê-se Castelo Branco, vê-se a Serra da Gardunha, vê-se a Estrela” e bem perto está a antiga casa da câmara do séc.XVI - que já foi paiol - integrada “numa estrutura defensiva que abraça o burgo medieval”. Metros adiante o pelourinho.

Aproxima-se a hora de almoço. A vistoria às casas está feita. Já foram decididas as reparações necessárias. Minutos depois um almoço privado com o presidente da câmara que à noite estaria em Castelo Branco no jantar “vínico”, nunca de “campanha”.

Gerardo Santos

Pelo caminho, passamos pela escola Ribeiro Sanches - médico filósofo e historiador nascido em Penamacor que “está na estátua do Marquês de Pombal em Lisboa” - onde estudava “quando se deu o 25 de Abril”, pelo colégio do Padre Batista que “melhorou a vida a muita gente”, pelas memórias do pai que teve um café e um papelaria e pela mãe doméstica, e dos que na sua infância não sabiam o que era uma praia, nem o mar tinham visto.

E finalmente uma confissão: “Sempre fui muito responsável, talvez seja um problema. Um tipo normal e aluno médio, tranquilo, fortíssimo nas convicções, muito responsável, talvez excessivamente responsável, perfeccionista… o pacote completo”. E ri-se. Namoradeiro? “Um tipo normal, portanto, vivi todas as etapas da minha vida”. Volta a rir-se.

O telefone toca. Um autarca, dos vários que vão ao jantar a Castelo Branco, liga a confirmar. A conversa fica a meio.

Depois do almoço seguimos até à vinha e ao olival. António José Seguro revela-se um conhecedor de vinho e do que é preciso fazer para tratar de uma vinha e de um olival com quatro anos. Fala a mesma linguagem dos que estão na poda. Sabe das doenças que parecem afetar as folhas das oliveiras. E do problema da falta de água por aqueles terrenos. É um outro Seguro que até “sabe distinguir” o seu azeite dos outros.

Gerardo Santos

“Conhecer a vida real é importantíssimo”, sintetiza. A “vida real”, acrescenta, é perceber-se que em Portugal “os poderes estão concentrados”, que há uma “crescente desconfiança”, que “temos uma cultura da desconfiança”, que “o que não falta são relatórios a diagnosticar tudo”.

O que falta? “Coragem política para fazer as coisas. E ser persistente e responder pelos resultados. Ter a coragem e não permitir a proliferação de estruturas do Estado que se tornam em mais desorganização pública do que administração pública”. E até, diz, “falta coragem na política para travar a cultura da desconfiança”.

Começa a escurecer e já se sente o frio e a humidade da noite. Seguro veste um casaco. Insisto em exemplos que todos percebam. “Outro exemplo? Há mais casas devolutas do que aquelas que os censos dizem que faltam para habitação. Existem e não se faz nada porquê?”.

Gerardo Santos

Volto à questão inicial. O que falta para além da coragem política que diz constatar?

“A incapacidade de as pessoas se sentarem à mesa, coincidirem no essencial, de assumirem um compromisso”, responde.

A caminho do jantar que diz ser “vínico” e não de apoiantes, António José Seguro soma outro acrescento à reflexão: “Temos um país que faz leis e depois ou não as regulamenta ou não verifica se estão a produzir efeitos. Fazer leis por si só não resolve problemas. É preciso dentro do prioritário decidir o que é mais prioritário… e depois fazer e avaliar”.

Gerardo Santos

O PS dos presidentes de câmara socialistas faz-se notar no jantar. Há amigos de longa data, do partido, dos tempos da JS , “da tropa” e “amigos do PSD” que fizeram questão em estar no encontro “reservado”.

“Sério” é a palavra que sai quando peço que o definam. E vai ser candidato? Ninguém duvida. “Não tem como não ser candidato. Ninguém aceitaria que lhe faltasse a coragem”.

Dois dias na vida de António José Seguro. "Falta coragem na política para travar a cultura da desconfiança"
Seguro sugere a Marcelo que chame Montenegro a Belém
Dois dias na vida de António José Seguro. "Falta coragem na política para travar a cultura da desconfiança"
António José Seguro defende perfil presidencial "com uma dimensão ética à prova de bala"

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt