Na Bela Vista, em Setúbal, um conjunto de três bairros sociais onde vivem cerca de 5000 pessoas, o Chega foi o partido mais votado.
Na Bela Vista, em Setúbal, um conjunto de três bairros sociais onde vivem cerca de 5000 pessoas, o Chega foi o partido mais votado. Leonardo Negrão

Análise. E se forem as conquistas da esquerda a levá-la ao chão?

Após ser, ainda há sete anos, apontado como exceção europeia na subida da extrema-direita, Portugal queimou etapas e é já um dos exemplos mais fortes da tendência. Que caminho foi este que levou ao romper do ‘dique’ e à descida abrupta da esquerda? 
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“Ainda não há dados”. Todos os politólogos com quem o DN fala repetem o mesmo. Querem dizer que tudo o que possam aventar sobre o que ocorreu neste domingo em que a esquerda perdeu 22 deputados, permitindo à direita toda (AD mais Chega mais Iniciativa Liberal), com 156 lugares — para já, antes dos círculos da emigração —, superar dois terços do parlamento, se baseia em análises mais intuitivas que factuais. 

Uma intuição escorada na factualidade observada noutros países e naquilo que se sabe de anteriores eleições nacionais, nas quais a extrema-direita foi buscar votos sobretudo à abstenção. Um cenário que se parece ter alterado agora, já que a abstenção subiu em relação a 2024 mas o Chega continuou crescer.  

É com esse prévio enquadramento da ausência de dados que Marina Costa Lobo, investigadora coordenadora no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, aceita partilhar “algumas reflexões” com o DN: “As mudanças na geografia do voto, com Setúbal, Beja, Algarve com o Chega em primeiro lugar, sugerem que em 2025 se quebrou o dique que impedia estes votantes de esquerda de migrarem para o Chega”. 

Esta sugestão é confirmada pelas reportagens efetuadas no terreno, como aquela que o DN publicou esta terça-feira, na qual eleitores que votaram BE, CDU e PS nas eleições anteriores, e que votam à esquerda nas autárquicas, assumiram ter desta vez escolhido o partido de André Ventura.

A politóloga enquadra o ocorrido: “Em 2022 e 2024 [as duas legislativas anteriores, ambas seguindo-se à dissolução do parlamento por decisão do Presidente da República], o Chega cresceu sobretudo à custa da abstenção e do PSD. Em 2025 terá crescido em parte substancial devido à queda do PS e da esquerda.” O que, considera, “reflete um processo que tem ocorrido no mundo ocidental, onde aqueles com menos rendimentos e escolaridade têm passado a votar à direita, mobilizados pelo tema da imigração, do fechamento das fronteiras, da recusa da globalização.”

Será por exemplo o caso alemão, com a Alternativa para a Alemanha (AfD) a conseguir 20,8% nas eleições federais de 23 de fevereiro, duplicando o resultado de 2021, suplantando o SPD (este congénere do Partido Socialista português perdeu quase 10 pontos percentuais, de 25,7% para 16,4%, das últimas eleições para estas) e ficando a menos de oito pontos da vencedora CDU (União Democrata Cristã).

É uma mudança que tem estado a ocorrer em todas as democracias avançadas, nota Marina Costa Lobo (atente-se a esta expressão, “democracias avançadas” — voltaremos a ela). A questão é como exatamente se opera essa mudança. Será que os ganhos da extrema-direita se deveram realmente a transferência direta de votos da esquerda?

“A esquerda foi castigada pelo tema da imigração”

Marco Lisi, investigador do Instituto Português de Relações Internacionais da Universidade Nova de Lisboa, assume que é cedo — lá está, “ainda não há dados” — para poder responder à pergunta. “Pode ter ocorrido por etapas, ter havido transferência de votos do PS para a AD e da AD para a direita radical. E pode também ter havido uma desmobilização do voto na esquerda e no PS, porque houve uma quebra de três pontos na participação.” Mas, adverte, “se a esquerda como um todo perdeu muito peso, o PS está em trajetória descendente desde 2022, quando conquistou, em eleições muito atípicas, a segunda maioria absoluta da sua história.”

Uma trajetória descendente na qual conseguiu, ainda assim, um quase "empate" com a AD nas legislativas de 10 de março 2024, e um primeiro lugar nas europeias do mesmo ano (9 de junho), com 32,08%. Que sucedeu, então, neste último ano?

Marina Costa Lobo arrisca várias explicações. “O líder do PS, Pedro Nuno Santos, concordou com umas eleições que os portugueses não queriam, sem ideias novas e ainda na ressaca de oito anos de governação PS, sem governo pronto a assumir funções, sem alternativa para a estabilidade governativa; Montenegro teve a vantagem do incumbente e quis estas eleições, mas o caso Spinumviva provavelmente fez com que a AD não tenha conseguido fazer funcionar o voto útil à direita como aconteceria em condições normais. Ambos, por razões diferentes, favorecerem o crescimento do Chega.” 

"A 'esquerda radical' não soube dar resposta ao tema da imigração e aos temas da família, da identidade nacional. Ao contrário dos partidos de direita, que mostraram ao eleitorado que têm uma solução, que é demarcação e exclusão.”

Marco Lisi, investigador do Instituto Português de Relações Internacionais da Universidade Nova

Por outro lado, argumenta ainda Costa Lobo, “estas eleições focaram a saúde e o crescimento económico, mas os temas da imigração e da corrupção estiveram sempre presentes e de forma muito mais importante do que em 2024 ou 2022. Ora, a esquerda tem grande dificuldade em encontrar-se com os portugueses no tema da imigração e terá sido castigada por isso. A AD conseguiu no ano passado passar a mensagem de que o governo do PS abriu demasiado as portas à imigração. O BE está favorável a um política de portas abertas, e a CDU com o foco nos trabalhadores com vínculo e com cartão de sindicato também não foca contextos de fluidez laboral onde a questão da imigração é mais premente.”

A chamada “questão da imigração”, que surgiu em força na discussão pública em 2024, lançada pelo Chega e rapidamente agarrada pela AD (antes disso o foco nesse assunto era marginal nos media e no discurso político, inclusive — como frisam, num paper de 2024, Pedro Magalhães e Rui Costa Lopes — no do Chega), é também vista por Marco Lisi como fator na perda observada no PS. “Houve a contradição de Pedro Nuno Santos, surgindo a demarcar-se da política do Governo Costa, dizendo que a manifestação de interesse tinha sido mal pensada, como que validando as críticas dos partidos de direita em relação ao legado do PS, e não apresentando soluções, esvaziando assim ainda mais a base eleitoral do partido”. 

Para este cientista social, também a área que refere genericamente como “esquerda radical” “não soube dar resposta ao tema da imigração e aos temas da família, da identidade nacional”. Ao contrário dos partidos de direita, que “mostraram ao eleitorado que têm uma solução, que é demarcação e exclusão.” Lembra, justamente, que a dias das eleições o Governo anunciou a expulsão de milhares de imigrantes, “numa manobra claramente eleitoralista”. 

“O discurso da direita tornou-se hegemónico”

A “esquerda radical”, crê Lisi, “ficou com um eleitorado muito de nicho, porque crescia quando havia crise económica, desemprego. Há gente que na altura da crise votava nesses partidos e agora vota Chega. E os reformados, que eram uma base social importante da esquerda, assim como os funcionários públicos, poderão ter mudado o voto para a direita, por acharem que a AD fez um bom trabalho neste ano, por ter conseguido mais paz social, aumentando os salários. Quanto ao PS, a imagem do líder está, enquanto governante, ligada à habitação e aos transportes e a um fraco desempenho. As pessoas estão insatisfeitas com o desempenho dos serviços públicos e a ideia de se poder repetir uma aliança entre o PS e a esquerda radical não ajudou.”

Terá igualmente feito diferença, diz este investigador, a falta, no discurso do PS, da possível aliança entre PSD e Chega: “Isso desapareceu com Montenegro a afirmar que não queria ter nada a ver com o Chega. Esse travão, que foi muito importante em eleições anteriores, desapareceu aos olhos dos eleitores moderados, centristas.”

Depois, claro — ou antes —, há a questão da informação: “As novas tecnologias de comunicação não ajudaram e aceleraram ainda mais o processo, sobretudo com o afastamento dos jovens dos partidos da esquerda radical. Há muitos estudos que comprovam a maior capacidade da direita populista de dominar esse tipo de comunicação, inclusive com a criação de perfis falsos.”

Certo é que isto a que se assiste em Portugal não é, como frisa Marco Lisi, uma novidade: a ascensão da extrema-direita e daquilo a que se dá o nome de “nativismo” (postura política que dá prioridade aos interesses e bem-estar dos “nativos” ou residentes de longa data de um determinado país em detrimento dos dos imigrantes, defendendo restrições à imigração) é um fogo que alastra no mundo ocidental, nas tais “democracias avançadas” das quais falou mais acima Marina Costa Lobo.

Para Lisi, trata-se da combinação de dois fatores fundamentais: “Situações económicas mais confortáveis e a politização de questões não económicas e internacionais”. Os partidos de direita, ao contrário dos partidos sociais-democratas, diz este politólogo, “conseguiram criar um imaginário, uma nova agenda, que diz que os países e os recursos são para os nativos. O bloco ideológico da direita tem hegemonia no discurso — o que explica que as pessoas que ideologicamente se afirmam de esquerda possam votar à direita.” 

Maior triunfo da esquerda é razão da sua queda?

Face a esse discurso da direita, prossegue Lisi, "os partidos de esquerda não conseguiram encontrar uma nova agenda, uma nova visão do mundo.” Esta espécie de perda de discurso iniciou-se, explica, “na Europa do século passado. Quando o Estado Social se desenvolveu, e conseguiu aquilo que se propunha conseguir, começou a decadência dos partidos que o construíram.”

Nesta perspectiva, a esquerda está a ser vítima do seu próprio sucesso — o que pode explicar que em Portugal seja justamente quando se celebram 50 anos de democracia representativa e constitucional (face às primeiras eleições livres de 25 de abril de 1975, para a Assembleia Constituinte) que a extrema-direita se prepara para alcançar o segundo lugar na votação.

Uma das pessoas entrevistadas pelo DN no Seixal, Diana, diretora de recursos humanos de 37 anos que diz ser ex-votante de BE e PS e ter votado Chega no domingo, resume numa frase o impasse dos partidos que construíram e defendem o Estado Social: “Não queremos acreditar que a realidade que temos hoje é o melhor que nos podem dar”. Para esta votante da extrema-direita, “os portugueses há muito que não veem uma melhoria nas condições de vida” — uma afirmação que os dados contradizem, quer do ponto de vista económico quer social.

É, paradoxalmente, em nome das deficiências no Estado Social que a democracia construiu do zero neste meio século, por decisão e trabalho dos partidos que  acusa de nada fazerem “para melhorar a vida dos portugueses”, que Diana escolheu dar o seu voto ao Chega.

Ou seja, a um partido que na primeira versão do seu programa, em 2019, propunha desmantelar esse mesmo Estado Social, acabar com os transportes públicos e o  Código de Trabalho, instituir a total ausência de regras no arrendamento e reduzir a mínimos os impostos sobre o rendimento e a propriedade, recusando “a função redistributiva do Estado”. Propostas que desapareceram ou foram “suavizadas” numa nova versão do programa, em 2021, justificada com a “adequação do programa político aos desafios do crescimento" do Chega e "respetiva expressão nacional”. “Adequação” que não impediu o líder de remeter, no seu discurso de “vitória”, para o tempo pré-democracia e portanto e pré-Estado Social: “É a primeira vez que isto acontece desde 25 de abril de 1974”.

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