Vai começar a guerra pelos tronos da União Europeia

Todos os lugares de topo das instituições europeias vão mudar de mãos. E nem todas as mudanças são decididas pelo voto: vêm aí meses de negociações de bastidores e há regras não escritas a ditar decisões.
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As eleições europeias que vão decorrer de 23 a 26 de maio vão decidir muita coisa quanto aos cargos de topo da União Europeia (UE), mas não decidem tudo. A "guerra dos tronos" das instituições comunitárias joga-se muito nos bastidores - e os bastidores de Bruxelas podem ter caminhos sinuosos.

A presidência da Comissão Europeia, um dos cargos mais apetecidos da UE, promete ser um exemplo disso. Há seis candidatos na corrida (em nome de seis famílias políticas) e, teoricamente, o resultado do escrutínio vai ditar qual deles assumirá a liderança do executivo comunitário nos próximos anos. Ou não. Há um sétimo nome a correr por fora - e há quem aposte todas as fichas nele.

As cartas fora do baralho: o caso Durão

A história de outras escolhas no topo da hierarquia da UE ajuda a perceber como se decidem as coisas em Bruxelas. Como o que sucedeu em 2004, com a nomeação de Durão Barroso para a presidência da Comissão Europeia, relembrado há dias pelo Financial Times como um exemplo de "como as coisas realmente se fazem".

O relato é feito nas memórias de Wilfried Martens, que liderou o Partido Popular Europeu entre 1990 e 2013 (ano da sua morte). No livro Europe: I struggle, I overcome, Martens conta que o seu grande objetivo passava por travar a escolha que se desenhava no eixo franco-alemão, que apostava em Guy Verhofstadt, um liberal, então primeiro-ministro da Bélgica.

O PPE já era então o partido mais votado e tentava impor o seu candidato. A estratégia de Martens beneficiou de uma regra elementar em Bruxelas: possível candidato que tenha o veto de um dos grandes países não chega sequer a candidato. No caso foi a Itália: "Verhostadt está fora de questão", terá dito Sílvio Berlusconi. E Martens passou à fase seguinte. Era preciso encontrar um nome para pôr na mesa e foi assim que, a 24 de maio de 2004, Martens veio a Portugal à procura de alternativa. Almoçou com o então primeiro-ministro Durão Barroso, que lhe disse que o governo português apoiava António Vitorino. Mas a designação de um socialista não agradava ao PPE. A conversa, contada por Martens, correu assim: "Eu disse-lhe que havia um português que era melhor candidato do que Vitorino... Barroso subitamente ficou rígido e disse: "Se não conseguirem encontrar mais ninguém, estou preparado"."

Mas Martens - político formado na difícil arte da conciliação dos delicados equilíbrios políticos e regionais na Bélgica - guardou o nome na manga. "Eu via as dúvidas de Barroso. E confidenciei-lhe: o que estamos a fazer é um jogo às três tabelas. É perfeitamente possível que a bola que está a ir na direção de [Chris] Patten acabe a vir ter contigo."

E foi mesmo. O PPE avançou com o nome de Chris Patten, comissário europeu e antigo líder dos conservadores britânicos. Mas os vários nomes em equação tombaram sob o fogo cruzado dos grandes países - a Itália e o Reino Unido vetaram Verhofstadt e a França vetou Patten. E assim ficou o "caminho aberto a outro candidato" - Durão Barroso. As memórias de Martens sobre a escolha de 2004 ainda acrescentam um último ponto: "Se a candidatura de Barroso também falhasse, teríamos nomeado Michel Barnier", antigo comissário europeu e à data ministro dos Negócios Estrangeiros francês. Um nome que voltaria a colocar-se em 2014. E não há duas sem três.

Às portas de um impasse?

Uma vez realizadas as eleições europeias, segue-se a escolha dos presidentes do Parlamento Europeu (eleito pelos eurodeputados), da Comissão Europeia, do Conselho Europeu, do Alto Representante da UE para a Política Externa, a que se junta ainda a presidência do Banco Central Europeu (BCE). E o facto de todos os lugares de topo mudarem não é irrelevante no desenho final, muito pelo contrário.

No que se refere à Comissão Europeia, as regras mudaram desde 2004: o Tratado de Lisboa veio instituir o modelo dos spitzenkandidaten - os partidos europeus escolhem um "candidato principal" à presidência, devendo o cargo ser ocupado pelo cabeça-de-lista da família política que obtiver mais votos. Mas também aqui os caminhos da UE podem ser sinuosos - isto porque a designação do nome continua a caber ao Conselho Europeu, que não está formalmente obrigado a aceitar este preceito (os tratados impõem apenas que sejam levados em conta os resultados das eleições). E vários líderes europeus, do francês Emmanuel Macron a António Costa, já vieram sublinhar isso mesmo. O CE está apenas condicionado por um fator: é que o nome proposto tem de ser ratificado pela maioria dos eurodeputados, o que pode resultar num impasse que ninguém quer.

Na mesa, pelos dois maiores partidos, estão os nomes do alemão Manfred Weber, pelo PPE (historicamente o partido mais votado nas europeias), e do holandês Frans Timmermans, pelos socialistas europeus.

Mas as contas não serão fáceis de fazer. As sondagens apontam para o Parlamento Europeu mais fragmentado da história, com os dois grandes partidos a perderem lugares e os eurocéticos a ganhar força, o que poderá obrigar a um entendimento alargado entre forças pró-europeias, liberais incluídos.

E é aqui que volta a aparecer Michel Barnier, que desde 2004 juntou ao currículo mais um mandato como ministro, mais um mandato como comissário europeu e, acima de tudo, o cargo de negociador-chefe do Brexit em nome da UE. É nessa condição que Barnier vai na terceira ronda de visitas às capitais dos 27 (que incluem encontros com os respetivos líderes, os mesmos a quem caberá apontar um candidato), um périplo que manteve nas últimas semanas e que tem sido apontado como uma "campanha-sombra" na corrida à presidência da Comissão Europeia. Recentemente, num discurso em Munique, o próprio Barnier deixou escapar uma "quase confissão" dos seus propósitos. "O que tento fazer é envolver os cidadãos no debate desta campanha...", disse, citado pelo site Politico, para logo de seguida emendar com um "eu não sou candidato...".

Margarida Marques, antiga secretária de Estado dos Assuntos Europeus (atualmente candidata nas listas do PS), acredita que as eleições desta semana "podem resultar numa reorganização das famílias políticas europeias". De que forma, serão os resultados a ditar. Quanto aos cargos de topo da UE, por agora pode assegurar-se apenas um princípio - eles obedecerão, no seu conjunto, a um "equilíbrio partidário e geográfico".

"A regra principal é que não há regras"

António Costa saiu da cimeira informal em Sibiu, na Roménia, na passada semana, garantindo que os líderes da UE discutiram apenas a "agenda estratégica" para os próximos meses. "Se calhar é bastante menos sexy, mas foi mesmo isso que foi discutido. Sobre cadeiras não foi discutido nada", afirmou o primeiro-ministro.

Mas isso não significa que o processo não vá já dando os primeiros passos. "A partir de agora vamos ter os assessores diplomáticos dos primeiros-ministros a telefonarem-se uns aos outros" para começar a definir opções, para "evitarem que chefes de governo sejam confrontados com uma negativa", diz o antigo embaixador em Bruxelas António Martins da Cruz, antecipando que estas consultas se vão prolongar durante meses.

Nestes processos, diz o diplomata, a "regra principal é que não há regras" - "Há negociações tendo em conta os equilíbrios de poder da altura e a perceção que têm os chefes de governo sobre o que será importante nos próximos cinco anos. E há o interesse de cada país, que é superior a tudo o resto, não tenhamos dúvidas disso."

Mas há alguns dados que dá como seguros. "Nas questões determinantes, se a França e a Alemanha estiverem de acordo, é muito difícil combatê-las. Quem tinha esse poder era o Reino Unido, mas o Reino Unido deixou de contar", argumenta o embaixador. Por outros motivos, o mesmo é válido para a Itália, "debilitada por problemas políticos internos".

Martins da Cruz sustenta que o próximo líder da Comissão não vai sair do lote de cabeças-de-lista: "Nenhum tem perfil para ser presidente da Comissão. Ou temos uma personalidade forte como Jacques Delors, que mesmo assim foi durante anos ministro da Economia e Finanças da França, ou então tem de ser um antigo chefe de governo. Nenhum dos candidatos tem esse currículo, são figuras apagadas na política interna dos seus países". Martins da Cruz tem outra aposta - Barnier.

Quanto à liderança do Conselho Europeu, o diplomata aponta uma certeza. "É uma clara regra não escrita: tem de ser um antigo presidente ou primeiro-ministro. Se não, que autoridade é que tem para dirigir os trabalhos de uma mesa onde todos os outros são presidentes ou líderes de um governo?" Na passada semana, o Financial Times avançou um nome que cumpre este requisito - António Costa. O líder do executivo rejeitou categoricamente essa possibilidade: "É muito elogioso, mas eu não sou candidato a nada a não ser às funções que exerço em Portugal."

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