"Sistema eleitoral não muda por causa dos chefes, chefinhos e chefões nos partidos"

Entrevista a José Ribeiro e Castro, antigo líder do CDS, sobre a abstenção elevada nas europeias, a crise da direita e as suas propostas para mudar o sistema eleitoral.

Tivemos eleições europeias com uma abstenção muito elevada em Portugal, à volta dos 70%, e também no resto da Europa, apesar de disfarçada em alguns países porque havia outras eleições em paralelo, nomeadamente em Espanha, onde havia autonómicas, ou na Bélgica, onde houve legislativas. Olhando para Portugal, há uma explicação óbvia para os 70% de abstenção?
Há uma explicação que é o descrédito do sistema partidário e portanto a desvinculação bastante bem distribuída, a desconfiança relativamente aos partidos e um compromisso baixo. Bem sei que eram eleições europeias e desde 1994, ou seja, há 25 anos, que nas eleições europeias a abstenção atinge níveis muito elevados, acima de 60%. Também é sintomático e não podemos deixar de valorizar, apesar de serem eleições europeias, que no resto da Europa, onde a abstenção nestas eleições é também elevada, houve uma recuperação - estávamos com uma participação eleitoral em 2014 um pouco acima de 40% e agora passou para cerca de 51%. Em Portugal aumentou a abstenção, foi a evolução contrária. Portanto, confirma-se uma tendência de eleição em eleição de subida da abstenção. Nas eleições legislativas, que são as próximas - nas últimas a abstenção foi de quase 45% -, creio que é de recear, com estes indicadores, que deixemos de estar quase e passemos a estar acima de 45%, porventura próximo dos 50%.

O problema da abstenção é do sistema eleitoral, da forma como se faz política, falta de propostas concretas e falta de ideias? O que motiva as pessoas a não votar?
Creio que é da forma como se faz política. O sistema eleitoral que temos não tem nenhum defeito, até é um sistema simpático, de representação proporcional, mas foi-se fechando cada vez mais. Prevalecem os diretórios dos partidos, que pouco ligam aos eleitores, e estes foram-se apercebendo cada vez mais de que não tocam na bola, que a democracia representativa é uma democracia de representação dos chefes e não de representação dos eleitores; ou, se quisermos, do ponto de vista do discurso, é muito representativa no sentido teatral, é uma representação teatral mas não tem autenticidade de participação. Este é um sentimento tão profundo que os legisladores com poderes de revisão constitucional mudaram as regras constitucionais em 1997 quanto ao sistema eleitoral e permitiram a introdução de círculos uninominais em articulação com os círculos plurinominais, para se poder dar uma palavra, como dizem os ingleses, I have a say (tenho uma palavra na escolha do deputado). Há 20 anos que o sistema resiste à introdução desta fórmula.

Se o sistema como está é mau para as pessoas, naturalmente elas abstêm-se...
É deficiente, é insuficiente.

É insuficiente para as pessoas, não é motivador e também não é bom para os partidos, porque é que não se muda?
Porque há pessoas dentro dos partidos que ganham com isso - são os chefes, chefinhos e chefões. Todos os partidos formaram oligarquias, não só a nível nacional mas também, às vezes, a nível territorial, e são essas pessoas que de facto mandam.

Num funcionamento que o cidadão comum dificilmente entende?
Entende. E entende que não participa nele, entende que está vedada a sua participação. Isso viciou até o funcionamento dos partidos, e são esses poderes internos que foram capturando o sistema, às vezes em articulação com interesses organizados na sociedade portuguesa que têm impedido esta reforma. Não há mais nenhuma razão, quando a nossa Constituição permite um sistema misto de representação proporcional personalizada, e, também, se houver dúvidas quanto à garantia da proporcionalidade, um círculo nacional de compensação que a garanta - esse círculo nacional está permitido desde 1989 -, para continuarmos ao fim de quase 30 anos a batalhar pela introdução desta reforma. Creio que essa reforma é a salvação da democracia porque reconcilia, sem prejudicar a qualidade da representação política do ponto de vista da sua proporcionalidade, e dá-lhe qualidade do ponto de vista da intervenção do cidadão na formação das candidaturas - essa é a transformação principal que acontece - e, depois, na eleição dos deputados.

Essa proposta, a conjugação de dois tipos de eleitos, os leitos em círculos nominais e depois as listas partidárias que permitem a proporcionalidade, é muito inspirada no modelo alemão. Curiosamente, esse compromisso permite defender os interesses dos tais chefinhos e chefões, portanto não teriam grande razão para não aceitar essa mudança. Apesar de tudo, haveria lugar para os destacados líderes sem base local.
Mas esses não são os chefes, chefinhos e chefões, porque o que está errado são essas chefias e essas direções que não são sujeitas a escrutínio democrático. Muitas vezes, são pessoas que não vão a eleições e que mandam no sistema na sombra. O que está a dizer é outra coisa, são pessoas que vão a eleições e são eleitas, aí muito bem, têm uma autoridade legitimamente conquistada pelo seu peso e pela sua influência no país ou no território. O que acontece nesse sistema, que é um sistema muito engenhoso e é o mais perfeito de facto na Alemanha - mas existe noutros países, como na Nova Zelândia e na Bolívia -, é que há os candidatos uninominais e há os candidatos em lista, mas ambos são candidatos que vão na lista partidária no seu território. Portanto, o apuramento do número de lugares que cada partido tem, e isso é que compõe o Parlamento, é feito com o voto partidário.

Ou seja, não esvazia os partidos?
Não esvazia os partidos, pelo contrário. Há uma grande mudança da cultura política do funcionamento do sistema, porque há mais poder da cidadania, mas não há uma distorção da representação partidária, pelo contrário mantém-se. Cada eleitor tem dois votos, o voto numa lista ou o voto num partido e o voto num candidato a deputado, e o voto que guia a composição do Parlamento mantém-se como é hoje o voto no partido. É isso que determina as percentagens, na Alemanha em cada estado, em cada Land, no nosso caso em cada distrito ou região, é isso que determina quantos lugares é que cada partido tem, e também a nível nacional. Depois, o voto uninominal interfere na designação dos deputados que são eleitos para esses lugares. Se um partido ganhou círculos uninominais, os candidatos que ganharam círculos uninominais são os primeiros a ser eleitos dentro da quota do partido e os da lista só vêm a seguir. Se um partido tem, por exemplo, 10%, e portanto é pouco provável que tenha conseguido ganhar algum círculo uninominal, os seus eleitos vêm todos da lista apresentada. Neste sistema, que, como disse, é um sistema muito engenhoso, a pessoa pode ser candidata num círculo uninominal e também na lista, não há nenhum pecado nem nenhuma proibição.

Dentro do mesmo círculo?
Dentro da mesma região. O círculo uninominal é uma forma de candidatura e de possibilidade de escolha direta pela cidadania, mas se a pessoa não é eleita pode ser repescada pela lista. Isso faz todo o sentido porquê? Porque os partidos irão pôr a competir nos círculos uninominais naturalmente os seus melhores. Nessa eleição só um é que ganha, os outros vão todos fora, se fossem todos eliminados automaticamente, então a região, o partido, o distrito, ficariam prejudicados porque os melhores tinham saído fora. Portanto, aquilo é um mecanismo articulado de círculos uninominais e plurinominais que garante que pelo menos metade dos deputados sejam escolhidos diretamente pela cidadania, mas sem afetar minimamente a proporção.

"O círculo uninominal é uma forma de candidatura e de possibilidade de escolha direta pela cidadania"

Esse sistema tem a vantagem de defender a proporcionalidade, ao contrário por exemplo do sistema britânico em que partidos com 10% ou 15% podem não entrar no Parlamento, mas ao mesmo tempo esse sistema, que funciona também na Alemanha, levanta uma questão: há dois tipos de deputados, ou seja, o deputado que tem a legitimidade do voto direto na sua circunscrição e o deputado que entra na quota do partido. Isso não o faz hesitar por haver dois tipos de deputados no mesmo Parlamento?
Essa questão não se põe na Alemanha, essa questão não existe. É uma ideia que nós construímos, que imaginamos, mas essa questão não existe. E não existe porquê? Porque as candidaturas são sempre tratadas em conjunto, no nosso caso, no distrito ou na região, há os que são designados para encabeçar as batalhas nos círculos uninominais, mas podem estar também na lista plurinominal. No caso, que cito muitas vezes, da última eleição na Alemanha, em 2017, o círculo maior que é o da Renânia do Norte-Vestefália, que é um círculo que tem 128 deputados, havia 64 círculos uninominais e 64 na lista plurinominal. Todos os candidatos da lista plurinominal do SPD eram também candidatos que disputavam o círculo uninominal, todos menos um, que era o cabeça-de-lista, o Martin Schulz. Porquê? Porque ele tinha estado muitos anos no Parlamento Europeu, longe de círculos uninominais, e era inadequado que ele fosse disputar um círculo uninominal. Isto para ver como isto é normal. Angela Merkel foi eleita na Pomerânia do Norte, era candidata num círculo uninominal e a cabeça-de-lista, o seu lugar transitou para quem estava em segundo lugar. Há uma grande coesão do sistema, as pessoas podem entrar por um lado ou por outro e são sempre tratadas como candidaturas coletivas do círculo ou da região. O escrutínio primeiro é do número de deputados que no distrito ou região cabe num determinado partido, depois é que se vai designar os mandatos que são eleitos pela ordem da lista. É assim, mas antes dá-se lugar àqueles que venceram o círculo uninominal.

Nessa vossa proposta cada eleitor exerce um duplo voto, assinalando, por um lado, a força política preferida na lista do círculo territorial intermédio e, por outro, o deputado é escolhido no respetivo círculo de proximidade. Como é que isto pode ajudar a reduzir a abstenção?
De duas formas. Primeiro, independentemente dos deputados que são eleitos pelo círculo uninominal, há um processo de apresentação das candidaturas, e os partidos vão mudar por completo a forma como as decidem. Os partidos é que vão apresentar os candidatos, mas sabem que há ali uma disputa em que o cidadão pode estragar as contas. A maior parte dos cidadãos vota no candidato que o seu partido apresenta, é normal que seja assim, mas pode não o fazer.

Pode exercer um voto diferente no partido e no candidato de outra força política.
E o partido não quer ter grandes desgostos e, sobretudo, não pode apresentar um candidato que faça todo o eleitorado do seu partido desertar porque não está de acordo com aquela candidatura. Portanto, vai ter de apresentar uma pessoa que seja o melhor candidato ou a melhor candidata, mas no sentimento de quem? Do eleitorado e não no sentimento do chefe e dos fretes que ele está disposto a fazer. Assim, a carreira política dos candidatos vai depender mais do seu próprio mérito, outra vez, e não do grau de favoritismo que tem junto das chefias. Portanto, há menos boys e girls e mais men and women.

Menos paraquedistas, que era outro fenómeno que acontecia, e mais gente consagrada, digamos assim.
Sim, são pessoas que têm de construir um vínculo com esse território. Isso acontece em vários países, são pessoas que fazem uma carreira política em locais diversos daquele onde residem ou nasceram, que estabeleceram alguma relação e fazem uma carreira política por esse território. Depois têm de honrar essa candidatura, essa carreira, senão na próxima eleição serão cuspidos do sistema. Portanto, a primeira mudança dá-se dentro dos próprios partidos nas candidaturas. A segunda está nas campanhas. Hoje, o que é uma campanha eleitoral? É o líder com uma câmara de televisão atrás. Os outros 229, praticamente nem se veem, e isso é muito mau. Com este sistema passaria a haver 115 campanhas eleitorais, pelo menos, nestes círculos uninominais onde vai haver escolhas que, de alguma forma, influenciarão o resultado da eleição. Alguns desses duelos, ou trielos ou tetrelos, como lhes queiramos chamar, se calhar seriam interessantes, porque são segundas figuras. Há duelos muito interessantes que acontecem, por exemplo na última eleição na Alemanha, no Sarre, havia uma coligação e eram dois ministros que estavam ali em disputa. Ganhou um deles, ganhou o círculo uninominal e o outro depois foi eleito pela lista do seu partido nesse território.

Mas a resistência dos partidos à reforma do sistema eleitoral pode ser também por um outro desconhecido, que é o próprio desenho desses círculos eleitorais, porque isso implicava um estudo demográfico muito complexo e inclusive aquele risco que acontece por exemplo muito nos Estados Unidos, o gerrymandering, ou seja, a manipulação do desenho eleitoral. Isso do ponto de vista técnico não deveria ser um problema?
Creio que não é um problema. Primeiro há um passado histórico, já foram apresentados em 1998 projetos de lei do PSD e do PS apontando para esse sistema, e o do PS, que era uma proposta de lei do governo, era suportado e informado por um conjunto de estudos feitos em várias universidades e que tinha já um avanço quanto ao desenho desses círculos. Obviamente que os círculos não podem ter todos o mesmo tamanho, mas tinham uma regra de variância do número de eleitores, salvo erro, num caso de 25% e noutro de 30%. Portanto, no do PS os círculos podiam ter um número de eleitores de mais ou menos 25% do que a média considerada e no do PSD acho que era de 1/3. Nós acrescentámos um outro conjunto de regras que creio que devem ser respeitadas e que são a integridade e a autenticidade desses territórios. Estamos a falar de representação política e os territórios têm uma identidade que resulta da divisão administrativa do país - as freguesias, os municípios, os distritos. Isso daria, por exemplo, nos casos em que os distritos tinham de ser agregados - nalguns casos isso acontecia -, que os círculos uninominais não podiam ser de dois distritos: se Vila Real e Bragança fossem agregados, não podia haver um círculo uninominal que tivesse uns concelhos do distrito de Vila Real e uns concelhos do distrito de Bragança, era preciso respeitar a integridade de Bragança e a integridade de Vila Real. O mesmo aconteceria na agregação de municípios, tinha de se agregar municípios vizinhos e municípios na sua integridade, não podíamos retalhar.

Tinha de haver integridade territorial, inclusive ao nível de freguesia.
Tinha de haver integridade territorial, isso das freguesias só se poria nos casos dos municípios como Lisboa ou Porto, em que teriam mais do que um círculo uninominal no seu território, não se podia pôr a Foz com Paranhos, por exemplo, tinha de se agregar freguesias que são contíguas, e na sua integridade, não se podia dividir freguesias. O mesmo com os municípios, não se podia juntar um pedaço do Porto com um pedaço de Matosinhos, tinha de se tratar os municípios como um território integral.

Mas tecnicamente não há problema de se conseguir chegar lá?
Creio que não há, e tudo isso tem de ser aprovado por maioria de dois terços na Assembleia da República. Portanto, a nossa proposta é honesta, séria e, depois, tem de ser verificada no seu assentamento, e creio que a forma de dar menos polémica é respeitar a integridade dos territórios. A variância do número de eleitores que possa resultar da constituição de círculos uninominais também não é muito dramática, porque quem vença um círculo uninominal não está a prejudicar outro partido, quando muito está a concorrer com os seus colegas de lista. Quem ele vai prejudicar, se for eleito num círculo de baixa dimensão, são os candidatos da lista, porque ele vai ser o primeiro no lugar. Pode considerar-se, fazendo as contas, que teve uma tarefa para a sua eleição individual, dentro da quota do partido na lista, mais baixa.

"O dossiê da reforma do Estado é a balada mais longamente ouvida em Portugal e pouco concretizada"

Se não é por uma questão territorial, então como explica a resistência por parte dos partidos em reformar o sistema?
Bom, há uma resistência ao reformismo, vemo-la em várias coisas. O dossiê da reforma do Estado é a balada mais longamente ouvida em Portugal e pouco concretizada, há de facto uma resistência ao reformismo. E aqui é muito incompreensível porque fez-se o mais difícil que foi a revisão constitucional. Depois houve um debate na generalidade que correu, no essencial, bem, mas entornou-se por causa da questão do número de deputados. Foi isso que entornou esse debate e fez cair tudo e, depois, nunca mais se pegou nisso. Creio que é também a resistência desses poderes, poderes ocultos que ganharam um controlo sobre o sistema e que percebem que vão perder esse controlo, vão ter de o partilhar com a cidadania. Quando os cidadãos ganham mais poder, alguém o perde, e quem o perde é quem o tem por meios menos próprios, graças a um funcionamento democrático insuficiente, pouco adequado. Eu creio que é essa a resistência que acontece. Depois também acho que há, às vezes, pouco estudo. Há um excesso de receio contra esta palavra que se torna para algumas pessoas uma palavra proibida: círculo uninominal. As pessoas falam de círculos uninominais no sistema britânico ou no século XIX em Portugal como a ignóbil porcaria que é uma forma que se fez na passagem do século, mas não tem nada que ver com isso, porque este círculo uninominal é uma componente de um sistema que basicamente continua plurinominal e proporcional, só que o mecanismo de escolha daqueles que são eleitos é que difere.

Outra crítica que vem muito ao nosso sistema eleitoral e principalmente ao Parlamento, por parte dos populismos, é o número de deputados. Sendo as comparações aqui fáceis de se manipular, ou seja, se compararmos com o Parlamento alemão, esquecendo que tem duas câmaras, até temos muitos deputados para a população. Se compararmos com Israel, também parece que temos muitos. Mas, na verdade, a maior parte dos parlamentos do mundo têm uma regra de 200-300 deputados. Não há nenhum país que faça parlamentos de 50 deputados nem de 5000 deputados, mesmo o chinês não tem mais do que dois mil e tal. Isto é uma falsa questão?
É. É uma falsa questão. Creio que, aliás, tem crescido pela impopularidade dos nossos mecanismos democráticos. Como as pessoas foram desenvolvendo uma ideia negativa do funcionamento da Assembleia da República, da autonomia e da qualidade dos deputados na afirmação dos seus pontos de vista, da forma da formação da vontade coletiva, quer dentro do partido quer dentro da Assembleia, então vingam-se, desforram-se dizendo que não querem 230, 100 até é de mais... De facto, as campanhas ajudam a isso, porque as campanhas são à volta de seis líderes e da forma que funciona a Assembleia as pessoas até pensam que se calhar bastavam seis deputados e cada um deles votava com um cartão cujo número de votos corresponderia aos deputados virtuais que tivessem eleito. Penso que a questão nasceu daí e até admito que, recuperada uma relação saudável entre a cidadania e a representação parlamentar através desse sistema, esse sentimento desaparecesse. De facto, e este é um dado objetivo, nós não nos metemos nessa questão e achamos, aliás, que é mau metermo-nos nesta altura nessa questão porque o que tiramos da experiência dos últimos 20 anos é que sempre que se põe a questão do número de deputados a discussão entorna-se e para a reforma. Já não há reforma porque os partidos não estão disponíveis para isso. Aliás, o debate que enterrou isto tudo em 1998, para quem o for reler é evidente quanto a isso, foi o que matou a questão. Portanto, quem quiser que não haja nenhuma reforma eleitoral em Portugal ponha em cima da mesa a questão da redução de deputados e, com certeza, não vai acontecer nada. Quem fizer um estudo comparado dos parlamentos da União Europeia, dos países de dimensão média, dos países que têm entre sete e doze milhões de eleitores, verifica que o nosso rácio de representação deputado/cidadão é dos mais elevados, só fica atrás do da Bélgica, mas a Bélgica também tem duas câmaras, se entrarmos só com uma câmara, ficamos nós com o mais elevado. Mesmo a Hungria, que foi o único país que fez uma reforma muito dura do número de deputados, de cerca de 360 para 200, ainda ficou com um rácio inferior ao de Portugal. Nós não temos de facto um problema, as pessoas acham que é de mais, é um sentimento de que não fazem nada, de que estão ali a gastar o nosso dinheiro. É esse o discurso populista que é feito, mas em termos comparados o nosso Parlamento não compara mal.

Rui Rio defende que os votos brancos ou nulos contem como uma forma de ajustar o número de deputados no Parlamento. Faz sentido esta proposta?
É uma ideia que anda por aí. Eu não sei se o Dr. Rui Rio defendeu isso propriamente ou se lançou isso como um desabafo pessoal, mas é uma ideia que anda por aí. A reforma não é isso, muitas destas questões podem existir numa lei porque são um escape. Se isso tiver o efeito de levar mais pessoas a votar, porque vão votar em branco em vez de ficar em casa, então é um efeito positivo. Agora, isso acontece de uma forma muito residual, não tenhamos ilusões. Mesmo as candidaturas independentes - que nós não podemos ter -, na história da Alemanha, que tem um sistema eleitoral muito aberto, houve em todas as eleições três deputados independentes desde 1949, e foi na primeira eleição em que o sistema partidário ainda não estava bem definido; mas continuam a apresentar os sistemas mais abertos e mais variados de manifestação da vontade eleitoral dos eleitores. Isso contribui para que a Alemanha tenha das mais baixas abstenções da Europa - e até à reunificação nunca tinha atingido sequer 20% - e nunca representou um grande risco para a democracia. Portanto, isto é uma ideia que apareceu, não é essencial, mas se fosse isso que levasse as pessoas a votar, de acordo com a reforma eleitoral que nós defendemos, eu não me oporia a isso.

Os partidos, já para estas eleições legislativas, deviam cada um deles colocar nos seus programas eleitorais o que pensam sobre essa matéria?
Sim, acho que sim. Esta é uma reforma fundamental e penso que quem aderir a este ponto ganha pontos. Creio, da nossa experiência, que a cidadania está muito desperta para este problema e acho que é, de facto, uma reforma fundamental que tarda há 20 anos e que é correto que os partidos ponham claramente um compromisso nesta matéria. Nas últimas eleições, só o PS é que o pôs, depois não fez por causa dos acordos da geringonça, mas acho que era muito importante que para 2019 cada partido declare se é a favor da reforma ou contra ela - não pode fazer de conta que a questão não existe, a questão está na ordem do dia - e diga quais são as suas ideias, se quer cumprir o que está na Constituição ou não. Nós encorajamos claramente a que isso aconteça, tivemos entretanto a manifestação positiva também do Aliança e gostaríamos de que mais partidos também tomassem uma posição favorável para que, como o Presidente da República sinalizou numa conferência que organizámos na Faculdade de Direito de Lisboa, esta reforma possa ser discutida com tempo e concretizada na próxima legislatura.

Em relação à crise do centro-direita: curiosamente na Europa falava-se muito na crise dos partidos sociais-democratas, trabalhistas, socialistas - nestas eleições, alguns deles comportaram-se melhor -, mas de qualquer forma nota-se também uma crise dos partidos chamados conservadores, democratas-cristãos. Isso significa que aquilo que se passou em Portugal, com este resultado somado da direita a níveis abaixo do que foi na Constituinte, no momento do PREC, em que para se ser de direita era preciso ser-se muito afirmativo, é um sinal de crise evidente da direita?
Sim, é verdade que é assim, que ficou abaixo da Constituinte, ainda que nessa altura ninguém dissesse que era de direita, os próprios partidos não o diziam.

O que quer dizer que é mais grave este resultado, porque nessa altura ser de direita não era propriamente uma bandeira eleitoral...
Sim, claro. É inimaginável para mim, que tenho uma observação longa da nossa política na democracia, que o PSD e o CDS fiquem abaixo de 40%, porque durante muitos anos 40% era o chão do PSD e do CDS, era a maré baixa. Quando perdíamos eleições tínhamos 40%, foi sempre assim. Neste século, começou a mudar e já houve alguns casos em que ficámos abaixo dos 40%, ainda assim próximo, como foi na eleição de 2015 de Passos Coelho e da PAF, em que tivemos 38,6%. Portanto, quando perdíamos - e perdíamos de facto, porque quando a direita tem 40% a esquerda tem mais de 50%, portanto governa ela, de uma maneira ou de outra arranja forma de o fazer, foi sempre assim -, ter abaixo de 30% era inimaginável. Nas eleições Constituintes, a eleição de todos os perigos, como lhe chamam, o PPD e o CDS tiveram 34%. Esse patamar de segurança foi quebrado nas Europeias de 2014, com 27,7% com listas conjuntas.

Aí pensou-se que era um castigo pela austeridade, pela troika...
Está bem, mas 34% já chegava para castigo da troika. Estamos a falar de quase 13 pontos abaixo do tal chão dos 40%. Isso devia ter sido analisado e não o foi. O PSD e o CDS entraram a gozar com o PS, o PS entrou na crise do poucochinho e então quem tinha 27% gozava com quem tinha 31% por causa da crise em que entrou, em vez de fazer uma análise. A explicação foi a troika, mas também foi logo a seguir à saída limpa, que era um momento de triunfo. O que é que explicou que nós não conseguíssemos tirar da saída limpa o efeito político merecido? Isso tinha de ser analisado e não foi. O facto de não ter sido é que explica que passados cinco anos tenhamos reincidido num resultado dessa mesma ordem de grandeza - 28,1%, soma das votações do PSD e do CDS, e isso é mau.

Portanto, desse ponto de vista o Presidente da República fez bem em vir pronunciar-se publicamente sobre este assunto?
Não vou dizer que fez bem, mas não acho que tenha feito mal. É inabitual um Presidente da República falar sobre isso, não é? Gracejei, dizendo que os presidentes têm poderes não escritos. Há um poder de que eu gosto muito na nossa tradição constitucional que é o poder moderador, que é um poder escrito na Carta Constitucional e que o Presidente da República exerce bastante bem. Não é, aliás, o único que o fez desde o 25 de Abril, mas agora acrescentou um poder a que chamo o poder de editor, de editar a realidade, escolhe o título...

Aqui esteve mais como editor do que como Presidente?
Sim, foi como editor. Foi também um ambiente compreensível, numa conferência na FLAD, mas constatou uma realidade, não creio que ele tenha criado o que quer que seja. É de facto uma crise preocupante dos partidos, que se traduz também na emergência de partidos novos nesse espaço - alguns por dissidência direta -, e portanto há aqui matéria para reflexão. Estas crises são cíclicas, os socialistas e os sociais-democratas na Europa estão numa crise profundíssima, praticamente desapareceram em França, mas já tinha acontecido outras vezes no passado.

Mas a direita clássica também desapareceu em França...
Exatamente. Em França, a direita clássica não consegue arranjar uma forma duradoura desde que acabou o gaullismo, tem tido várias vestes. Agora já está nos Republicanos, entretanto houve duas gerações UMP. Em Itália também há uma crise grande do sistema partidário desde a Operação Mãos Limpas. Mas, enfim, há uma recente recuperação dos sociais-democratas na Dinamarca... Essas coisas têm os seus ciclos. O eleitorado do centro e da direita tem de refletir sobre isso e ajudar os partidos a encontrar respostas duradouras. É muito frustrante que nos preparemos para ter uma nova legislatura com uma maioria de esquerda parlamentar maior.

No caso dos comentários do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa havia também a necessidade de arranjar um pretexto para justificar a recandidatura?
Não, acho que não. Essa foi uma interpretação que foi posta a correr sobretudo pelo PSD, não acredito nisso. Ele não precisa de pretextos para isso. Creio, aliás, que ele já deu um quadro de decisão que é suficiente, que é a sua situação de saúde, pessoal e a utilidade que veja para o país, não precisa de justificar. Seria muito negativo que justificasse por causa de um determinado enquadramento partidário. Agora, o que é verdade é que a fragilidade da oposição à direita aumenta a responsabilidade face ao eleitorado da direita do Presidente da República, e isso nem sempre é agradável para ele.

Realçando também o seu papel, de alguma forma...
Sim, mas ele também não tem querido assumir esse papel e a meu ver bem, de chefe da oposição. Às vezes há muitas críticas que lhe são feitas porque queriam que ele fizesse o que os líderes dos partidos à direita não fazem.

E a crise à direita é sobretudo do PSD, tendo depois um efeito de arrasto sobre o CDS, ou o CDS tem a sua quota de responsabilidade identificável?
O CDS tem também problemas de definição interna, é um partido que liga à ideologia e depois não liga à ideologia, isso é uma questão no CDS muito importante e penso que não está a ser bem entendida. O PSD tem divisões de sensibilidades que se agudizaram com críticas a um excesso de direitização do partido, e isso gerou uma reação, mas também gera uma contrarreação do outro lado, portanto apenas uma liderança muito forte consegue vencer isso. Na história do PSD vemos que essa liderança muito forte só pode prevalecer a partir do governo, quando ganha as eleições. Quando o partido está a liderar a oposição é sempre muito difícil porque é um partido que tem uma grande dinâmica vibrante.

À luz dos recentes resultados eleitorais, o que lhe parece mais lógico na estratégia de Rui Rio, pensar, como alguns, na ideia de um bloco central com o PS ou insistir numa alternativa de direita numa coligação com o CDS?
Acho o bloco central um disparate, acho que isso não vai acontecer. Não sei se é uma intenção de Rui Rio ou se é uma caricatura que se pôs a correr. Agora, é uma coisa diferente que exista nos partidos à direita uma disponibilidade para acordos, isso não tem nada que ver com Bloco Central, e é necessário. Um dos grandes erros que foram feitos foi um discurso de cordão sanitário da direita contra a esquerda, acho que isso foi fatal. Aquele discurso de "Quando precisar de nós, nós não estamos cá. Tem de encontrar os votos sempre com o PCP e o Bloco de Esquerda".

Esse discurso foi da atual líder do CDS.
Não. Foi antes, foi um discurso de Paulo Portas. O PSD também o fez, houve líderes do PSD que disseram a mesma coisa. Enfim, foi naquele tempo muito difícil a seguir às eleições de formação da geringonça. Houve discursos que deveriam ter sido meramente circunstanciais e ter acabado, mas não, tiveram continuação. Nós vemos que esse discurso não teve sequer condições de ser aplicado porque manifestamente o PSD e o CDS não tinham nem poder nem estavam em circunstâncias de impor isso. O eleitorado ia zangar-se muito se fizessem cair decisões que lhe eram simpáticas apenas porque o Bloco e o PCP compreensivelmente não as apoiavam e deixavam o PS sozinho, e essas coisas afundavam-se. Recordo-me das votações, ainda em 2015, salvo erro no caso Banif, em que o CDS aplicou essa linha dura e quem salvou a intervenção no Banif foi o PSD. Na Caixa Geral de Depósitos foi ao contrário, foi o PSD a adotar a linha dura e foi o CDS que salvou essa decisão e, a meu ver, bem. Agora com os professores foi uma reedição disso e mostrou como esse discurso é inadequado. O CDS e o PSD não podem estar de braço dado com o PCP e com o Bloco de Esquerda para não estarem de braço dado com o PS. Isso não tem lógica nenhuma, em algumas questões não tem lógica nenhuma. Portanto, que exista da parte da oposição à direita uma não exclusão de acordos ou de votações com o Partido Socialista, em função da matéria, dos interesses do país, não acho negativo, acho até que o eleitorado premiaria isso. E isso não tem nada de bloco central. Por exemplo, para fazer uma reforma eleitoral temos de estar de acordo; para resolver de vez a embrulhada em que estamos atolados, da regionalização que não se faz nem deixa fazer nada em termos de administração territorial, é preciso um consenso alargado; para fazer uma reforma do Estado a sério é preciso um clima de debate alargado, sem grandes preconceitos que não sejam ter um Estado dimensionado às capacidades da nossa economia.

Até por isso tudo, há condições ainda para o PSD e o CDS irem coligados às eleições de outubro?
Não. Isso podia ter sido um plano para a legislatura, mas nesta altura acho que seria um disparate, acho que não é possível. Aliás, o que tem feito fracassar as ADs recentes é o serem feitas em cima do joelho, numa corridinha e numa colagem de ocasião, para disfarçar a derrota ou ficar à frente do PS. Depois, perdemos. É isso que explica a derrota tão estrondosa nas europeias de 2014, e também a PAF não foi suficiente. A PAF devia ter sido estabelecida antes, quando se decidiu as listas conjuntas para as europeias, ou seja, ainda em 2014, e, se nos recordarmos, foi já muito na iminência das eleições, foi em abril de 2015 para as eleições de outubro. Portanto, acho que nós perdemos embalagem.

Tudo favorece então a possibilidade de uma vitória do PS, mas não a nível de uma maioria absoluta. O que pensa sobre isso?
O PS dificilmente terá maioria absoluta, agora, se a crise da direita continuar a ajudar, o PS agradece, mas as sondagens não estão para aí. O que creio que é desejável é que seja retomado um diálogo franco, sincero e aberto entre o PSD e o CDS, isso é importante; que as propostas de cada um sejam de facto mobilizadoras e atraentes e que a construção das listas as torne mobilizadoras e representativas do espaço mais ativo dos dois partidos, para termos um bom resultado. Um bom resultado é o que podemos aspirar nesta altura.

Mais Notícias

Outros Conteúdos GMG