O que diz a tese da ministra: médicos e enfermeiros a partilhar tarefas
Marta Temido critica, em estudo apresentado há quatro anos, os sucessivos governos por terem "negligenciado" as políticas de recursos humanos da saúde
"Há evidência de que, em áreas e condições específicas, os enfermeiros podem prestar cuidados equivalentes aos dos médicos". Na sua tese de doutoramento, apresentada há quatro anos, a nova ministra da Saúde defende a distribuição de tarefas dos médicos pelos enfermeiros, criticando uma "divisão do trabalho baseada nas fronteiras profissionais" que se mostra "esgotada". No trabalho apresentado no Instituto de Higiene e Medicina Tropical, Marta Temido critica o decisor político - leiam-se governos - por ter "negligenciado" as políticas de recursos humanos, e apresenta algumas áreas onde era possível atribuir mais competências aos enfermeiros, como a prescrição de alguns medicamentos ou a realização de certas técnicas de diagnóstico e tratamento.
Marta Temido recorre ao exemplo norte-americano e ao papel dos nurse practitioners (enfermeiros com formação avançada) e midwives (parteiras), que conseguiram uma maior adesão dos seus doentes ao tratamento (por exemplo, no seguimento da terapêutica, comparência às consultas, mudanças de estilos de vida) do que os acompanhados por médicos. "Outros indicadores, como qualidade dos cuidados, prescrição de fármacos, estado funcional, número de consultas por doente e recurso à urgência revelaram desempenhos semelhantes. Os enfermeiros e parteiros atingiam resultados comparáveis aos dos médicos e usavam menos tecnologia e analgesia".
"Os enfermeiros e parteiros atingiam resultados comparáveis aos dos médicos e usavam menos tecnologia e analgesia"
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Ao analisar o estudo de 180 páginas encontram-se várias conclusões, boa parte delas retiradas de investigações de outros autores, que apontam na mesma direção: "Os resultados da avaliação de iniciativas desenvolvidas em outros países no sentido da otimização da combinação dos recursos humanos da saúde têm contribuído para a formação de uma base de evidência que mostra que, em áreas e condições específicas, existe espaço para ganhos de acesso, qualidade e satisfação numa diferente distribuição do trabalho entre médicos e enfermeiros".
E socorre-se das posições de várias organizações que já pediram esta solução: os trabalhos de preparação do Plano Nacional de Saúde 2011-2016 apontavam um "espaço para rotatividade de tarefas e para a delegação de tarefas, particularmente de médicos para enfermeiros"; avaliações realizadas pela Organização Mundial de Saúde "insistindo na utilidade de uma revisão da combinação de recursos médicos e de enfermagem"; e até recorre ao Programa de Assistência Económica e Financeira, onde "a questão da busca de uma combinação mais eficiente de Recursos Humanos da Saúde, nomeadamente de médicos e enfermeiros, foi objeto de frequente referência no quadro de diversas propostas estratégicas de reforço da sustentabilidade financeira do sistema de saúde".
"Nas USF tende a existir um ambiente favorável à atribuição de papéis clínicos mais vastos ao enfermeiro"
Mas as "evidências" apresentadas não se centram apenas em resultados internacionais, fazem também referência a entrevistas nacionais, com médicos e enfermeiros de Unidades de Saúde Familiar. Aí, "os resultados sugerem que no modelo de trabalho em equipa que sustenta o funcionamento das USF tende a existir um ambiente favorável à atribuição de papéis clínicos mais vastos ao enfermeiro de Cuidados de Saúde Primários como forma de melhorar a resposta às necessidades assistenciais da população".
Competências dividem as ordens
Em 2014 como agora, as ordens que representam médicos e enfermeiros dividem-se nesta questão. "Concordamos com este skill mixing, é possível haver esta partilha de competências e há coisas que já deviam ter avançado, como os enfermeiros especialistas de reabilitação poderem prescrever as ajudas técnicas aos doentes (camas, canadianas, etc.), que neste momento têm de ser passadas por um médico para terem comparticipação, ou na saúde materna, como já prevê uma diretiva comunitária, serem os enfermeiros a prescrever medicação de seguimento durante a gravidez, como ácido fólico, e no parto", argumenta a bastonária dos enfermeiros. Ana Rita Cavaco faz, no entanto, questão de salientar que entre os objetivos imediatos não está a prescrição de medicamentos.
"Não admitimos transferência de competências", responde ao DN Miguel Guimarães, bastonário da Ordem dos Médicos. "O que existe é a delegação de competências, que é o que já acontece noutros países e até em algumas áreas em Portugal, no contexto de trabalho em equipa. Há competências administrativas que pesam muito nos médicos e podiam ser delegadas, mas nunca dos atos médicos".
Cabe ao decisor político, defende a nova ministra da Saúde na sua tese de doutoramento, contribuir para atenuar resistências
Mas na sua tese, Marta Temido argumenta que "há espaço normativo para uma redistribuição do trabalho entre médicos e enfermeiros, na medida em que muitos atos são considerados exclusivos da área médica por força de práticas instituídas". Cabe então ao decisor político, defende a nova ministra da Saúde na sua tese de doutoramento, contribuir para atenuar resistências e acautelar "o alinhamento dos quadros legal e regulatório, dos curricula formativos e dos modelos de remuneração e financiamento".
Negociações aproximam as ordens
Este não é, aliás, o único momento em que Marta Temido mostra preocupações com a valorização profissional, há muito reclamada pelos enfermeiros e que tem estado na base de uma vaga de greves em 2018, que vai continuar esta semana. "O sistema de saúde português continuará a confrontar-se com desequilíbrios entre oferta e procura de profissionais médicos e assimetrias geográficas na respetiva distribuição, que, provavelmente, irão aumentar em resultado da crise financeira em que o país se encontra mergulhado, com todas as suas repercussões em termos de equidade no acesso. O sistema de saúde português continuará também a debater-se com um baixo reconhecimento social da profissão de enfermagem - de que a precariedade laboral, o nível salarial e a emigração são apenas sintomas que se vêm intensificando - que constitui uma barreira a práticas de enfermagem mais diferenciadas".
Uma visão que, como seria de esperar, é bem acolhida pelos enfermeiros, que ainda assim esperam para perceber quais os objetivos da nova ministra e se os temas que já estavam em discussão com a equipa anterior - que incluíam precisamente as questões da carreira e o alargamento de competências - se vão manter com os novos secretários de Estado. Um ponto onde as posições de enfermeiros e médicos se encontram. "Uma coisa é o que diz numa tese, outra o que faz quando chega ao governo, as condições mudam. Há vários dossiês mais importantes do que este das competências, como o da emergência médica ou das carreiras médicas. Esperamos que esta mudança na equipa ministerial não traga problemas nestas negociações", conclui Miguel Guimarães.