Piloto capturado na Líbia: combatente ou mercenário?

Julgamento do piloto capturado na Líbia que se diz português pressupõe legitimidade dos juízes e a definição do seu estatuto legal.
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O Exército Nacional Líbio (LNA, sigla em inglês) do marechal Khalifa Haftar carece de qualquer legitimidade para julgar o piloto capturado terça-feira e que se apresentou como português, diz ao DN um antigo alto quadro da ONU.

Víctor Ângelo, ex-representante especial do secretário-geral das Nações Unidas para a área das operações de paz, lembra que só o Governo de União Nacional (GNA) liderado por Fayez Sarraj é formalmente reconhecido pela comunidade internacional - pelo que "tem alguma responsabilidade" em matéria de proteção dos direitos do piloto.

Esta quinta-feira, em comunicado, a Comissão de Negócios Estrangeiros da Câmara dos Representantes afeta à milícia rebelde do LNA - cujo centro de poder está em Benghazi - anunciou que não considera o piloto como prisioneiro de guerra e o vai julgar como mercenário, responsável por crimes cometidos contra cidadãos líbios e contra a integridade e soberania do país.

Quem é o piloto?

Conhecer a verdadeira identidade do indivíduo apresentado como piloto mercenário ao serviço do GNA e a respetiva nacionalidade é uma condição necessária para se saber a quem cabe a responsabilidade pela sua proteção.

"Não percebo porque é que a sua nacionalidade não foi ainda revelada", observa Víctor Ângelo, estranhando continuar sem aparecer algum país a identificar o piloto como seu nacional.

"Esse país tem uma responsabilidade internacional muito grande na proteção ao seu cidadão", sublinha o antigo representante especial do secretário-geral da ONU.

Combatente ou mercenário?

A evolução dos conflitos armados nos últimos anos esbateu a definição tradicional do que é ser mercenário, entendido como alguém, a troco de dinheiro, participa num conflito externo para derrubar um governo legítimo ou derrubar movimentos de libertação nacional.

Nesse sentido e à luz das Convenções de Genebra, um mercenário não beneficia do direito de ser considerado como combatente ou prisioneiro de guerra.

Porém, o recurso crescente dos Estados à figura dos contratados - como se viu com as recentes guerras do Afeganistão e do Iraque - acabou por fazer com que essa figura "entrasse na prática internacional" como alguém que está ao serviço de um governo legítimo.

"A questão fundamental é a legitimidade da parte em causa", assinala Víctor Ângelo. Tomando como exemplo o conflito atual na Líbia, o antigo responsável da ONU e agora consultor internacional em áreas como a gestão de crises e a segurança adianta: "Um governo legítimo pode não ter pilotos" para a sua força aérea "e aceita-se que recorra a pilotos e outros combatentes de outras nacionalidades" que possam assumir essa responsabilidade.

Que legislação aplicar?

Os deputados do LNA elencaram os diplomas que entendem não se aplicar ao caso: a Convenção Internacional contra o Recrutamento, Utilização, Financiamento e Instrução de Mercenários (adotada pela ONU em 1989), a Convenção para a Eliminação do Mercenarismo em África (aprovada em 1977 pela Organização de Unidade Africana) e as regras do Direito Internacional Humanitário (DIH).

"Segundo as investigações preliminares e de acordo com as convenções internacionais, [o piloto] não é um prisioneiro de guerra e como tal não beneficia de qualquer proteção legal" relativa a esse estatuto, informou a referida comissão parlamentar afeta ao LNA.

Assim, ao anunciar que o piloto será julgado com base no "Código Penal da Líbia n.º 4, relativo a crimes cometidos em território líbio", os deputados do LNA tratam-no como autor de crimes - caso em que, se fosse português, o Governo estaria de mãos atadas.

Portugal pode enviar alguém?

Segundo o Portal das Comunidades do Ministério dos Negócios Estrangeiros, onde constam diversos conselhos aos viajantes, o apoio a dar por Lisboa a um português no estrangeiro "não poderá [...] libertá-lo da prisão, pagar as contas do hotel, do médico, do advogado, de viagens ou outras".

No entanto, os representantes diplomáticos e consulares de Portugal poderiam levar-lhe comida e medicamentos, informar-se sobre as condições da prisão ou disponibilizar apoio psicológico, de acordo com algumas fontes.

Exemplos disso são os muitos portugueses presos em cadeias latino-americanas por ligações ao tráfico de droga.

Quem vai julgar o piloto?

A existência de uma Câmara dos Representantes do LNA é uma das estruturas através dos quais aquela milícia rebelde exerce o seu poder sobre o território que controla e com que procura substituir o GNA como governo de facto da Líbia e reconhecido pela comunidade internacional.

Mas atualmente o LNA "não tem legitimidade com base nas leis líbias", observa Víctor Ângelo. Então que fazer no atual conflito para proteger o piloto de 29 ano que não esteve nas Forças Armadas portuguesas.

Víctor Ângelo entende que o GNA, enquanto governo reconhecido pela comunidade internacional, "tem alguma responsabilidade". Isso envolve "tentar explicar [ao LNA] que não pode proceder ao julgamento de maneira ilegal".

Por outro lado, os países - nomeadamente europeus - que estão em contacto com o LNA "podem fazer pressão sobre o marechal Khalifa Haftar e impedir o julgamento do piloto sem estabelecer primeiro quem é e qual a sua nacionalidade", argumenta Víctor Ângelo, que coordenou vários programas de apoio humanitário.

Mercenários em tribunal

No âmbito do DIH, alguém qualificado como mercenário não tem estatuto de combatente ou de prisioneiro de guerra mas goza do direito a ter condições de detenção adequadas e um julgamento imparcial.

Um dos casos mais conhecidos é o do mercenário francês Bob Denard, também conhecido como "cão de guerra" pelas suas atividades nos anos 1960 e 1970 em África - em especial em golpes como o do Benim (1993) ou no arquipélago das Comores (leste de Moçambique, 1995). Julgado em França, foi condenado a cinco anos de prisão pelo primeiro caso e a quatro no segundo - sempre com pena suspensa.

Luanda também foi palco de um julgamento de mercenários, em julho de 1976, Os chamados "soldados da fortuna" tinham sido capturados na província do Uige em fevereiro desse ano, em plena guerra civil e liderados pelo capitão Calan.Na Guiné Equatorial, em 2004, foram julgados 19 mercenários (detidos no Zimbabwe) sob a acusação de, nesse mesmo ano, tentarem derrubar o governo de Obiang Nguema. Mark Thatcher, filho da antiga primeira-ministra britânica Margaret Thatcher, foi acusado de ser um dos financiadores da tentativa de golpe também pela África do Sul - onde foi condenado a quatro anos de pena suspensa.

Mercenários portugueses

Congo e Biafra, nos anos 1960, foram alguns dos conflitos em que se envolveram portugueses na qualidade de mercenários.

O mais conhecido é o da República do Biafra, um estado da Nigéria que no final da década de 1960 tentou a secessão do recém-independente país africano (do Reino Unido, em 1960). Pilotos portugueses, vários deles antigos militares da Força Aérea (oficiais e sargentos) que tinham estado na guerra colonial.

Gil Pinto de Sousa, Artur Alves Pereira, José Eduardo Peralta, Armando Cró Brás Faustino Borralho e Jorge Câncio foram alguns dos portugueses que aceitaram criar a força aérea do Biafra, pilotando aeronaves T-6G.

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