A semana das facas longas na geringonça
Quando em dezembro de 2016, o governo socialista procurou "compensar os patrões" pela subida do salário mínimo nacional com a descida da taxa social única, a legislatura esteve em risco, lembrou uma vez a coordenadora bloquista, Catarina Martins. E foi uma coligação negativa, em janeiro de 2017, com o voto conjunto de PSD, BE, PCP e PEV que obrigou o executivo a ter de encontrar uma alternativa, que passou então pela redução do pagamento especial por conta.
Agora, é uma idêntica coligação negativa, alargada ao CDS (exatamente a mesma que chumbou o PEC IV, que levou à queda do executivo socialista de José Sócrates, em 2011), repondo a contagem integral da carreira dos professores, que abre uma crise política, com o Governo de António Costa a apontar para a demissão, se o projeto for aprovado (e, já a 16 de abril, a Rádio Renascença apontava para esse cenário).
Na geringonça, as relações degradaram-se visivelmente desde o final da semana passada, por causa da lei de bases da Saúde. O Bloco entendeu-se com o Governo para acabar com as parcerias público-privadas na gestão pública dos hospitais e as taxas moderadoras nos cuidados primários, mas o PS puxou o tapete à ministra da Saúde - e o executivo de António Costa acabou por recuar.
O primeiro-ministro recusou, na quinta-feira, no debate quinzenal, que houvesse acordo com o BE, sublinhando que se tratava só de um "documento de trabalho". António Costa pressionou a esquerda, lembrando que se não houver alterações é por falta de "vontade política" do PCP e BE. Para o primeiro-ministro, só há duas opções: ou manter a atual lei de 1990 ou aprovar aquilo que o PS defende.
Segundo Costa, os socialistas querem "convergir" com a esquerda "na lei de bases da saúde, substituindo-a por uma lei que diz que o Serviço Nacional de Saúde é público, universal e tendencialmente gratuito" e que acaba "com a ideia de concorrência entre publico e privado, e que torna o privado meramente excecional e supletivo".
Bloquistas e comunistas recusaram abrir a porta aos privados, com Catarina Martins a afirmar que "o que o PS pede à esquerda é que deixe a porta aberta para que a gestão privada se mantenha e possa até expandir-se no futuro, ao sabor das opções do momento". E a coordenadora bloquista atirou que "o PS propõe à esquerda que, 30 anos depois e pela primeira vez, dê razão a Cavaco Silva e admita a lógica da privatização do SNS". "Com o voto do Bloco, isso não acontecerá", garantiu. Jerónimo de Sousa também fechou a porta, atirando que uma simples PPP pode contaminar todo a floresta.
Durante a legislatura já houve outras estranhas geringonças, com PCP e BE a juntarem-se à direita para viabilizar outras propostas, mas esta terá sido provavelmente a primeira vez que as portas se fecharam com estrondo em público na geringonça, depois de três anos e meios de tensões quase sempre resolvidas entre os parceiros parlamentares que assinaram, em 10 de novembro de 2015, as posições conjuntas que permitiram a queda do executivo de Passos Coelho e Paulo Portas e a tomada de posse do Governo de António Costa.
A Lei de Programação Militar, aprovada terça-feira na especialidade e esta sexta-feira em votação final global, esteve meses no limbo porque o PS admitiu inicialmente que o conseguia fazer com a geringonça. Daí não ter negociado previamente a proposta com a direita. Mas, como alguns socialistas previam, BE e PCP - que pela primeira vez e de forma inesperada se absteve aquando da votação na generalidade - não iriam corresponder a essa expectativa.
Perante a intransigência do PSD em não aprovar o documento que permite a modernização das Forças Armadas, caso se mantivessem algumas das opções do Governo, este e o PS acabaram nos últimos dias por ceder e aceitar as alterações necessárias para obter a luz verde dos sociais-democratas num diploma que exigia maioria qualificada para passar.
Agora, o primeiro-ministro polarizou as opções. No debate quinzenal desta quinta-feira, houve outro momento em que Costa pareceu antecipar a aprovação que aconteceu, ao final da tarde, já depois da sessão em plenário, do tempo de contagem na íntegra para os professores.
Quando interpelado pela líder do CDS, Assunção Cristas, por eventuais cortes nos fundos comunitários, o primeiro-ministro atirou para a mesa as contas sobre o pagamento aos professores. "A senhora deputada está tão preocupada com eventual corte de 1600 milhões de euros em sete anos e está tão pouco preocupada em viabilizar uma irresponsável proposta de aumentar em 800 milhões de euros de despesa certa todos os anos em carreiras e ter o desplante de dizer 'apresentem um orçamento retificativo'."
Com as posições extremadas, António Costa convocou para esta sexta-feira de manhã uma reunião extraordinária do núcleo de coordenação política do Governo e o ministro da Educação, Tiago Brandão Rodrigues. Em fotos publicadas nas redes sociais, veem-se também os ministros Mário Centeno (Finanças), Mariana Vieira da Silva (Presidência), Pedro Siza Vieira (Adjunto e da Economia), José Vieira da Silva (Trabalho, Solidariedade e Segurança Social) e Pedro Nuno Santos (Infraestruturas e da Habitação), para além dos secretários de Estado dos Assuntos Parlamentares, Duarte Cordeiro, e da Presidência, Tiago Antunes. Participou ainda a secretária-geral adjunta do PS, Ana Catarina Mendes.
Coincidência ou não, as crises na geringonça agudizaram-se desde que o negociador-mor do Governo - e talvez o maior adepto desta solução governativa no executivo -, Pedro Nuno Santos, foi promovido a ministro e deixou a Secretaria de Estado dos Assuntos Parlamentares, na remodelação de fevereiro passado.