"Há uma cultura de tolerância a práticas censuráveis que me preocupa"

Partindo do mandato de Joana Marques Vidal, com a investigação a chegar mesmo às classes antes intocáveis da sociedade, como a banca ou a política, vem a questão: passou-se da impunidade ao justicialismo? Joana Marques Vidal garante que não
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Se a justiça parece estar hoje muito mais desperta para as irregularidades e violações da lei, mesmo no que toca aos setores de maior relevo (banca, política, etc.), há quem veja na atual quantidade de processos investigados uma passagem do 8 ao 80. A Procuradora-Geral da República discorda disso em absoluto - e tem números do seu lado.

"Investigar tudo, que é uma particularidade que a nossa lei impõe, foi muito importante porque trouxe regras à investigação criminal. A PGR não inventa processos. Até podemos arquivar depois, se não houver matéria, mas somos obrigados a investigar sempre. E isso é o Estado de Direito a funcionar", sublinhou, quando questionada num jantar promovido pelo grupo Portugal XXI - Ideias para Portugal no século XXI ("think tank fundado por 21 cidadãos com diferentes experiências profissionais e sensibilidades políticas mas com um interesse comum, a causa pública"), no hotel Sheraton.

Quanto ao número de denúncias, potenciado pela possibilidade de fazê-las de forma anónima e no portal da PGR, Joana Marques Vidal diz que só cerca de 15% dessas prosseguem - e nos casos em que não há base para investigar, "o processo é arquivado e destruído". Ainda assim, "o que me preocupa é que a maioria das denúncias tenham razão de ser", afirma a PGR. "Preocupa-me as práticas que existem e sobretudo a tolerância social às práticas que são censuráveis ética, deontológica e criminalmente. Preocupa-me esta cultura de tolerância em relação a determinados princípios."

Rejeitando em absoluto - como, de resto, praticamente todos os que trabalham com as leis - a possibilidade de inverter o ónus da prova em investigações relacionadas com corrupção, Joana Marques Vidal nem entende porque se continua a falar de algo que o próprio Tribunal Constitucional chumbou. "Nos termos em que se fala (que a Assembleia queria legislar) de enriquecimento ilícito, havia uma inversão do ónus da prova. Eu sou contra isso. Mas também é de evitar um total desligamento entre o que é o património do cidadão e o que é o seu património declarado", ressalva.

Questionada ainda sobre a ajuda que a delação premiada poderia dar à investigação, a PGR recordou que essa figura já existe e é usada na nossa justiça, ainda que não com as características que assume em países como o Brasil. O "nosso sistema já consagra o direito premial de forma muito clara - em casos de droga, por exemplo, tem até alguma profundidade... pode ir até à quase isenção da pena. Talvez fosse importante alargar, mas esse é apenas mais um meio ao nosso dispor, não seria por aí que se resolvia a corrupção no país."

E resumiu a ideia da seguinte forma: "Há coisas fundamentais e coisas úteis. A corrupção não se resolve apenas com uma medida. O que eu gostava era de ver o discurso anticorrupção generalizado no país. Que fosse uma parte estratégica, vincada, nomeadamente no discurso político - quando a realidade é quje esse tema está praticamente ausente do discurso político."

Levando o princípio da separação de poderes muito a sério, ainda no mesmo encontro, a PGR garantiu que nunca fez ou recebeu pressões nem telefonemas sobre quaisquer processos - "nem me passaria pela cabeça a hipótese de partilhar informação com quem quer que fosse". E assumiu que gostaria de ver as declarações de incompatibilidades tratadas não no Tribunal Constitucional, mas "numa estrutura autónoma que permitisse fazer-se uma investigação rigorosa".

Por última, questionada sobre a transferência do processo de Manuel Vicente para a Angola, foi clara: "Este não é o primeiro nem o último caso. Já houve várias transmissões de processos para Angola. Não há nada fora do normal nisto."

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