Eleições-piloto nas escolas e dois dias de urnas. As soluções para travar a abstenção em Portugal

Em 1975, a abstenção era apenas de 8%. Mais de quatro décadas depois, 51,4% dos eleitores escolhe não votar. Da proximidade aos recursos financeiros, são várias as razões que podem ajudar a explicar as estatísticas. Um estudo apresentado esta quarta-feira adianta algumas soluções e traça um retrato dos abstencionistas em Portugal.
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As urnas portuguesas não são uma casa cheia. Muito pelo contrário. Desde que a democracia assentou em Portugal, nunca a abstenção foi tão alta como agora, com mais de metade (51,4%) dos eleitores a escolher não votar. E mesmo com a participação a aumentar na generalidade nas eleições europeias, o nosso país continua bastante abaixo da média. A solução pode começar por implementar eleições-piloto nas escolas e alargar o processo eleitoral a dois dias da semana, por exemplo.

As conclusões são do estudo Abstenção e Participação Eleitoral em Portugal, um relatório que faz o diagnóstico e aponta medidas de combate à abstenção, elaborado por dois investigadores (João Cancela, da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, em colaboração com Marta Vicente, da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa). A apresentação decorreu esta quarta-feira, na Nova School of Business and Economics (Nova SBE), em Carcavelos, no âmbito do evento Portugal Talks, que promove a discussão política na sociedade civil.

"Eu não voto", assume um participante que decidiu intervir no debate. "Se votasse, votaria manipulado pelos políticos e pelos media, porque não estou apto para decidir sobre finanças, educação, saúde, se não sei nada sobre estes assuntos. E será que aos 18 anos tenho legitimidade para decidir já?", larga a questão. Uma das respostas para esta problemática poderia mesmo passar por criar eleições simuladas nas escolas, no ensino secundário, dias antes de as urnas abrirem oficialmente. À semelhança do que já acontece em países como a Noruega, a Suécia e os EUA.

"Durante estes dias, fazem-se campanhas nas escolas, devidamente reguladas, e põe-se os jovens a votar (sem implicação direta nas eleições reais)", de forma a aumentar a consciência de dever cívico entre o setor etário mais abstencionista, esclarece o principal autor do estudo. Segundo João Cancela, os resultados são claros: "os jovens que estão nestas escolas tendem a ser mais participativos do que os jovens que estão em escolas que não implementam esta medida".

Na Noruega, desde 1995 que há um organismo dedicado à iniciativa nos estabelecimentos de ensino, designado Norwegian Centre for Research Data (NSD). A experiência tem um custo total (por ano) de 7 979 000 coroas norueguesas (cerca de 790 mil euros). Se esse modelo fosse "transportado para a realidade portuguesa, onde há mais escolas secundárias e mais alunos", os custos oscilariam "entre cerca de um milhão e um milhão e meio de euros", lê-se no estudo. Já contabilizando com todas as ferramentas necessárias para a realização e análise do projeto: recursos humanos, materiais e a realização de um estudo para medir "a evolução das atitudes e perceções dos participantes".

João Cancela lembra que "as autarquias têm uma posição privilegiada para fazer experiências" neste sentido.

O dia também conta

Mas não é a única possível solução que o estudo apresenta. Também o dia em que decorrem as eleições pode ter influência direta na participação cívica. Escolher um dia do fim de semana em vez de um dia útil é meio caminho andado para menores valores de abstenção, mas o estudo mostra que dar a possibilidade de votar ao fim de semana e simultaneamente à semana pode fazê-los descer ainda mais. "Alguns dos inquiridos nos países onde se vota ao fim de semana prefeririam votar durante a semana e abstiveram-se por não desejarem gastar um dia livre com a votação", diz o documento.

Contudo, esta medida "não é isenta de problemas". Com o alargamento das eleições ao longo de dois dias, a despesa aumentaria, sendo necessário pagar um dia adicional aos membros da mesa. Uma vez que as urnas são colocadas em estabelecimentos públicos, como escolas, esta ideia traria outras barreiras. Além disso, a lei eleitoral estipula que as eleições decorram a um domingo ou feriado, pelo que implicaria também uma mudança no plano jurídico.

Os autores do estudo apontam ainda as eleições simultâneas (para dois ou mais órgãos políticos) como um dos exemplos de sucesso em alguns países, como a Bélgica e a Suécia, mas principalmente a qualidade de informação que chega aos eleitores.

Por outro lado, a obrigatoriedade de voto é apontada por João Cancela como uma das medidas de difícil aplicação na realidade portuguesa. Implementá-lo poderia trazer "uma tensão entre a obrigatoriedade e o princípio da liberdade individual".

Números estão inflacionados

A abstenção pode ser fácil de definir, mas sobre ela ainda são mais as perguntas do que as respostas. Certo é que atinge valores altos, mas os dados estão inflacionados, garante o autor do estudo.

"A taxa de participação tem sido alvo de preocupação, mas também sabemos que está inflacionada. E não é de agora, é de há muito tempo, devido a discrepâncias entre o número de recenseados e às estimativas da população em Portugal", explica João Cancela. Nos últimos anos, a participação pode chegar a ser seis pontos percentuais acima da taxa oficial.

Mas "mesmo descontando esse viés", não há dúvidas de que a taxa de abstenção "continua alta".

Mais pobres são mais propensos a abster-se

Quem são os abstencionistas e aqueles que mais participam eleitoralmente? Este é um retrato de camadas, mas há algumas conclusões a retirar, ainda com a curta experiência de uma democracia jovem, como a portuguesa: os mais desfavorecidos economicamente são mais propensos a abster-se e os mais favorecidos atingem uma maior probabilidade de votar.

Segundo o autor do estudo Abstenção e Participação Eleitoral em Portugal, João Cancela, "até 2002 não havia assimetrias significativas" e a participação dos 20% mais ricos e dos 20% mais pobres mantinha-se próxima. Mas "olhando para os anos mais recentes, começamos a perceber que há aqui um grande fosso" entre uns e outros, explica.

Assimetria puxa assimetria. "Se os mais pobres não votam, caminhamos para uma menor representação política", conclui João Cancela.

É importante não esquecer o que de bom traz a democracia, acrescentava Susana Peralta, professora de economia da Nova SBE, durante o debate que decorreu após a apresentação do estudo. "Aquilo que sabemos é que a democracia é boa. E é boa principalmente por dois motivos: porque ajuda a minimizar os riscos - como a fome, como é o caso da Índia, que diminuiu este risco desde que é uma democracia - e porque dá representação", frisa.

"Sim, o problema não é da democracia". À discussão, moderada pela diretora executiva do DN, Catarina Carvalho, juntou-se Pedro Magalhães, cientista político e investigador no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. "O problema da participação é um problema político. Quanto menos interesses representados tivermos, menos tendemos a participar", acrescenta.

E a principal implicação no facto de os mais pobres decidirem não votar, dando espaço a que a participação fique preenchida pelos mais ricos, "é aquela que todos podemos intuir": "É menos provável que as políticas públicas cheguem aos interesses destas pessoas". "As eleições são o único momento na nossa vida em que o nosso voto vale o mesmo que o das outras pessoas", lembra ainda.

Autárquicas somam mais participação nas zonas rurais

No que toca a votar, a ciência não é plana e os dados variam entre tipos de eleição. De acordo com o estudo, ainda que nas eleições legislativas a participação seja maioritariamente de eleitores de zonas urbanas, nas autárquicas os que mais votam são aqueles que vivem no meio rural.

O documento mostra que nas eleições legislativas de 2009, 2011 e 2015 os níveis mais altos de participação ocorreram no Porto (62,8%), em Braga (62,7%), em Lisboa (61,4%), em Évora (60,3%) e em Santarém (59,3%). Já as regiões dos Açores (41,6%), Bragança (49,9%), Vila Real (50,7%), Madeira (52,6%) e Viana do Castelo (52,8%) foram aquelas onde se registaram os níveis mais baixos de participação nestas eleições.

Contudo, "comparando os valores de participação das eleições legislativas de 2015 e nas eleições autárquicas de 2018, houve 81 municípios em que a taxa de participação foi mais elevada no caso das primeiras; nos restantes 277 municípios, as eleições locais foram mais participadas do que as eleições legislativas anteriores". O que o autor João Cancela justifica com o facto de ser nos meios mais rurais que os autarcas estabelecem uma relação mais próxima com os eleitores.

Certo é que, em ambos os casos, a abstenção continua a atingir valores elevados. E "os esforços para a reduzir a abstenção têm sido baixos", conclui também este estudo.

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