Violência doméstica. É urgente manual para proteger vítimas nas 72 horas após a denúncia

Equipa que avalia crimes de homicídio em contexto de violência doméstica volta a chamar a atenção do Governo para a necessidade de harmonizar os procedimentos das autoridades.

É "urgente" elaborar um manual que harmonize a atuação das polícias nas 72 horas seguintes a uma denúncia de maus tratos. A entidade que avalia os homicídios em contexto de violência doméstica já o tinha dito e, no relatório de atividades de 2019, volta a destacar esta proposta que foi, aliás, objeto de uma resolução do Conselho de Ministros há seis meses.

A atribuição de urgência à elaboração deste manual, com vista uma melhor proteção e apoio à vítima, foi referida no relatório de dezembro quando a Equipa de Análise Retrospetiva de Homicídio em Violência Doméstica avaliou as circunstâncias da morte de Maria (como o DN lhe chamou), uma mulher de 50 anos que foi encontrada na cama, morta pelo homem com quem viveu 30 anos, sempre vítima de violência e que a própria comunidade legitimava porque era sabido que consumia álcool. Neste caso, refere-se que que há registo de três inquéritos por violência doméstica, todos arquivados. De resto, todos os serviços que tiveram o processo em mãos falharam - a GNR, o Ministério Público, a Segurança Social, o centro de Saúde e até a Rede de Nacional de Apoio às Vítimas de Violência Doméstica.

"Trata-se de um procedimento que está previsto na lei - a atuação imediata quando há conhecimento de uma situação de violência doméstica para que se acautele a curtíssimo prazo a proteção da vítima e se tomem medidas para a preservação da prova e para a contenção do agressor", destaca Rui do Carmo que, além da Equipa de Análise Retrospetiva de Homicídio em Violência Doméstica (EARHVD), liderou também a comissão técnica multidisciplinar para a melhoria da prevenção e combate à violência doméstica que colocou esta questão como uma medida premente. Que viria, aliás, a ser adotada por uma resolução do Conselho de Ministros de julho do ano passado, e publicada em agosto, como resposta ao elevado número de vítimas mortais de violência doméstica registado logo no início do ano.

A necessidade de criar um manual que harmonize as atuações das autoridades e melhorem a articulação entre as forças de segurança, magistrados e organizações não-governamentais, lembra Rui do Carmo, "resulta da importância que o próprio primeiro-ministro lhe deu quando determinou que era um dos pontos prioritários a tratar". Depois das propostas da comissão técnica multidisciplinar foi constituído um grupo de trabalho que elabore o manual. "Era uma questão importante que fosse resolvida."

Acompanhamento continuado das vítimas

E porque muito tem falhado na troca de informações entre as diversas entidades envolvidas, a EARHVD destaca ainda a recomendação já dirigida às estruturas de atendimento da Rede Nacional de Apoio às Vítimas de Violência Doméstica (RNAVVD) e ao Instituto da Segurança Social, para que promovam o acompanhamento continuado e a monitorização das vítimas de violência doméstica, independentemente de terem apresentado denúncia criminal e ou de viverem com o agressor, averiguando a (des)continuidade das agressões e a necessidades de proteção, apoio e assistência.

Ainda no âmbito da cooperação entre diferentes entidades, há uma recomendação dirigida à Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP) e às entidades integradas na Rede Nacional de Apoio às Vítimas de Violência Doméstica. E vai no sentido de que, quando no decurso da suspensão provisória de processo penal o arguido for acompanhado pela DGRSP e a vítima for acompanhada pela rede, seja ponderada a necessidade de ambas se articularem - no sentido de se implementar uma estratégia conjunta e complementar com base no conhecimento que cada uma das entidades tem sobre o agressor e a vítima.

Sigilo sobre casas de abrigo não pode ser quebrado

A EARHVD recomenda ainda "que todas as entidades que intervenham no processo penal, a qualquer título, preservem sempre, por óbvias questões de segurança, o sigilo da localização das respostas de acolhimento de vítimas de violência doméstica, assim como qualquer informação desnecessária que possa afetar o trabalho dos/as técnicos/as que aí desempenham funções".

Num dos casos analisados pela EARHVD, explica Rui do Carmo, havia indicações que permitiam identificar a casa de abrigo. A equipa considerou que, mesmo sendo caso isolado, a verificar-se noutras situações seria extremamente grave. "Por isso fizemos essa recomendação, porque esses lapsos não podem acontecer. À primeira brecha, a nossa preocupação foi alertar logo, para evitar que essas situações se generalizem."

Dificuldades: falta de informação e de feedback

A Equipa de Análise Retrospetiva em Homicídios de Violência Doméstica refere ainda "sinais de preocupação" que, no seu entender, é preciso ultrapassar. Um deles é a falta de feedback por parte das entidades e serviços sobre as recomendações que lhes são dirigidas no sentido de serem colmatadas as falhas encontradas na sua atuação e que levaram ao desfecho dos casos - homicídio ou tentativa de homicídio.

"Há um escasso retorno da forma como são recebidas as recomendações e o que se tem feito ou não no sentido da sua implementação. É bom que tenhamos uma reação por parte das entidades a que se destinam para que possamos estabelecer um processo dialético de implementação. Por outro lado, se forem recebidas positivamente também é bom sabermos o que foi feito para a sua implementação porque isso ajuda-nos em análises futuras quanto aos passos que estão a ser dados para ultrapassar as dificuldades", refere o presidente da EARHVD.

Rui do Carmo sublinha que nunca houve qualquer reação não amistoso ou de oposição às recomendações, mas também faz questão de dizer que o pouco feedback que tem "é resultante da nossa proatividade de contacto".

A Equipa de Análise Retrospetiva de Homicídio em Violência Doméstica foi criada em 2017 e já avaliou oito processos - começa o ano de 2020 com cinco processos em mãos. Uma das dificuldades com que se tem deparado, e que preocupa os seus responsáveis, tem a ver com o incumprimento da obrigatoriedade dos tribunais lhe comunicarem os despachos de arquivamento e não pronuncia, bem como as decisões finais transitadas em julgado - são estas últimas que são analisadas pela EARHVD.

Em 2018 foram recebidas nove comunicações "resultantes, na sua maioria, da proatividade da Equipa na identificação dos casos", mas no ano passado esse número foi drasticamente reduzido a duas. Como a EARHVD não é obrigada a debruçar-se sobre todos os casos de homicídio em contexto de violência doméstica, a falta de um visão global acaba por prejudicar a seleção dos mais relevantes, refere o procurador.

"É o cumprimento desse preceito legal que nos permite ter um completo conhecimento das decisões definitivas que são tomadas e que nos permitem avaliar a necessidade de fazer a análise desses casos. Se não tivermos essa informação por sistema, significa que não temos capacidade de ter uma visão completa das decisões tomadas em cada ano e isso tem efeitos sobre a análise que se faz", explica Rui do Carmo.

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