"Vamos admitir a Rui Pinto o que não admitimos à polícia?"

Nos últimos anos, sobretudo desde que Snowden revelou a máquina global de<em> hacking</em> dos EUA, a proteção da privacidade e o limite dos poderes do Estado são cavalo de batalha nas democracias. O caso Rui Pinto vem baralhar tudo: afinal é bom alguém, desde que não a polícia ou as secretas, ter acesso irrestrito?
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"Nós hackamos toda a gente em todo o lado. Gostamos é de fazer uma distinção entre nós e os outros."

As palavras são de Edward Snowden em junho de 2013, em entrevista ao Guardian, uma semana após ter começado a revelar provas de que os serviços secretos dos EUA, para os quais trabalhara, tinham o mundo inteiro sob vigilância. A resposta em causa refere-se aos protestos dos EUA (o "nós") contra a intrusão da China nas comunicações mundiais, e é sobre o clássico problema dos dois pesos e duas medidas, e sobre como se consideram as intrusões boas ou más consoante quem as leva a cabo - o nosso clube ou o outro.

Na mesma entrevista, Snowden, que nestes seis anos e meio não perdeu a aura de santo padroeiro dos whistle-blowers (denunciantes), dizia também: "A NSA (Agência Nacional de Segurança americana) construiu uma infraestrutura que lhe permite intercetar praticamente tudo. Com esta possibilidade, a grande maioria das comunicações humanas estão automaticamente abrangidas sem serem alvo específico. Se eu quiser ver os seus e-mails ou o telefone da sua mulher, só tenho de usar essa estrutura. Posso aceder aos seus e-mails, passwords, dados telefónicos, cartões de crédito. Não quero viver numa sociedade que faz este género de coisas... Não quero viver num mundo onde tudo o que digo e faço é gravado. Não é algo que eu esteja disposto a aceitar."

Edward Snowden é um whistle-blower clássico, do tipo que está previsto e protegido em diretivas europeias em vigor: como membro de uma organização, soube de factos ilegais que considerou ser seu dever denunciar. Para isso, arriscou a vida e a liberdade, condenando-se a um exílio provavelmente perpétuo em nome da luta contra a hipervigilância determinada pelos estados; contra a ideia de que em nome da segurança e da luta contra o terrorismo, a criminalidade altamente organizada e outras ameaças, e numa espécie de "prevenção" permanente, os estados têm o direito de ver, ouvir, ler e saber tudo, e que malgrado leis e proteções constitucionais mais ou menos garantísticas na prática nenhuma comunicação está a salvo.

"Daqui a pouco estamos a defender a tortura"

Cinco anos depois, o mundo deparava-se com um paradoxo: um português a viver na Hungria, chamado Rui Pinto, usava os mesmos instrumentos denunciados por Snowden como inadmissíveis no Estado - o hacking e a intrusão digital ilegais - para revelar negócios escuros, fraudes, fugas aos impostos e outros segredos no mundo do futebol, nas fugas crismadas de Football Leaks. Uma espécie de Robin dos Bosques da era digital, roubando informação aos ricos para revelar aos pobres, e que acabaria por ser detido em janeiro de 2019, ao abrigo de um mandado internacional.

Agora, depois de quase um ano de prisão preventiva e de pronunciado por dezenas de crimes, incluindo tentativa de extorsão, para além de acesso ilegítimo e indevido a sistemas informáticos e e-mails, o mesmo jovem, cara de criança e cabelo espetado com gel, assumiu ser o autor do Luanda Leaks. A "fuga" de mais de 700 mil documentos e ficheiros que revelou provas danosas sobre os negócios de Isabel dos Santos, filha do ex-presidente de Angola José Eduardos dos Santos, a forma como usou a sua ligação ao poder para construir a sua fortuna e alguns dos nomes dos que, em empresas de consultadoria, bancos e sociedades de advogados, nisso a ajudaram.

Em poucos dias, o Luanda Leaks, via a publicação do trabalho de investigação de dezenas de jornalistas com base nos documentos da fuga, tinha já levado à saída de Isabel dos Santos de várias empresas, a demissões, desvinculamentos e cortes de relações estratégicos, e à constituição da filha do ex-presidente angolano como arguida pela justiça angolana, assim como vários colaboradores seus.

Em Portugal e fora de Portugal há quem, como a socialista e ex-eurodeputada Ana Gomes, atribua a Rui Pinto o estatuto de whistle-blower da casta de Snowden, clame que é vergonhoso mantê-lo preso e que a justiça portuguesa deve pedir-lhe ajuda. Mesmo quem, como o comentador Miguel Sousa Tavares, o apelide de "preso político", defenda que devia ser condecorado e convidado a trabalhar para a PJ, onde "devia dirigir investigações". Mas há também quem resolutamente lhe negue esse estatuto e veja "um enorme perigo" na defesa do que ele fez.

É o caso do penalista e professor na Faculdade de Direito da Universidade Católica do Porto, Rui Silva Leal: "Imagine que tem no seu computador determinadas informações e um hacker entra nele. Se encontrar algo que constitua crime essa prova pode ser usada num processo? E se for a polícia a fazer o mesmo, sem ordem do tribunal, isso é o quê? Eu respondo, é ilegal. Então vamos admitir ao hacker o que não admitimos à polícia? O grande argumento para mim é isto: se a polícia fizer isto sem autorização de um juiz, é prova proibida, não pode ser usada. Por que carga de água se for um Rui Pinto a fazê-lo vamos admiti-la?"

É que, prossegue este jurista e membro do Conselho Superior do Ministério Público, "uma coisa são os jornalistas, que usam e podem usar esse tipo de informação, outra coisa é a justiça. Repare: daqui a pouco estamos a defender a tortura. Porque se pela tortura podemos chegar às provas, porque não usar a tortura?"

"É perigosíssimo que se admita usar provas obtidas ilicitamente"

A analogia está longe de ser disparatada, certifica. O artigo 32.º da Constituição, cuja epígrafe é "Garantias de processo criminal", estabelece no seu número 8 que "são nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coação, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações".

É pois a lei fundamental que coloca a proteção da privacidade e da segurança das comunicações no mesmo plano da proteção contra a tortura: porque é de direitos fundamentais que se trata. Garantias que se reforçam no artigo 34.º, no respetivo número 4: "É proibida toda a ingerência das autoridades públicas na correspondência, nas telecomunicações e nos demais meios de comunicação, salvos os casos previstos na lei em matéria de processo criminal."

Este artigo esteve em xeque na recente análise, no verão de 2019, pelo Tribunal Constitucional da chamada "lei dos metadados", na qual se previa que em determinadas circunstâncias, e com o objetivo de combater terrorismo e outros crimes "maiores", as secretas pudessem aceder a dados de tráfego e localização de comunicações fora do clássico processo criminal. Na sua maioria, as normas em apreço foram chumbadas. Ou seja, manteve-se genericamente a condição de mandado judicial para a intrusão nas telecomunicações.

É que, frisa Rui Silva Leal citando o penalista Costa Andrade, atual presidente do Tribunal Constitucional, "o Estado não pode tentar obter prova a todo o custo, e não pode admitir-se que o Estado chegue à prova de um ato ilícito através de meios ilegais". Seria o caso se a justiça portuguesa usasse aquilo que Rui Pinto obteve? "Acho perigosíssimo que se entre em caminhos destes e se admita usar provas obtidas ilicitamente."

Mas há uma outra possibilidade: as autoridades, agora que sabem que uma determinada prova existe e onde, podem ir buscá-la.

"Se alguém através de devassa ilegal descobrir onde está um cadáver e me disser 'foi ali cometido um homicídio e o corpo está ali' eu posso usar isso, recolher as provas, só não posso usar é a fonte. Se se confirmar que aquilo existe, bom, então a devassa foi útil." Quem fala é um magistrado do Ministério Público que prefere não ser identificado.

Mas não se trata num caso destes de encontrar cadáveres: estão em causa documentos, e-mails: informação. Podem as autoridades usar esses documentos obtidos ilegalmente sem mandado? O procurador hesita. "Se uma escuta é ilegal não vale, um documento obtido ilegalmente também não. O que têm de fazer as polícias ou o MP é pegar nesse conhecimento e ir recolher provas legais de que isso aconteceu. Como disse o presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, António Ventinhas, à Rádio Observador, se queremos trabalhar na investigação criminal e queremos fazê-lo dentro das regras e de uma forma legal, tudo o que venha de uma pesquisa ilegal tem de ser escrutinado e corroborado por uma pesquisa legal."

"Não digo que não é um hacker, ou não deva ser julgado"

Rui Silva Leal discorda veementemente. "A justiça não pode usar esse conhecimento. É o chamado fruto da árvore venenosa, porque teve conhecimento por prova inquinada. Não pode saber que há um determinado e-mail nos servidores de uma sociedade de advogados e ir lá fazer buscas à procura dele."

Aliás, argumenta este vice-presidente da Ordem dos Advogados, abrir-se-ia caminho à utilização de agentes provocadores: "Se pudesse ser assim, a justiça usava alguém para fazer as intrusões e encontrar provas e depois de saber quais são e onde estão ia lá buscá-las. Não, não. Não podemos dizer 'a lei é isto mas vamos fazer outra coisa'. Se fosse magistrado nunca permitiria isto. A lei é clarinha como água. Até permite que mesmo depois do processo acabado ainda se possa pedir recurso de revisão invocando prova proibida."

Mas há forma de "desrevelar" o que foi revelado? Pode a justiça ignorar as provas ou alegadas provas que foram sendo publicadas?

"As provas estão no domínio público", estabelece Ana Gomes. "O MP tem de abrir inquérito e investigar. As autoridades não podem desconhecer o que está no domínio público." Mas a ex-eurodeputada não defende que tal implique um "perdão" a Rui Pinto. "Não digo que ele não é um hacker, ou não deva ser julgado ou responsabilizado. O tribunal deve avaliar se cometeu crimes, não sou fundamentalista. A questão é se ele não deve ser convertido num amigo da justiça."

A ex-embaixadora de Portugal em Jacarta vê aliás no comportamento da justiça portuguesa "dois pesos e duas medidas na valoração dos documentos que ele pôs cá fora. Em relação ao Footbal Leaks não se interessou e agora com o Luanda Leaks já se interessa".

"Deixámos de nos preocupar com os meios?

Como alguém que se bateu contra os chamados voos da CIA, os quais, ao arrepio da lei e das convenções internacionais e em nome do combate ao terrorismo, transportavam prisioneiros suspeitos de terrorismo para locais onde eram torturados, e pugna geralmente pela defesa dos direitos humanos contra os poderes dos estados e poderes económicos, por exemplo no que se refere a proteção de dados, não está Ana Gomes a evidenciar, no caso de Rui Pinto, os mesmos "dois pesos e duas medidas" de que acusa a justiça portuguesa? A violação das leis e dos direitos fundamentais, nomeadamente em matéria de intrusão, é para combater e denunciar se for levada a cabo pelos estados ou empresas mas pode ser perdoada ou até aplaudida no caso de um hacker como Rui Pinto? Onde ficam os direitos fundamentais aí?

"Não há direitos que não tenham limites", responde a ex-eurodeputada, que tem pugnado por que Rui Pinto seja, como whistle-blower, alvo da proteção contra "quaisquer ameaças ou atos hostis" prevista na Diretiva Europeia contra o Branqueamento de Capitais e Financiamento do Terrorismo.

Lembrando que trabalhou "na proteção de dados mas também nas comissões de inquérito", Ana Gomes assegura não ser fundamentalista. "Por exemplo, defendo que deve haver acesso a metadados mas através da decisão de um juiz. Estamos perante dilemas muito complicados de resolver, e muito reais, e temos leis obsoletas face à era digital."

O magistrado ouvido pelo DN concorda no que respeita à complexidade das questões em apreço. "Temos hoje ao nível do direito europeu normas supraconstitucionais, sobretudo ao nível do combate contra organizações terroristas, que preveem meios como buscas a meio da noite que na nossa lei não são admissíveis. Estamos num momento em que temos de pensar como vamos manter os direitos fundamentais de privacidade e de intimidade, e usar o computador e os telefones e tudo isso de uma forma em que nos sintamos livres, combatendo os crimes mais graves sem estar a invadir a vida de 99% das pessoas."

Mas uma coisa, sublinha, é a lei, outra é "aceitarmos que alguém entre nos nossos computadores e telefones, por melhores intenções que tenha, sem qualquer mandado judicial. Que ande a devassar, e em encontrando uma coisa ou outra, que pode ser interessante para a investigação, tenha proteção graças a isso. Não contesto a existência de um consórcio internacional de jornalistas a trabalhar com isso. Mas se me colocar do ponto de vista da minha profissão - trabalho no MP e a Constituição e as leis são o que eu jurei respeitar - é com os mecanismos legais que lá vamos. Ou deixámos de nos preocupar com os meios?".

Reflete: "Para mim, como cidadão, Snowden revelou coisas que me parecem muito importantes. E como jurista a ideia de um Estado vigilante, Big Brother absoluto, não me agrada. Quem é que iria dominar esse equipamento para apanhar tudo? A ideia de que poderá um dia haver um poder suficientemente isento e sério que queira apanhar tudo o que é criminal e nada do que é o resto é uma ideia bonita mas estamos a umas boas gerações de lá chegar. E do ponto de vista da educação cívica deveríamos todos saber pôr-nos no lugar de quem está a ser queimado na fogueira. E pensar: se fosse eu queria ter ou não garantias legais, um juiz a decidir? As coisas têm de ter regras. E ainda não inventámos melhores."

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