Silêncios ensurdecedores em tempos sombrios
"Volta! Espera! Por que açoitas a humanidade com a Guerra, a Peste e a Fome?!
Pergunta o Arcanjo ao Diabo
"Os portais das trevas estão abertos, e as sombras dos mortos vagueiam pela Terra..."
Faust - Eine Deutsche Volkssage (Fausto - Um Conto Popular Alemão - 1926) de F. W. Murnau
A expressão "tempos sombrios" tem uma história densa, ou não fosse ela cunhada por Bertolt Brecht no seu poema An die Nachgeborenen (1939 - "À posteridade"/"Aos que vierem depois de nós"): "Wirklich, ich lebe in finsteren Zeiten!" ("Realmente, eu vivo em tempos sombrios!" - tradução nossa). Também foi usada por Hannah Arendt para justamente intitular uma das suas obras - Homens em Tempos Sombrios (1960). Se a precedermos do oximoro "silêncios ensurdecedores", então o nosso título já indica que a nossa visão do mundo, assim como a grande apreensão que experienciamos face ao tempo pesado que estamos a viver, afirma-se deveras pessimista senão mesmo trágica.
O tema dos "silêncios ensurdecedores" adquire uma sensação mais estranha se for colocado sob a proteção do deus Pã da mitologia grega, que significa "natureza viva" e também a encarnação do Universo (o Todo), particularmente sob um dos seus atributos, que é o de provocar pânico e terror repentinos pela sua turbulência endógena. Por isso é que Pã é um deus perturbador do espírito e enlouquecedor dos sentidos (parentesco com Dioniso). Perceber-se-á então que os silêncios nestes tempos sombrios e incertos não poderão deixar de ser ameaçadoramente ensurdecedores e paradoxalmente monótonos: "E que nada é menos espetacular que um flagelo e, pela sua própria duração, as grandes desgraças são monótonas. Na lembrança dos sobreviventes, os dias terríveis da peste não surgem como grandes chamas intermináveis e cruéis e sim como um interminável tropel que tudo esmaga à sua passagem" (Albert Camus, A Peste, 1947). Uma das facetas do pânico é o medo, o outro é a ansiedade, espoletados por um objeto que atualmente identificamos com a covid-19. O medo de ser infetado, com as consequências funestas que daí podem advir, faz-se acompanhar por silêncios ensurdecedores que deixam as suas vítimas paralisadas de uma palidez moribunda e esvaziadas de amor e de afetos: "A peste, diz Albert Camus na sua obra A Peste, é preciso que se diga, tirara a todos o poder de amar e até mesmo da amizade. Porque o amor exige um pouco de futuro e para todos nós só havia instantes". Um silêncio contrariado, imposto, sempre recusado, sempre exorcizado, por aqueles e aquelas que teimam em viver apressadamente. E quando confrontados com um revés imenso, corporizado nada mais nada menos que por um morto-vivo, se confinaram num ritmo dolorosamente lento e já há muito esquecido pela voracidade de vidas corridas quantas vezes sem destino e despidas de história(s) sentida(s).
Silêncios vividos e experienciados de modo assustado à semelhança daqueles que atravessavam as entranhadas florestas de uma Grécia mítica sob a gritaria ruidosa e estridente de Pã, o protegido de Dioniso, também ele o deus ruidoso e tumultuoso. Não há um silêncio que seja adequado para ser vivido em tempos incertos, na medida em que o silêncio que importa, o silêncio interior; é sempre uma qualidade rara e única, própria de um regime da alta espiritualidade, que nunca se compagina com tempos sombrios e de incertezas múltiplas, de espaços corridos, de paisagens virtuais, de solidões várias e de medos gélidos. Medos, vividos em solidão, que nos empurram para pensamentos depressivos, onde a morte e o suicídio nunca estão longe. É, portanto, assim que o deus Pã aparece destilando o medo e o pânico, já não naqueles que atravessam o seu domínio de uma natureza agreste, mas em todos os que vivem como que emparedados, agoniadamente assustados e em pânico, nas suas casas, ou, por vezes, atravessando ruas quase desertas e silenciosas. Um silêncio estranho, nada comum, e anunciador de tempestades varredoras de universos familiares. O mais duro de suportar é este tipo de silêncio gélido, desencarnado e não abraçado: um tipo de silêncio que muito se estranha, que muito assusta, que muito pânico causa, mas que nunca apazigua, antes se entranha à semelhança dos dentes pontiagudos de Drácula cravados no pescoço de Lucy ou de Mina. Nestes tempos sombrios todos somos Lucy ou Mina, fragilizados, expostos a um vampiro simultaneamente distante mas cruelmente tão próximo como é o caso deste coronavírus tão micro, aparentemente tão frágil, que se desvanece com a espuma de um mero sabão vulgar, mas impiedosamente tão sinistro como malévolo. Se assim, à primeira vista, ele parece tão frágil, não deixa, contudo, de ser tão terrivelmente ameaçador como tão teimosamente invisível. Hóspede indesejado que ousa aparecer sem ser convidado e, num tom jocoso, ousa mesmo sentar-se nos nossos corpos, banqueteando-se e deliciando-se sadicamente com a nossa dor, com a nossa infelicidade, com os nossos medos mais ancestrais. Um coronavírus que se senta e adormece dentro de nós corroendo as nossas entranhas, esventrando-nos lentamente num silêncio, também ele ensurdecedor: silêncio de chumbo, "lutuoso" (trauervoll cujo equivalente inglês seria mournful), longo, demasiado longo que se confunde com uma eternidade agora tão próxima de realizar-se num presente eterno. Como uma alma danada, essa sinistra monstruosidade vampírica, nem viva nem morta, arranca-nos a(s) nossa(s) esperança(s) empalidecida(s) à(s) qua(l)is teimamos obstinadamente em nos agarrar, fazendo lembrar Robinson Crusoe, de Daniel Defoe (1719), para não enlouquecermos de uma dor tão desesperada como impotentemente desastrada. E, por falar de Crusoe, porque não recordarmos Um Diário do Ano da Peste (A Journal of the Plague Year - 1722) do mesmo autor que, num misto de jornalismo e de ficção, nos brinda com uma reconstituição do fatídico verão de 1665, quando a peste bubónica, também conhecida pela Grande Peste de Londres (1665-1666), assolou a cidade, tendo vitimado entre 75.000 e 100.000 dos seus habitantes, ou seja, um quinto da população, não esquecendo também, en passant, a peste de Marselha, de 1720. O autor falava desta peste como uma calamidade terrível, que se estendia com tanta rapidez que se tornava quase impossível detê-la, que com ela trazia desolação, abatimento e desespero: uma calamidade que assolava "toda a cidade e cuja gravidade, como se não bastasse em si mesma, foi talvez muito aumentada pelos meus receios, tanto quanto pelos dos outros". Mais adiante assim escrevia: "Os gritos de mulheres e crianças nas janelas ou nas portas das casas onde os seus familiares mais queridos estavam a morrer ou já mortos eram ouvidos com tanta frequência que eram suficientes para trespassar o coração mais forte do mundo. Em quase todas as casas se ouviam lágrimas e lamentos, especialmente nos primeiros dias da epidemia, porque nos últimos tempos os corações se endureciam e a morte tinha-se tornado uma visão tão comum que ninguém se preocupava demasiado com a perda de um amigo, na expectativa de sofrer a mesma sorte em qualquer momento". Não podemos deixar de constatar que a atualidade das descrições por si registadas ao longo do seu Diário muito nos impressionam, não só pelo seu realismo cruel como pela sua semelhança com tudo aquilo que estamos tão dilaceradamente a viver, prisioneiros de uma impotência tão trágica como patética, que nos aproxima do desespero fáustico que adiante evocaremos.
O deus Pã faz o seu regresso Drácula acompanha-o. Um "admirável mundo novo" parece abrir-se diante de nós, uma peste avassaladora inunda-nos até aos lugares mais recônditos dos nossos corpos que até há pouco tempo desposavam as glórias vãs de imortalidades terrestres anunciadas por um Frankenstein, filho pródigo de sonhos trans-humanistas tresloucados. Tanta glória vã, novos deuses imortais na terra, fazendo inveja a um já pálido e quase esquecido Prometeu, cantada por uma humanidade fáustica condenada a morrer ingloriamente nas garras pontiagudas de um monstro, qual Hidra de Lerna, diabólico e petrificado silencioso. E, mais uma vez, um silêncio ensurdecedor acontece e percorre aqueles que esperam a morte, bem como todos aqueles que para ela se preparam sem disso o saberem. E tantos outros que se lhes sucederão numa relação irreal, fantasmagórica com a vida, numa espera desesperadamente angustiante de desconhecerem o dia e a hora da chegada do vivo-morto: "o bacilo da peste não morre nem desaparece nunca, pode ficar dezenas de anos adormecido (...) O flagelo não está à altura do homem; diz-se então que o flagelo é irreal, que é um sonho mau que vai passar. Mas nem sempre ele passa e, de sonho mau em sonho mau, são os homens que passam (...) Mesmo depois de o Dr. Rieux ter reconhecido, diante do amigo, que um punhado de doentes dispersos acabava de morrer da peste. Sem aviso, o perigo continuava irreal para ele" (Albert Camus. A Peste, 1947).
Todos somos peregrinos, alguns já tristemente moribundos, numa vida tornada num Hades sombrio e desolador, qual terra de cinzas, silenciosamente desencarnada. Tudo nos parece estranhamente irreal. Exceto o medo, que nos atravessa cruelmente, mesmo que imaginariamente, fazendo-nos temer sermos as próximas vítimas de uma Besta sanguinária. Ao medo junta-se igualmente o pânico, que também nos invade e que paulatinamente nos prepara para provarmos um medo ainda maior porque sabemos que a Besta, mais cedo ou mais tarde, nos vencerá na última partida de xadrez que com ela somos forçados a jogar e a seguir nos devorará. Um jogo que evoca uma das cenas mais emblemáticas da filmografia bergmaniana no seu filme O Sétimo Selo (1957), em que o cavaleiro joga o xadrez com a própria morte a fim de ganhar mais um tempo de vida. A sua foice erguida, o seu rosto esbranquiçado e amarelecido, por terem já atravessado séculos de existência, olham-nos concupiscentemente enquanto o desejo aparece refletido nos seus olhos flamejantes e anunciadores de terrores inusitados. E assim a Morte silenciosa, tão temida como admirável, é anunciada contra a nossa vontade pela simples razão de que todos, tal como Fausto confessou, temos um enorme e inequívoco medo de morrer. Todos sabemos que não somos imortais, por mais pactos que façamos com o Diabo (recordando a cena emblemática do célebre pacto que Fausto assina, no Fausto de Murnau (1926), com o próprio Mefisto-Diabo), mas todos perfilhamos a ilusão dessa mesma imortalidade onde a nossa hora será sempre adiada, seja por um pacto sonhado ou por uma jogada do Rei.