"Secos e molhados". O único dia em que a PSP usou canhões de água - e contra a própria PSP

Três décadas após a manifestação conhecida por "secos e molhados" foram muitos os direitos conquistados pelos polícias, inclusive a liberdade sindical que permitiu o número excessivo de 17 sindicatos na PSP para um efetivo de cerca de 20.000 elementos.
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Há 30 anos uma manifestação de polícias foi reprimida com bastonadas, cães e canhões de água, ficando conhecida como "secos e molhados". Os polícias manifestaram-se para exigir, sobretudo, liberdade sindical, uma folga semanal, transparência na justiça disciplinar com direito de defesa, melhores vencimentos e instalações.

Atualmente, num universo de cerca de 20.000 polícias, existem 17 sindicatos na polícia com cerca de 4.000 dirigentes e delegados que, em 2017, tiveram mais de 36 mil dias de folga.

O 21 de abril de 1989 no centro de Lisboa está ainda hoje na memória de muitos polícias, especialmente as "imagens" dos canhões de água a tentar dispersar a manifestação. Nunca os canhões tinham sido usados contra pessoas, nunca mais os canhões foram usados contra pessoas.

Sem canhões de água, os polícias estiveram de novo frente a frente, em tensão mas sem confrontos, em novembro de 2013, quando sindicatos e associações das forças de segurança se manifestaram junto à Assembleia da República e invadiram a escadadaria. O episódio acabaria por resultar na demissão do então diretor nacional da PSP, Paulo Gomes. Era ministro da Administração Interna Miguel Macedo, no governo de coligação PSD/CDS.

Um "seco" e um "molhado" voltaram juntos à praça do Comércio. Álvaro Marçal, 59 anos, entrou para a PSP em 1983 e estava no Corpo de Intervenção com ordens para bater. Alberto Filipe, também 59 anos, integrava o grupo que saiu para protestar.

Marçal recorda que nunca no seu tempo foram usados canhões de água, uma informação que Paulo Rodrigues, presidente da Associação Sindical de Profissionais de Polícia (ASPP), o mais representativo da força se segurança, precisa: os canhões de água da PSP só foram usados uma vez, contra a própria PSP.

Um "silêncio pesado"

No CI "havia um ambiente de silêncio", especialmente por parte dos que faziam parte do movimento a favor da associação socioprofissional, acrescenta Álvaro Marçal, também ele um dirigente do movimento então liderado pelo subchefe José Carreira.

Na Praça do Comércio lembra o ambiente de tensão vivido dentro do CI, onde se admitia o absurdo de serem chamados para ir ao Terreiro do Paço fazer não sabiam o quê. Marçal estava de serviço, era o comandante da primeira secção do Pelotão de Alerta Máximo, de elevada prontidão. E à hora de almoço, com os noticiários, aumentou a tensão, até porque Álvaro Marçal não tinha informações sobre o que se passava no exterior.

À tarde, como temiam, conta Marçal com emoção, o CI formou "o maior dispositivo de ordem pública" de que se lembra, até com colegas que não faziam parte do dispositivo operacional. E saíram para o Terreiro do Paço, a calçada da Ajuda cheia de viaturas, a tensão a aumentar dentro delas. "No trajeto não falávamos, olhávamos para o chão, um silencio pesado. Foi um trajeto muito difícil".

A manifestação acabou com confrontos com o CI a lançar jatos de água e a usar bastões para dispersar o protesto dos polícias, na praça do Comércio, em Lisboa, enquanto os seis agentes da delegação que estava dentro do Ministério da Administração Interna para entregar um caderno reivindicativo acabaram detidos.

Por esta altura Alberto Filipe já descia do salão da Voz do Operário, no bairro da Graça, em direção à praça do Comércio. Era justa a luta, havia instituições e setores da sociedade "já com os seus direitos devidamente defendidos, como a PJ, a guarda prisional, os funcionários públicos tinham o sábado e o domingo de descanso". E a PSP tinha duas folgas por mês.

Cães-polícia confusos

"Chegados à praça do Comércio juntamo-nos bem afastados do MAI, sem impedir o trânsito, sem gritar palavras de ordem, simplesmente, enquanto os colegas da delegação se dirigiam ao MAI. Aguardámos serenamente a conversar".

Alguns sabiam que os colegas do CI estavam à espera. E todos, polícias, dirigentes das centrais sindicais (Torres Couto pela UGT e Carvalho da Silva pela CGTP) e outros apoiantes, como o juiz Bernardo Colaço, que defendia o direito associativo dos polícias, souberam a seguir da pior maneira.

Marçal soube que os polícias tinham chegado á praça quando ouviu barulho de palmas. E recebeu ordem para sair, para formar e para avançar. "Passámos em frente do MAI e progredimos em passo lento. É preciso dizer que mais à frente já tinham vindo os carros da água, o primeiro dispositivo da ordem pública que atua nesse dia, como forma de através da água os colegas saírem do local".

E as brigadas com os cães também lá estavam já, os cães confusos com tudo aquilo, um deles acabando por morder num manifestante e no próprio tratador.

Nessa altura o grupo que Marçal comanda já está na praça. "Percebo claramente que os colegas não saiam dali, apesar dos canhões da água, apesar da chuva, apesar dos cães. Tudo era profundamente estranho".

CI e manifestantes acabaram todos misturados "numa confusão tremenda". Alberto Filipe lembra-se dessa confusão, dos jatos de água primeiro, da "cerca de meia hora" que manifestantes e CI estiveram a conversar. E lembra-se da segunda força.

Muita desorientação e muita revolta

O comando da PSP enviou um segundo grupo e esse carrega de facto sobre os manifestantes e acaba com a concentração. Dentro do MAI os seis polícias são presos (seriam libertados por um juiz no dia seguinte). E na praça, diz agora Alberto Filipe, havia muita desorientação, "muita revolta", muitos colegas levaram a mão à arma. "Podia ter acontecido um banho de sangue".

Diz Álvaro Marçal: "não havia, como nunca houve, necessidade". "Foi um absurdo, foi um erro tático brutal, perfeitamente lamentável, uma ação política profundamente descabida e desenquadrada". Mas, acrescenta o actual adjunto do comandante da esquadra da PSP de Portalegre, o que aconteceu foi decisivo para se criar no parlamento a lei que permitiu a constituição das associações socioprofissionais. Porque antes "ninguém nos ouvia, tudo era proibido".

Na altura, os polícias não podiam sindicalizar-se, existindo ilegalmente a Associação Pró-Sindical da PSP, que mais tarde veio a constituir-se na ASPP. Um ano após a manifestação dos "secos e molhados", e já com o Governo PS liderado por António Guterres, foi aprovada a lei do associativismo da PSP e só em 2002 a lei do sindicalismo.

Do 8 ao 80

Atualmente, num universo de cerca de 20.000 polícias, existem 17 sindicatos na polícia com cerca de 4.000 dirigentes e delegados que, em 2017, tiveram mais de 36 mil dias de folga.

Segundo dados disponibilizados pela direção nacional da PSP à Lusa, há sindicatos com o mesmo número de associados e de dirigentes e delegados sindicais, existindo ainda duas estruturas com 26 e 37 associados.

Para limitar os créditos sindicais na PSP o Governo aprovou há mais de dois anos uma nova lei que regula o exercício da liberdade sindical da PSP, estando atualmente na Assembleia da República em apreciação na comissão da especialidade. A proposta de lei necessita de maioria de mais de dois terços para ser aprovada no parlamento, tendo o PS e PSD preparado um texto de substituição.

O presidente da ASPP defende a revisão da lei sindical, observando que se "nada for feito será um prejuízo para os polícias". "Chegou-se a este ponto que é completamente ridículo [número elevado de sindicatos] e até um desrespeito para com os polícias que fizeram os 'secos e molhados'", disse Paulo Rodrigues, sublinhando que foi conseguido "um instrumento importante", que depois não foi aproveitado.

Paulo Rodrigues frisa que "há uma descredibilização dos sindicatos da PSP devido ao seu número", uma "proliferação" que "criou instabilidade, reduziu peso negocial e tirou forças aos sindicatos". O sindicalista criticou também o facto de muitas estruturas terem sido criadas para "defender questões pessoais".

Passados 30 anos dos "secos e molhados", Paulo Rodrigues ressalva que "muitos dos problemas ainda se mantém", como "uma certa desvalorização" do trabalho das polícias e perseguição sindical.

Por sua vez, o presidente da segunda maior estrutura, o Sindicato dos Profissionais da Polícia (SPP/PSP), considera que "muita coisa" mudou em 30 anos, nomeadamente horários, folgas, que passaram a ser semanais em vez de quinzenais, e maior abertura. Com a liberdade sindical, passou existir "poder de intervenção e de denúncia", disse Mário Andrade.

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