Racismo e tortura na PSP: "Era um cenário de pânico. Não houve um único que tivesse coração"
De tudo o que alega ter sofrido na esquadra de Alfragide naquele dia cinco de fevereiro de 2015 - agressões, insultos racistas, humilhação - o que mais "chocou" Celso Lopes, 36 anos, membro da Associação Cultural Moinho da Juventude (ACMJ), na Cova da Moura, foi a desumanidade que sentiu nos polícias. "Era um cenário de pânico. Não houve em momento algum um único que dissesse 'calma, lá!' Não houve uma única pessoa que tivesse sensibilidade, que tivesse coração, para dizer 'já chega, já está bom!', afirmou esta sexta-feira no tribunal.
Celso Lopes é a terceira das seis alegadas vítimas de tortura e racismo na PSP, crimes que terão sido cometidos pelos 17 agentes da esquadra de Alfragide - que estão a ser ouvidas no tribunal de Sintra. Analista de dados, "nascido e criado" no bairro da Amadora, onde já não vive, contou ao coletivo de juízes a sua versão dos acontecimentos daquele dia. O cenário era a esquadra de intervenção e fiscalização policial, conhecida pela "antiga" esquadra, onde se deslocou um grupo de jovens - 20 a 25, segundo os polícias, quatro de acordo com o Ministério Público (MP) - liderados por Celso Lopes e Flávio Almada, ambos mediadores da ACMJ. Iam saber o que tinha acontecido com Bruno Lopes, um jovem do bairro que tinha sido detido e alegadamente agredido pelos agentes, momentos antes no bairro.
Celso contou que pediram a um agente que estava à porta para falar com "o chefe de serviço" e que, sem nada o fazer prever, "entre 15 a 20 polícias saíram e começaram a carregar" sobre os jovens."Quando percebi que o agente não nos ia mesmo dizer nada virei-me para ligar para o Moinho e avisar que íamos voltar. Foi quando ouvi o agente com quem tínhamos falado a gritar: 'Oh malta, venham cá!'. Vieram entre 15 a 20 polícias e começaram à bastonada, aos pontapés e a insultar. Vem um polícia com uma caçadeira na mão e eu digo 'não dispare, não fizemos nada!', mas ele apontou para o chão e disparou. A bala bateu no chão e saltou para a minha perna. Fiquei estupefacto, virei-me para o Flávio e ia dizer 'isto tudo para quê?' quando fui atingido diretamente na coxa. O agente disse: 'este tem que ficar'. Ele e outro agente atiraram-me para o chão e senti uns joelhos em cima do peito, a apertar-me contra o pavimento. Senti falta de ar e disse ao agente que não conseguia respirar. Ele disse: 'preto do c..., hoje vais morrer mesmo!'".
Nesta altura, a testemunha foi interrompida pela juiz presidente do coletivo. Ester Pacheco quis voltar atrás na narrativa e insistiu em saber quantos jovens se tinha dirigido à esquadra. Não escondeu a irritação por Celso não lhe conseguir dizer um número certo. Apenas que Flávio ia com ele e Miguel Reis, mais atrás. "Mas não sabe quantas pessoas iam atrás de vocês? Do que é que os agentes tiveram medo para dois deles (estavam três à porta) terem ido para dentro da esquadra? Foi uma fuga ou uma atitude normal?", questionou a magistrada, tentando perceber se os jovens tinham sido seguidos por mais gente, como alegam os polícias.
"Terá de perguntar aos agentes. Mas pela forma como o bairro é conotado, como bairro de risco, os agentes não nos veem como pessoas, retiram-nos a humanidade... posso compreender porque aqueles agentes...", estava a dizer Celso, quando foi de novo interrompido por Ester Pacheco. "Já percebi onde está a querer chegar, mas sabe porque é que os agentes foram para dentro?", indagou, tendo recebido uma resposta negativa.
Corroborando a acusação do MP, Celso voltou às suas recordações e ao momento em que sente o peso dos joelhos no seu peito e está com falta de ar. "Só pensava num jovem negro que tinha sido morto por polícias nos EUA e que me ia acontecer o mesmo. Com um enorme esforço consegui desviar um bocadinho o peito e respirar e logo senti dois pontapés na cabeça. Algemaram-me atrás das costas e puxaram-me os braços para cima. Pensei que iam parti-los. Tive de fingir que tinha desmaiado", relatou.
Quando foi "arrastado" para dentro da esquadra foi "atirado" para cima da "roda de uma viatura", mas logo ouviu alguém dizer que "a merda" era "para o chão" e para o chão foi "atirado". "Fingi outra vez que não estava em mim (que tinha desmaiado)", afirmou, e ouviu gritar "Raça de merda, têm de ser todos eliminados; Vão todos morrer; o vosso bairro vai acabar". Diz que viu Flávio a "levar um pontapé que lhe partiu um dente" e ouviu os gritos de outros dois jovens, um deles Miguel, que os tinha acompanhado, outro Paulo Veiga. Quando estavam todos no chão, algemados e agredidos, apercebeu-se da voz de Rui Moniz (outra das vítimas), que também tinha sido detido, alegadamente por estar a filmar com um telemóvel a suposta "invasão" da esquadra.
Tal como Flávio tinha revelado, também ouviu agentes a humilhar Rui por este ter uma mão paralisada, como uma tala, por causa de um AVC. "Disseram-lhe 'isto não foi nada, agora é que te vai dar um a sério que te vai f... para sempre", recordou. "Era um cenário de pânico. Não houve em momento algum um único que dissesse 'calma, lá!' Não houve uma única pessoa que tivesse sensibilidade, que tivesse coração, para dizer 'já chega, já está bom!' Ficámos deitados no chão com sangue à nossa volta".
Foi quando ouviram alguém, um polícia, dizer que o Correio da Manhã já tinha chegado, mas que a SIC "ainda não", dando a entender que tinham sido chamados pela própria polícia, conforme sublinhou depois ao coletivo de juízes. "Fez-me muita confusão. Todos riam. Alguém disse 'oh Santos sai daí que estás a aparecer na televisão'. Aquilo para eles era um gozo tremendo. Até chamaram a comunicação social".
Talvez porque Celso Lopes não tivesse a carga emocional do testemunho de Flávio Almada, na semana passada, Ester Pacheco não se mostrou tão sensibilizada com a descrição e quis de novo voltar ao momento da chegada à esquadra para saber o que tinham ido lá fazer os jovens "exatamente". Celso tentou falar da realidade do bairro para explicar porque estavam preocupados com Bruno Lopes, mas a magistrada não deixou. "Responda à pergunta", interrompeu. "Fomos saber do estado do jovem, por aquilo que acontece com outros jovens do bairro", respondeu Celso. "Porque ele podia estar a ser maltratado?", perguntou Ester Pacheco. "Ou que fosse morto", atirou Celso. "Mas isso acontece em Portugal?? Vou abster-me de comentar isso", exclamou a juíza, incrédula.
O testemunho de Celso durou apenas uma hora, pois a maior parte da sessão foi ocupada pelo contrainterrogatório de Flávio Almada. Celso continuará no próximo dia 2 de outubro. "Está a ser muito difícil lembrar tudo isto", comentou ao DN, já no exterior do tribunal.
No contrainterrogatório a Flávio Almada, uma das advogadas dos polícias quis transformá-lo num ativista anti-polícias e mostrar a contradição entre o seu discurso anti-violência e as letras da sua música. Flávio, mestrando em Estudos Internacionais no ISCTE, gravou alguns raps, com o nome artístico de LBC e, questionado pela juiz presidente, explicou o significado: "Quando comecei a estudar em Portugal não se aprendia a história africana e escolhi LBC como Learning Black Culture, mas depois adaptei para crioulo como "Luta Bo Consegui", lutar para conseguir, como uma palavra de motivação".
A mandatária da defesa dos arguidos questionou Flávio sobre a letra de uma das canções - "Todo o pobre é um soldjah" - na qual, no seu entender " põe em causa os agentes de autoridade. Ester Pacheco irritou-se e lembrou que, tendo em conta o seu testemunho anterior, Flávio já tinha esclarecido sobre o "teor contestatário da sua música", mas a advogada insistia em que revelasse a letra. "Não sabia que tinha sido detido por causa da minha música", indignou-se Flávio. "Mas faz ameaças à polícia?", perguntava Isabel Gomes da Silva. "O que posso dizer é que a música diz que todos os pobres são soldados, irmãos e irmãs à procura de uma vida melhor. Não se pode tirar um fragmento do contexto da música", retorquia Flávio.
Veja aqui o vídeo da música, com o momento polémico aos 56 segundos. "Não tenham medo da polícia portuguesa", canta LBC.
A advogada anunciou que ia requerer a tradução completa da letra da música, cantada em crioulo, e a juíza perdeu a paciência. "Faz o que quiser. Está assumido que este senhor faz música de contestação", sublinha a magistrada. "Contra os polícias e contra o Estado de Direito", insiste Isabel Gomes da Silva. "E se calhar contra os tribunais! Vivemos num Estado Democrático. Acho que está aqui a inverter os termos: este senhor é ofendido e não é arguido. É uma cultura de bairro e temos obrigação de a conhecer", contraria Ester Pacheco.
Mas a advogada quer esclarecer porque Flávio Almada, que no seu depoimento anterior tinha falado da importância da "comunicação não violenta" e na formação que tinha tido na ACMJ para o efeito, tinha aquela música. "Não é contraditório?", perguntou. Não conseguiu sensibilizar a magistrada. "Este homem não está a ser julgado... o tribunal tem em conta que esta música tem a ver com a idade e alguma maior agitação e entusiasmo", concluiu.