Médicos dizem que Portugal tem de se preparar melhor para "segunda vaga"

Bastonário fala em falta de meios, mas sindicatos e academias estão otimistas com a evolução da situação em Lisboa e Vale do Tejo. Deixam um recado: "Este não é um problema político, é um problema de saúde pública".
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O aumento recente de mortes, contágios e internamentos hospitalares por covid-19 em Portugal deveu-se à falta de meios e a uma menor atenção às regras de segurança pela população, defendeu o bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães.

No mesmo dia, o presidente da Associação Nacional de Médicos de Saúde Pública (ANMSP), Ricardo Mexia. frisou que Portugal precisa de aumentar a capacidade de resposta a nível de saúde e preparar-se para uma eventual segunda vaga da pandemia de covid-19 no inverno

Em entrevista à agência Lusa, Miguel Guimarães lamentou que o país não tivesse aproveitado da melhor forma o tempo para acautelar uma situação como aquela que se vive atualmente.

Deixou também um aviso para os efeitos nefastos que novas falhas no planeamento podem ter face a uma eventual segunda vaga da doença sobre os doentes covid-19, "mas também sobre os doentes não covid-19", que diz estarem a ser esquecidos.

"Para termos isto equilibrado, temos de colocar os meios necessários. Ainda estamos a tempo de colocar as coisas no terreno, porque vamos na primeira fase da pandemia. Se tivermos uma segunda fase no inverno, a nossa capacidade de dar resposta tem de chegar aos doentes covid-19, mas também aos outros doentes. Não se nota já, mas a curto e médio prazo vai começar-se a notar e pode ter um impacto muito maior do que a covid-19", observou.

Segundo Miguel Guimarães, os 'passos em falso' registados no desconfinamento são indissociáveis de uma mudança do "alerta relativamente à vigilância e à fiscalização do que está a acontecer", lamentando que forças de segurança e câmaras municipais não tivessem tido uma "atenção redobrada" na exigência do cumprimento das regras.

"Existe o risco" de negligenciar preparação do Inverno

"Há países que já chegaram aos zero casos por dia e nós também podemos chegar. Isso implica um grande trabalho e recursos que têm de ser garantidos aos profissionais na 'linha da frente'. Quanto mais depressa resolvermos isto, mais depressa a economia começa a crescer. É fundamental pensarmos que a pandemia ainda não acabou", referiu, sem deixar de vincar que a atual situação "não é nenhuma segunda onda da pandemia".

Ato contínuo, o bastonário dos Médicos reconheceu igualmente que "existe o risco" de negligenciar a preparação atempada do futuro em termos de resposta de saúde pública nos "recursos humanos, recursos físicos e tratamentos" face à concentração das atenções em exclusivo no desafio no presente.

"Se continuarmos concentrados no combate que temos neste momento, é possível que não se tomem as medidas adequadas para no inverno estarmos preparados para uma segunda onda de covid-19", disse, expondo outros problemas além da pandemia: "O inverno é uma altura mais complicada, não só pela gripe sazonal, mas porque há, muitas vezes, a descompensação de doenças crónicas. Se não tivermos um planeamento rigoroso, o inverno vai ser muito duro".

Apesar das críticas e dos alertas, Miguel Guimarães mostrou-se convencido de uma trajetória de normalização dos números na região de Lisboa e Vale do Tejo e destacou a importância da eventual aceitação de Portugal como um destino seguro para turistas.

"A questão é se normalizamos mais rapidamente ou mais tardiamente. Tivemos agora uma 'nega' do Reino Unido em relação aos turistas, porque não temos a situação ainda controlada. Por isso, temos de acelerar todos os processos", adiantou, acrescentando: "Há várias questões que têm de começar a ser resolvidas, porque se começarmos apenas em agosto ou setembro já estamos a começar tarde".

O líder da Ordem dos Médicos relativizou ainda a troca de críticas entre políticos e especialistas científicos sobre a orientação no combate à pandemia para a área metropolitana da capital, finalizando que "todos estão aqui para ajudar o Governo e o país" e que tudo não passou de "um grito de alerta" para os governantes.

"Estamos a ser mais reativos do que proativos"

"Estamos a ser mais reativos do que proativos e é importante que haja um planeamento efetivo para o momento em que, previsivelmente, vamos ter os nossos serviços de saúde mais pressionados, como é o caso do inverno. Se acrescentarmos esse aumento da procura pela gripe aos problemas relacionados com a pandemia, seguramente temos alguma dificuldade nessa matéria. Importa dotar o país dessa capacidade de resposta", afirmou o presidente da Associação dos Médicos de Saúde Pública disse

Também em entrevista à Lusa, o líder da ANMSP assumiu que "as explicações não são fáceis de encontrar" para a situação atual da crise sanitária no país, refletida na subida do número de mortes, de casos e de internamentos hospitalares nas últimas semanas. No entanto, não deixou de enumerar vários fatores que se conjugaram para o atual retrato da pandemia.

"Desde a mensagem que foi passada para as pessoas, que levou a que adotassem comportamentos de maior risco, a falta de preparação, ou seja, de antecipar o aumento do número de casos e alguma demora na realização das diversas tarefas, como os inquéritos epidemiológicos ou o diagnóstico laboratorial. Isso acabou por levar, de facto, ao surgimento de um número relevante de novos casos", explicou.

Questionado sobre a definição da evolução da realidade portuguesa no combate ao SARS-CoV-2, Ricardo Mexia sublinhou que a resposta passa, necessariamente, pela alocação de recursos atempada e adequada, bem como o cumprimento das normas de prevenção de contágio, nomeadamente, etiqueta respiratória, distanciamento social e uso de máscara de proteção.

"Em Lisboa e Vale do Tejo, particularmente, depende da nossa capacidade de rapidamente realizar os inquéritos, isolar os doentes e colocar os contactos em quarentena. Seguramente, depende dos recursos que estiverem alocados e da nossa celeridade para realizar essas tarefas", notou, acrescentando: "Em relação à disseminação para o resto do país, é a questão da mobilidade e a adoção das medidas que todos já conhecemos".

Por outro lado, o presidente da ANMSP relativizou as críticas veiculadas ao longo dos últimos dias entre políticos e responsáveis médicos e científicos sobre a recente gestão da pandemia, considerando que "não é uma questão de clivagem" entre as duas partes.

"Cada um tem o seu papel: aos técnicos cabe fazer a avaliação da situação e dotar os decisores da informação para que possam decidir, e aos decisores cumpre dar aos técnicos os recursos necessários. Se cada um cumprir o seu papel, estamos bem encaminhados para conseguir ultrapassar a situação. Se houver, de facto, uma dificuldade em cada um assumir aquilo que é seu, com os políticos a tentarem fazer um discurso técnico e os técnicos a tentarem justificar opções políticas, provavelmente, temos mais dificuldade", sentenciou.

"Era importante os políticos ouvirem as academias"

No entanto, o presidente do Conselho das Escolas Médicas Portuguesas (CEMP), Fausto Pinto, teme as consequências de um antagonismo entre políticos e a comunidade médica e científica em pleno combate à pandemia de covid-19.

Perante as recentes críticas que se registaram entre as duas partes, face ao recrudescimento de óbitos, infeções e internamentos hospitalares nas últimas semanas na região de Lisboa e Vale do Tejo, sobretudo, o líder do conselho que reúne a academia portuguesa na área da medicina salientou à agência Lusa que os governantes deveriam alargar também o leque de pessoas e entidades a consultar para se alcançar uma melhor gestão da crise sanitária no país.

"Era importante os políticos ouvirem de uma forma mais abrangente e não apenas aqueles por si nomeados ou que fazem parte do círculo mais fechado. Deviam ouvir ainda as academias. Era importante haver uma aliança, seria mau existir um antagonismo [entre políticos e cientistas]", afirmou, reiterando que "ordens, entidades científicas e academias têm uma maior independência do poder político".

Sublinhando que "a ciência não se compadece com a matriz política tradicional", Fausto Pinto defendeu que a colaboração entre decisores e comunidade científica "é fundamental" para atenuar a incerteza associada a situações sobre as quais não se dispõe de toda a informação.

"Este não é um problema político, é um problema de saúde pública. E os políticos não estão habituados a isto, não estão habituados à incerteza da ciência", assinalou.

O presidente do CEMP notou ainda "alguma precipitação" no processo de desconfinamento - não só pelo "desacerto de números e de coordenação de estratégias", mas também devido a alguma "falta de pedagogia" e um certo "excesso de otimismo" -, considerando que nesta fase "os números falam por si" e "não são nada positivos" para Portugal.

"Há a necessidade de uma maior coordenação e uma estratégia mais bem definida, sobretudo, ao nível das estruturas de saúde pública, da identificação dos casos positivos e da existência de uma rede adequada no terreno", observou, acrescentando: "A única forma de ultrapassarmos isto é se as pessoas cumprirem as regras. Ninguém quer voltar ao confinamento, mas se isto correr muito mal pode não haver outra solução".

Em simultâneo, Fausto Pinto reconheceu que o passo seguinte da gestão da pandemia pode mesmo passar por outros intervenientes ao nível da coordenação das autoridades de saúde.

"Ficámos mal na fotografia"

"Tínhamos todas as condições para sermos um bom exemplo e com aquela pressa toda estamos a ser agora um mau exemplo. Ficámos mal na fotografia e é preciso corrigir com as pessoas adequadas. Recorrendo a uma linguagem futebolística, às vezes são precisas 'chicotadas psicológicas'. Albert Einstein dizia que as mesmas soluções para os mesmos problemas dão os mesmos resultados. Se calhar, é preciso haver também algumas mudanças".

Sobre a evolução do combate ao novo coronavírus, o também diretor da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa lembrou que são precisas semanas para ver resultados e que as decisões não podem ser tomadas em função da sua popularidade junto da população, sob pena de agravar a posição do país em relação aos demais parceiros europeus.

"O controlo vai depender muito da capacidade que as nossas autoridades de saúde e o Governo tiverem de poder enfrentar esta situação com medidas assertivas e uma boa organização, que permita no terreno a identificação das cadeias, a realização dos testes, e a pedagogia junto das pessoas. Há todo um trabalho que se não for feito de forma coordenada pode evoluir para uma situação mais complexa. Não se pode baixar a guarda", concluiu.

Portugal contabiliza pelo menos 1.620 mortos associados à covid-19 em 44.129 casos confirmados de infeção, segundo o último boletim da Direção-Geral da Saúde (DGS).

A pandemia de covid-19 já provocou mais de 535 mil mortos e infetou mais de 11,52 milhões de pessoas em 196 países e territórios, segundo um balanço feito pela agência francesa AFP.

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