Polícias e procuradores falharam e Angelina morreu queimada pelo ex-companheiro

Todas as entidades do Estado falharam na proteção de Angelina que foi regada com gasolina pelo ex-companheiro e morreu quatro meses depois. Equipa de Análise Retrospectiva de Homicídio em Violência Doméstica aponta dedo ao Ministério Público, à PSP e aos serviços de saúde
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Angelina Rodrigues e João Faustino tiveram uma relação amorosa entre abril e dezembro de 2016 - nesse período chegaram a viver juntos durante três. A relação entre a operária fabril e o pescador e nadador-salvador chegou ao fim. Ele insistia que a amava, que era a mulher da sua vida e queria reatar a relação. Depois de agressões, perseguições e ameaças denunciadas à polícia e ao Ministério Público sem surtir efeito, João esperou por Angelina à porta da fábrica, em Peniche - agrediu-a brutalmente na rua e regou-se, a ele e à mulher, com gasolina. Depois ateou fogo a si próprio e agarrou-a. Os dois começaram a arder. João morreu no dia seguinte, a 21 de setembro do ano passado, Angelina ainda esteve a sofrer quatro meses. Ela procurara proteção, pedira ajuda às entidades competentes, mas estas foram incapazes de a salvaguardar... e até a sua filha de sete anos esteve em risco. Tudo falhou: polícia, Ministério Público e os serviços de saúde.

"Apesar de o risco para a vítima ser elevado, não foram incrementadas medidas para a sua proteção e para a contenção" dos atos violentos de João Faustino, lê-se no relatório da Equipa de Análise Retrospectiva de Homicídio em Violência Doméstica (EARHVD) publicado esta quarta-feira. E mais: "Os contactos que teve com a PSP, com o Serviço Nacional de Saúde e com o Ministério Público constituíram oportunidades perdidas de intervenção", escreve ainda o organismo dependente do Ministério da Administração Interna que analisa os homicídios ocorridos em contexto de violência doméstica já transitados em julgado.

A primeira vez que Angelina, de 42 anos, se dirigiu à PSP para apresentar queixa de João, de 51, foi a 13 de junho de 2017. Entre o primeiro contacto com a polícia e o Ministério Público, diz o relatório, "passaram 98 dias com diversas situações graves e com diversas oportunidades para proteger a vítima e conter o agressor".

A violência, as ameaças, as perseguições sucediam-se em escalada. E apesar do risco ter sido avaliado e classificado como muito elevado - prossegue o documento - tanto a PSP como o MP não identificaram a perigosidade que este agressor constituía. "Foi evidente a incapacidade de interpretação dos sinais de perigosidade que demonstrava, nomeadamente a ausência de limites, a escalada dos comportamentos agressivos e os conteúdos das SMS que enviou, que foram remetidos ao MP a 22 de agosto e denotavam já uma ideação de passagem ao ato no que diz respeito à possibilidade de cometimento de homicídio/suicídio."

As entidades policiais e judiciais, apesar dos indícios preocupantes, limitaram-se a seguir uma atuação formal, sem proatividade, nomeadamente no que diz respeito à operacionalização da avaliação e gestão do risco, e não foram desencadeadas medidas efetivas de proteção da vítima e também da sua filha, acrescenta o documento.

A falha dos serviços de saúde

Apesar de Angelina se ter deslocado duas vezes ao hospital para ser assistida depois de ter sido agredida pelo ex-companheiro, segundo a EARHVD, nunca foi questionada sobre a origem das lesões. Ou se foi, não ficou registado.

"Tal como constatado em casos anteriormente analisados pela EARHVD, a Saúde não procurou averiguar da existência de violência doméstica ou, pelo menos, não documentou tal pesquisa, nem terá desencadeado medidas protetivas no sentido de precaver a repetição do fenómeno e, neste caso, a respetiva sinalização às entidades que deveriam ter atuado no sentido de evitar o desfecho que se verificou." Por isso se considera que o papel da saúde não pode nem restringir-se ao mero tratamento e reparações físicas e psicológicas resultantes da violência doméstica. Deve, sim, passar pela denúncia às entidades competentes, de preferência com documentos que o possam atestar.

Filha de sete anos ignorada

O relatório refere ainda que embora a mulher tivesse manifestado preocupação pela segurança da filha, de 7 anos, e constasse dos autos que a criança estava presente em situações por ela denunciadas, "nem a PSP nem o Ministério Público tomaram qualquer iniciativa para que fossem desencadeados os procedimentos adequados para a segurança e a proteção da criança".

Angelina mencionou três vezes a preocupação que tinha com a filha, por quem temia que João "pudesse fazer algo para lhe chamar a atenção" - uma vez quando disse que ia com a filha e foi perseguida pelo ex-companheiro; quando apresentou nova denúncia e descreveu factos que a criança presenciou; e quando a filha foi confrontada por João quando este perseguia a ameaçava a sua mãe ou quando a esperava na escola e conversava com ela, numa altura que "a violência e o comportamento de controlo já tinham atingido níveis elevados".

A EARHVD refere a este propósito que a criança nunca foi ouvida, ficou desprotegida e não foi incluída num plano de segurança, tendo sido negligenciado o seu sofrimento ao ser exposta e ter acompanhado o conflito que envolveu e levou á morte da sua mãe. Foi mesmo um instrumento para João amedrontar e controlar Angelina.

"Não raras vezes as crianças são ameaçadas, agredidas, e até mortas, em contextos como o que ficou descrito, podendo ser utilizadas como forma de controlo e de ameaça à vítima. Se existirem crianças, estas estarão em perigo, mesmo que não estejam presentes nos episódios de violência explícita, e qualquer planeamento de segurança e intervenção deve contemplá-las", pode ler-se no relatório.

Recomendações para quem falhou

Perante a falta de reação das entidades policias e judiciais, a a Equipa de Análise Retrospectiva de Homicídio em Violência Doméstica recomenda à Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género urgente implementação, no que respeita às forças de segurança e aos magistrados que capacite inicial e continuamente profissionais para a intervenção em VMVD" do Plano de Ação para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e à Violência Doméstica 2018-2021.

Por outro lado, aconselha a que a Procuradoria Geral da República tome em particular consideração a efetiva direção e o acompanhamento das diligências de inquérito realizadas pelos órgãos de polícia criminal, bem como a atuação do Ministério Público nos períodos de férias judiciais.

Aos órgãos de polícia criminal e ao Ministério Público, a EARHVD recomenda que nas situações em que ocorram episódios de violência doméstica se averigue se existem crianças/jovens direta ou indiretamente envolvidos. Devem ainda proceder à avaliação do risco que correm e adotar medidas de segurança, bem como comunicar à Comissão de Proteção de Crianças e Jovens ou desencadear procedimento judicial para as proteger e promover os seus direitos.

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