História da droga roubada envolve PJ, uma juíza, advogados. E as tiradas de Carlos Alexandre
Dois nomes que fizeram história na PJ no combate ao tráfico, um antigo investigador expulso da Judiciária que denunciou os antigos colegas, a irmã do criminoso que era juíza do TIC. Os advogados de defesa que chegaram a ser arguidos no mesmo processo. Um agente desportivo, com muito trabalho na Colômbia. O "homem dos cães", ou melhor, a pessoa responsável por vigiar o armazém na Margem Sul onde a cocaína iria ser guardada, e o "anão", visita de casa de Dias dos Santos e que estava por dentro dos maiores negócios de droga. Mas também "Papi", o líder do cartel colombiano, "Big Man", o chefe do grupo de ingleses que iriam levar a cocaína - 282 quilos - para Espanha, e ainda "Tony" e os seus sicários.
O enredo da "Operação Aquiles" começa a tomar forma através da audição, em tribunal, das declarações do delator, principal testemunha e também arguido, António Benvinda. São mais de três horas de depoimento e, pelo meio, o "super juiz" Carlos Alexandre confessa temer o pior: que existam mais elementos da PJ envolvidos no esquema.
Esta terça-feira foi a terceira audiência do julgamento que leva à barra do tribunal 29 arguidos, entre eles Carlos Dias dos Santos, ex-coordenador da PJ e Ricardo Macedo, antigo inspetor da Judiciária de Combate ao Tráfico de Estupefacientes. O que se ouviu hoje foi a continuação de um depoimento revelador por parte de Benvinda, ele mesmo um ex-inspetor da PJ que foi expulso depois de ter sido detido e condenado por corrupção. Decidiu denunciar uma rede criminosa que envolverá os responsáveis da PJ, porque, alega, foi ameaçado de morte pelo cartel colombiano, depois do carregamento de cocaína, dissimulado num contentor com latas de ananás, ter desaparecido. Está no programa de proteção de testemunhas há cinco anos.
Benvinda contou tudo o que sabia aos três procuradores e ao juiz de instrução Carlos Alexandre, a 28 de novembro de 2013. A meio do depoimento - que está a ser reproduzido em julgamento - o juiz pergunta: "Parece-lhe possível que estes dois senhores, estando um já na reforma [Carlos Dias dos Santos], providenciarem estas coisas sozinhos ou terão de ter mais cumplicidades na PJ e nos portos?". A testemunha responde que "quem conhece as pessoas todas é o Ricardo [Macedo]". É então que Carlos Alexandre desabafa:
"Sabendo isto, tem consciência de que a PJ é composta por mil e tal pessoas. É atento a isso que diz que ainda aqui estou, hoje, dia 28 de novembro [de 2013]. No dia em que me convencer que a PJ e outros organismos com quem trabalho não me merecem credibilidade, dirijo-me ali abaixo à Rua Mouzinho da Silveira e peço ao Conselho Superior da Magistratura para me colocar num tribunal de carimbo, de execuções, uma coisa qualquer. Aqui é que não vou continuar se me convencer disso. Enquanto me convencer que as organizações têm pessoas que querem fazer o seu trabalho corretamente e não tirar vantagem disso, continuarei", ouve-se Carlos Alexandre dizer.
Benvinda quis que tudo o que contou em fase de inquérito fosse ouvido em tribunal, o que deixou desconfortáveis os arguidos, mas também os advogados, no caso, Ana Cotrim, a advogada de defesa de João Freitas, descrito pela testemunha como o cabecilha da rede de droga em Portugal e o que fazia a ponte com o cartel colombiano. Terá sido ele quem ameaçou a família da testemunha: duas filhas, na casa dos 20 anos, a mãe, de 80 anos, e a irmã, Maria Isabel Benvinda, uma antiga juíza do Tribunal de Instrução Criminal (TIC).
Apesar do delator se ter queixado a Carlos Alexandre que, quando denunciou o esquema, a PJ não o protegeu nem à família, é provável que estejam todos atualmente no programa de proteção de testemunhas. Até porque Benvinda já disse em julgamento que continua a "sentir preocupação" e que aquilo que o move "é a segurança".
"Eles foram a Moscavide a casa da minha irmã e disseram: 'O seu irmão não se está a portar bem", contou no depoimento. A juíza chegou a chamar a PSP. Até que o delator e principal testemunha neste caso decidiu "tirar toda a gente de casa". Filhas, mãe e irmã.
António Benvinda, de 62 anos, falou de muitos nomes durante as declarações. Várias vezes foi questionado, por Carlos Alexandre e pelos procuradores, de onde lhe surgira a ideia de que Dias dos Santos "se envolvia nestes negócios". Benvinda repete-se: "Todos sabiam que era um facilitador desse tipo de negócios". Terá sido o antigo coordenador da PJ quem lhe apresentou o "anão", o homem conhecedor dos meandros do tráfico de droga. "Eu não o conhecia, mas sabia das historias do anão", contou a testemunha.
Os 282 quilos de cocaína, oriundos da Colômbia, tinham como destino o porto de Sines. Os compradores eram de origem britânica - Benvinda chama-lhe "os ingleses" e descreveu-os: "Um grupo de miúdos de vinte e poucos anos, todos louros e tatuados, que estavam sempre a consumir químicos por isso estavam sempre acelerados". Liderava-os o "Big Man": era não só o líder, como o mais alto de todos. A alcunha assentava-lhe.
A droga seria vendida em Espanha, avançou ainda Benvinda. Se a droga não tivesse desaparecido - o antigo inspetor acredita que foi Dias dos Santos quem a roubou - teria sido ele mesmo a dar os 15 por cento do lucro da venda - cerca de um milhão de euros - como pagamento a Dias dos Santos e a Ricardo Macedo. Para Benvinda, o lucro seria de 100 mil euros, assim declarou no depoimento. Tudo pago em "dinheiro vivo" - a ausência de registo de transferências anormais de dinheiro foi sempre um entrave para quem investigava o suposto envolvimento de Carlos Dias dos Santos em casos de corrupção e tráfico de droga.
Em Portugal seria João Freitas, "um mulato, com cabelo meio de carapinha, agente desportivo, um género de olheiro que ia muitas vexes à Colômbia", quem comandava a equipa. Terá sido ele, natural do Porto, e atualmente detido no âmbito de outro processo - também por tráfico de droga - quem terá pedido a Benvinda ajuda para desembarcar o contentor com droga em Sines.
Durante as declarações, o delator falou várias vezes da advogada de João Freitas, Ana Cotrim, que chegou a ser arguida neste processo, bem como Vítor Carreto Ribeiro, advogado de Franquelim Lobo, considerado o maior narcotraficante português e atualmente em parte incerta. É também arguido neste processo. Vítor Ribeiro apresentou-se como advogado do ex- inspetor-chefe da PJ Ricardo Macedo. Os dois advogados foram constituídos arguidos em 2016, no dia em que chegaram a tribunal para se apresentarem como representantes dos acusados. Foi a própria PJ quem os constituiu arguidos, uma vez que suspeitavam que os defensores estivessem envolvidos na rede criminosa.
As acusações caíram e hoje os dois advogados estão na linha de defesa, apesar dos seus nomes serem várias vezes referenciados por Benvinda, que chegou a comentar que conhece Ana Cotrim "há muitos anos" e que a advogada "era muito amiga" da irmã, a juíza Maria Isabel Benvinda. A testemunha também fala várias vezes de Vítor Ribeiro, associando-o sempre a Ricardo Macedo, com quem, garante, nunca trocou "mais do que uma frase".
A investigação que recebeu o nome de "Operação Aquiles" leva a julgamento 29 arguidos, em que se incluem o antigo coordenador da PJ, Carlos dias dos Santos, o ex-inspetor-chefe da Unidade Central de Combate ao Tráfico de Estupefacientes da PJ, Ricardo Macedo, e o cabo da GNR, José Baltazar da Silva, do destacamento de Torres Vedras.
Os dois ex-elementos da PJ são acusados de tráfico de droga agravado, associação criminosa com vista ao tráfico e corrupção passiva para prática de ato ilícito, devido a ligações a poderosos traficantes de droga colombianos, recebendo dinheiro em troca de informações sobre as operações da polícia, segundo o MP.
A acusação, concretizada pelo Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP), refere ainda que Dias dos Santos e Ricardo Macedo aproveitavam as informações que obtinham dos traficantes para apreender droga e deter suspeitos que integrariam outros grupos ligados ao tráfico. Assim conseguiam manter uma imagem de agente empenhado e obter o reconhecimento dos superiores. Sentam-se lado a lado no banco dos réus.
Após a pausa para almoço, o julgamento deveria ter sido retomado às 14.00, mas uma demora no fornecimento do almoço a três arguidos detidos já provocou um atraso de quase duas horas no reinício da sessão da operação Aquiles.
Um dos advogados de defesa contou à Lusa que a sessão da manhã do julgamento da Operação Aquilesfoi interrompida às 12:40 para almoço, tendo os juízes comunicado que pretendiam reatar os trabalhos pelas 14:00.
O mesmo advogado referiu que esta situação tem sido recorrente nos tribunais portugueses quando em causa estão arguidos presos, causando vários atrasos nas sessões de julgamento. Na primeira sessão, a 16 de outubro, o arguido João Freitas, que se encontra detido no estabelecimento prisional do Porto ao abrigo de outro processo, esteve ausente do julgamento por lapso dos serviços prisionais.
(Atualizada às 16:42 com informação sobre atraso no julgamento)