Crime e vingança. As 24 horas do duplo homicídio

O ex-companheiro de Sandra Cabrita queria fazer-lhe mal. Depois de anos de ameaças, decidiu matar-lhe a mãe e a filha de ambos. Precisou apenas de um dia para cometer os crimes e assim "castigar" a mulher
Publicado a
Atualizado a

Pedro Henriques tinha um plano e cumpriu-o em 24 horas. Nesse período, conseguiu matar com arma branca a ex-sogra, fugir um dia e uma noite com a filha de dois anos, e ser ele mesmo a ligar ao INEM para dar conta de onde as autoridades podiam encontrar o corpo da criança, que terá igualmente matado. Duas horas depois, cometeu suicídio. Quais foram os passos que o homicida deu para cumprir as ameaças de anos?

Segunda-feira, 4 de fevereiro de 2018. Helena Cabrita, de 60 anos, espera a neta, uma bebé de dois anos e meio, no interior de sua casa, um apartamento na Cruz de Pau/Amora, no concelho do Seixal. Passam poucos minutos das oito da manhã e será o ex-genro, Pedro Henriques, de 39 anos, quem irá entregar a criança. Mas a entrega de Lara nunca acontece. O homicida força a porta, entra dentro de casa e mata a mãe da ex-companheira. Às 8:30 a polícia é alertada por moradores do prédio na Rua do Minho para um caso de violência doméstica, que terminou com o esfaqueamento da vítima.

Ao mesmo tempo que a mãe é brutalmente assassinada, Sandra Cabrita, única filha de Rui e Helena Cabrita, está no café dos pais - a pastelaria "Orly". Iriam todos encontrar-se às 10:00 no Tribunal de Família e Menores do Seixal para, a pedido da mãe de Lara, alterar o regime de guarda partilhada. Pedro era violento, ameaçava a família inteira, estava desempregado e não tinha condições para cuidar da criança, no entender de Sandra Cabrita. Terá sido a iminência da audiência em tribunal que precipitou os atos do homicida. A mãe do alegado homicida seria testemunha da ex-nora.

Buscas cautelosas: homicida estava em fuga com uma criança de dois anos

As primeiras notícias surgem pouco tempo depois do homicídio de Helena Cabrita, ainda na segunda-feira de manhã. Um homem, separado da mãe da filha, matara a mãe da ex-companheira, no Seixal, e levara a filha. O que se sabia, então, era que o casal começara a namorar há cinco anos e se tinha separado há dois anos, quando a menina tinha meses.

Com Pedro Henriques em fuga, todos acreditavam que queria vingar-se da sogra e da ex-mulher. Lara estava em risco, mas ninguém queria acreditar que pudesse fazer mal à própria filha. A PJ coordenou as operações de busca, com o apoio das restantes forças de segurança da zona. Várias patrulhas fizeram operações stop, mas as buscas foram feitas com especiais cuidados: "Partindo do princípio que o indivíduo anda com uma arma e está com uma criança, quando localizarmos a viatura, a intercessão tem de ser bem avaliada", explicava, na segunda-feira, fonte da PJ ao DN.

A caça ao homem durou praticamente 24 horas. Segundo informações de fonte policial, foram feitas tentativas de localização através do sistema de triangulação de antenas que detetam sinais de telemóvel, mas o suspeito não traria consigo um telefone detetável.

Homicida ligou para o INEM. Criança estava na bagageira do carro, morta.

Terça-feira, 5 de fevereiro. A criança de dois anos é encontrada na manhã de terça-feira na bagageira do carro do pai. Foi o próprio que, às 8.25, alertou o INEM para a localização da filha. A viatura estava em Corroios, no parque de estacionamento nas traseiras de uma escola secundária e muito perto da estação de comboios.

Inicialmente foi noticiado que a criança não apresentava sinais de violência física. Depois de uma análise mais apurada ao cadáver da criança, concluiu-se que terá sido asfixiada ainda nessa manhã de terça-feira e pelo progenitor. Apurou-se, depois, que quando Pedro Henriques fez a chamada para os serviços de emergência já estava na pequena vila de Castanheira de Pera, no distrito de Leiria.

Foi nesta pequena vila que cometeu suicídio. Um funcionário municipal encontrou o corpo ao lado de uma caçadeira num local próximo da casa dos pais do ex-segurança, a mesma onde cresceu e morou até à juventude. Até ao início da manhã de terça-feira - quando foi descoberto o cadáver - ninguém podia imaginar que o alegado homicida (da sogra, Helena Cabrita, e da filha, Lara, de 2 anos) andava por ali.

Há muitos anos que Pedro Henriques - o mais novo de três irmãos - deixara Castanheira de Pera. Fonte próxima da família - que prefere não ser identificada - contou ao DN que "até com os pais ele mantinha uma relação conflituosa". O pai, contabilista aposentado, foi funcionário da Fiandeira Castanheirense por muitos anos, enquanto a mãe era doméstica. Os vizinhos acreditam que Pedro Henriques terá entrado em casa dos pais "à socapa", e sabendo onde o pai - caçador nas horas vagas - guardava a arma, a terá ido buscar já com o objetivo de se suicidar, à hora em que o progenitor comprava o jornal na vila.

Pedro Henriques terá chegado a Castanheira de Pera, a mais de 200 quilómetros do Seixal, de comboio. Saiu em Pombal e apanhou um táxi até à zona onde cometeu suicídio. Deixou o taxista à espera e a viagem por pagar. O seu corpo foi encontrado por volta das 10 da manhã, uma hora e meia depois de ter ligado para o INEM a dar conta da localização do corpo da filha.

A autópsia a Lara foi realizada esta quarta-feira no Hospital do Barreiro. Fontes ligadas ao processo adiantaram ao DN que numa análise preliminar tudo indica para que a criança tenha sido asfixiada pelo pai.

PSP disse que Sandra estava em "risco elevado". MP não referenciou violência doméstica

Em 2017 Sandra Cabrita apresentou uma queixa na polícia contra o ex-companheiro. Foi aberto um processo de investigação, que acabou "arquivado por desistência da queixa da ofendida". O DN questionou o Ministério Público por que razão esta queixa não foi classificada como violência doméstica, mas não obteve resposta. Caso fosse classificado como um caso de violência doméstica não teria efeitos a desistência da queixosa, uma vez que é um crime público, que não depende da queixa de uma pessoa.

Fonte policial garantiu ao DN que, após a queixa de Sandra Cabrita, a PSP enviou ao Ministério Público a informação de que se estava perante um caso de "violência doméstica", especificamente "violência psicológica e social" num caso que classificavam de "risco elevado".

Esta informação terá chegado ao Ministério Público que, em resposta a perguntas do DN, apenas revelou que foi encontrado um inquérito de 2017, precisamente, arquivado por desistência da queixosa. Mas esse inquérito tratava de um crime de coação e ameaça e não de um crime de violência doméstica.

O DN voltou a questionar o Ministério Público para confirmar se esta queixa que a PSP classificou de "risco elevado" foi a mesma que acabou arquivada e classificada apenas como um episódio de "coação e ameaça". A Procuradoria Geral da República respondeu dizendo que nada tinha a acrescentar à informação inicial: "Na jurisdição criminal, foi localizado um inquérito em que se investigou um crime de coação e ameaça. O mesmo foi arquivado por desistência de queixa da ofendida."

"Ela disse que isto ia acontecer"

Foi com esta frase que uma mãe comentou o crime desta semana - um pai a matar a filha de 2 anos e a ex-sogra - num grupo privado do Facebook dedicado a famílias monoparentais. Sandra Cabrita era amiga de várias pessoas deste grupo. E teria partilhado com as companheiras virtuais o risco que corria: Sofia Abreu, uma das mães do grupo, tinha conhecimento da história "das constantes ameaças de morte à Sandra e à família", desde, pelo menos, novembro de 2018.

"Uma amiga da Sandra contou-me que ela vivia aterrorizada e que já tinha feito várias queixas à polícia", disse ao DN. Neste grupo, depois desta história, ninguém entende como "uma vítima de violência doméstica é obrigada a estar no mesmo espaço do agressor", que era o que iria acontecer nesta segunda-feira quando o ex-casal se encontrasse no Tribunal de Família e Menores do Seixal para tentar chegar a acordo em relação à regulação do poder paternal - um processo aberto desde 2016. O perigo que corria ficou demonstrado pelo que aconteceu.

No grupo de mães, a coberto do anonimato das redes sociais, houve, durante todo o dia, quem escrevesse que tinha "medo" do ex-companheiro, medo até de ir a tribunal para regular o poder paternal, muito medo de que as ameaças recebidas se cumpram - ou que o exemplo de Sandra Cabrita se repita.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt