Comunidade Cigana no Parlamento: "Somos portugueses ciganos e não ciganos portugueses"
"Nós somos portugueses ciganos, não ciganos portugueses. A nossa bandeira é a portuguesa", frisou Olga Mariano, diretora da Letras Nómadas - Associação de Investigação e Dinamização das Comunidades Ciganas, numa audição pública no parlamento, esta terça-feira, no Auditório António de Almeida Santos da Assembleia da República. A comunidade cigana reclamou maior participação e representação política, mais segurança e justiça, acesso a melhores condições de habitação, educação integrada e a erradicação da discriminação no trabalho e nos serviços de saúde
A maioria das queixas que chegaram à Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial (CICDRE) nos últimos anos incidem nas comunidades ciganas, negras e brasileira. Foi perante esta conclusão que a Subcomissão para a Igualdade e Não Discriminação decidiu abrir as portas do Parlamento para as ouvir. Esta terça-feira, foi a vez da comunidade cigana. Até julho, esta comissão irá concluir um relatório sobre racismo, xenofobia e discriminação étnico-racial em Portugal, para o qual Catarina Marcelino, deputada do Partido Socialista, foi eleita relatora.
Um estudo apresentado pelo Alto-Comissariado para as Migrações em maio de 2017 calculava que existissem 37 mil indivíduos ciganos em Portugal. Mas as contas não são certas e oscilam de estudo para estudo. Alguns apontam para que sejam entre 40 e os 60 mil. Por mais que sejam, a sua existência tem sido negada em várias camadas da sociedade. A política, disse Olga Mariano, é uma delas.
"Os ciganos ainda não estão representados a nível local e nacional. Basta contar quantas pessoas ciganas existem no Parlamento", começou por dizer. E, como fez questão de frisar, não é por falta de vontade ou mesmo de formação. "Temos um projeto que é a Academia de Política (iniciativa apoiada pelo Conselho da Europa), onde falamos sobre política e damos ferramentas políticas à nossa comunidade. Portanto, nós estamos aptos para intervir, para fazer a mudança", esclareceu.
E Bruno Gonçalves, vice-presidente da associação liderada por Olga, faz contas: "Na União Europeia, somos dez milhões, mas não há um único partido com ciganos" como cabeça de lista. Segundo dita a tradição, frisou, quando um membro desta comunidade surge ao lado da palavra "política", o mais provável é que seja uma estratégia "para criar a ideia de que o partido é inclusivo".
Ao mesmo tempo, elogia a chegada do secretário de Estado das Autarquias Locais português, Carlos Miguel, o primeiro cigano a chegar ao executivo. "Temos vindo a assistir a algumas transformações, mas ainda há muito a fazer".
Olga Mariano diz mesmo que, em determinadas localidades "a comunidade cigana é a maioritária", mas mesmo assim "não tem a possibilidade de se ver representada" politicamente. "Nós também fazemos parte deste grande Portugal. Não somos de segunda, nem de terceira, somos cidadãos de primeira, como todos os outros", sublinhou.
Esta não é a primeira vez que Olga Mariano e Bruno Gonçalves, responsáveis pela Letras Nómadas, ambos ciganos, entram na Assembleia da República. A última vez foi para receberem em mão um dos prémios atribuídos pelo Governo no âmbito dos direitos humanos, pelo tempo que diariamente dedicam à associação.
As estatísticas que dizem respeito a esta comunidade ainda são poucos e generalistas, deixando de fora números relativamente à presença de ciganos nas escolas portuguesas e o seu desempenho. Mas Luís Romão lança algumas noções. "Quando comecei a trabalhar como mediador num jardim-de-infância, há 17 anos, ainda não havia nenhum lá", começa por recordar. Agora, "no primeiro e segundo ciclo, há sempre muitos ciganos", mas o número "desde no 3º ciclo e por aí em diante" e muito menos no ensino superior, mas existem.
Luís esteve esta terça-feira na audição pública como representante da Associação Sílaba Dinâmica, através da qual trabalha por uma maior igualdade entre a comunidade cigana e os restantes locais. É em Elvas, Portalegre, que exerce o seu papel como mediador entre pais e crianças, alertando os primeiros para a importância da educação na vida dos filhos e garantindo que cada vez mais crianças concluem o ciclo de estudos obrigatório.
"Um mediador escolar é extremamente importante para o sucesso das comunidades ciganas na população. Não conseguimos resolver (a baixa escolarização) a 100%, mas já não seria bom a 30%?", explicou. Por isso, defende a criação de um Estatuto do Mediador como uma das medidas mais eficazes para ajudar a comunidade.
"A estratégia é simples. Isso implica assim tantas verbas? Ou de uma vez por todas criar o Estatuto do Mediador? É assim tão difícil?", frisou.
Os resultados do papel de um mediador estão à vista. No município onde exerce, de acordo com os dados recolhidos pela associação, há já cerca de 30 crianças entre o 5º e o 9º ano, outras 15 no ensino secundário. Ainda parecem números reduzidos, mas são já uma vitória, como faz questão de lembrar.
Os representantes da comunidade presentes na audição lembram ainda que o estigma generalizado de que os ciganos não são escolarizados gera desconfiança e discriminação na hora de procurar emprego, colocando a etnia à frente das competências. "Temos de nos camuflar para atender a algum tipo de trabalho", lamenta Olga Mariano.
Luís Romão alerta que nenhum tema relativo à vida desta comunidade se pode debater isoladamente. As más condições habitacionais de grande parte dos ciganos e o mau aproveitamento escolar, por exemplo, estão diretamente ligados. "Cerca de 70% da comunidade cigana portuguesa vive em bairros sociais. Eu vivo num e conheço casas onde vivem lá 20 pessoas. Como é que uma criança pode lá chegar depois da escola e ter um sítio para estudar?".
A habitação é um "tema especialmente complicado". Quem o diz é Prudêncio Canhoto, membro da Associação de Mediadores Ciganos de Portugal (AMEC) e mediador na Câmara Municipal de Beja. "O distrito de Beja tem muitos acampamentos ciganos. Todos os dias, andamos no terreno, mas ninguém passa por lá, a não ser para angariar votos. De inverno, é lama, é frio, as crianças vão encharcadas para a escola. No verão, o sol, o calor, até há pouco tempo não havia uma única torneira de água. Há bichos, cobras, ratazanas, baratas", relata.
De acordo com um estudo de Caracterização da População Cigana do Distrito de Beja, divulgado pelo Centro Distrital de Segurança Social de Beja, entre 2010 e 2018, a população cigana deste distrito aumentou 80%, cerca de 70% vive em casas de alvenaria, 17% em barracas e 13% em tendas ou roulottes. "Exigem aproveitamento escolar e educação destas crianças, quando não há uma habitação articulada para estas famílias", reforça Prudêncio.
Segundo o mesmo, os ciganos ainda são largados nas zonas menos nobres da cidade. E a solução, diz, não passa por construir, mas por integrar nas infraestruturas que já existem. Em Beja, por exemplo, "70% da zona histórica está desabitada". "Não é preciso criar bairros para os ciganos", é preciso uma habitação integrada.
E Catarina Marcelino, organizadora desta audição e responsável pelo relatório que será apresentado em julho, comparativamente ao resto da restante população, "a percentagem de ciganos que vive em más condições é muito maior".
Entre os vários intervenientes do debate que decorreu na audição desta terça-feira, estava Maria José, representante da EAPN Portugal - Rede Europeia anti-pobreza, que mais uma vez defendeu que a discussão destes temas deve ser integrada. De acordo com a especialista, "não podemos só trabalhar a área da educação, do emprego, por aí fora. Temos que trabalhar tudo integradamente", pois "está tudo relacionado".
A prova disso, como mostra, está num estudo realizado pela associação em 2009, que mostrava que grande parte das "doenças da comunidade cigana, maioritariamente respiratórias, está diretamente relacionada com as situações de habitação". E lembra que é precisamente esta comunidade que ainda está ausente das campanhas de saúde.
Maria José defende que deve ser fomentada a educação para a saúde e a importância de mediação nos centros de saúde, tanto para ajudar ciganos a compreender o que lhes é relatado pelo profissional de saúde como para diminuir o desconhecimento que os profissionais têm relativamente a esta comunidade.
Uma das medidas que apoia é, aliás, a criação de gabinetes móveis que se possam deslocar para junto das comunidades.
No final da audiência, em entrevista ao DN, Elza Pais, deputada socialista e presidente da Subcomissão para a Igualdade e Não Discriminação disse que "está na hora" de mudar mentalidades e este relatório que estará pronto no final da legislatura é mais "um pequeno passo" nesse sentido.