Cinco pessoas vão a julgamento no Porto por escravidão e tráfico de pessoas

Casal de Bragança e três colaboradores estão acusados de nove crimes de escravidão e outros tantos de tráfico de pessoas. Vítimas relatam que eram agredidas física e psicologicamente. Sem dinheiro, trabalhavam sete dias por semana em Espanha.
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O método já é conhecido: procuram pessoas vulneráveis, com problemas de alcoolismo, algumas analfabetas, e aliciam com promessas de trabalho na agricultura em Espanha, com remunerações atraentes. A realidade acaba por ser diferente: os trabalhadores passam a viver em condições miseráveis, mal alimentados e sem direito ao prometido pagamento. Um casal de Bragança, residente em Espanha, e três dos seus colaboradores estão acusados de nove crimes de escravidão, em aparente concurso com igual número de crimes de sequestro, e nove crimes de tráfico de pessoas por, diz o Ministério Público, ter angariado pessoas para trabalhar em Espanha com o "único propósito de se apoderarem das remunerações correspondentes aos trabalhos prestados". O julgamento irá iniciar-se no Porto, na próxima semana, a 6 de maio, por ser a área onde as vítimas eram recrutadas e onde foi apresentada a primeira denúncia.

Foi em Gondomar que em 2011 foi apresentada queixa relativa ao desaparecimento de um homem. E assim se iniciou este inquérito que foi crescendo à medida que foram surgindo novas denúncias de pessoas desaparecidas que eram feitas por familiares. Uma segunda queixa foi apresentada na Maia e uma terceira na PJ do Porto. A investigação desta polícia acabou por ligar os casos ao mesmo angariador, um dos arguidos, um homem de 47 anos Gondomar que abordava as vítimas na rua e propunha o emprego em trabalhos agrícolas.

No primeiro caso, a angariação aconteceu no Jardim do Marquês, no Porto, quando a vítima, com um passado de toxicodependência, foi abordada. Quando ouviu que iria receber 35 euros por dia, aceitou de imediato. No mesmo dia, dormiu em Gondomar em local cedido pelo angariador e seguiu depois para o País Basco, onde se localizam os campos agrícolas. Esteve lá mais de quatro meses e recebeu apenas cinco euros por semana. Do prometido, ficaram mais de 4500 euros em falta, alega o MP.

A segunda vítima foi aliciada nas ruas do Porto. Na altura, em 2011, consumia cinco litros de vinho por dia. Ficou um período em Bragança onde o casal proprietário de duas empresas de prestação de trabalhos agrícolas em Espanha o colocou junto de familiares. Diz que dormiu durante dois meses numa carrinha e contou que lhe davam um euro por dia e um maço de tabaco. "A casa de banho era no monte."

E sucedem-se os casos, com a investigação a apurar um total de nove vítimas. Há dois irmãos - um homem e uma mulher, ambos analfabetos - que também foram para Espanha convencidos que iam melhorar a sua vida. A mulher acabou por engravidar de outro trabalhador.

Com medo e sem dinheiro

O casal que dirigia a prestação de trabalhos agrícolas em Espanha vive País Basco desde 2005, altura em que emigrou de Bragança. Têm 41 e 45 anos e não registam nenhum antecedente criminal, tal como outros dois arguidos, um homem e uma mulher que trabalhavam para os principais arguidos. Só o quinto arguido deste processo, o angariador, tem cadastro com vários crimes, tendo já cumprido penas de prisão.

A acusação do MP, datada de março de 2018, diz que os arguidos decidiram que iam contactar indivíduos que de antemão sabiam de antemão viverem sozinhas, com dificuldades económicas e com problemas de dependência de álcool ou droga. Refere que os prometidos pagamentos não eram efetuados, apenas faziam entrega às vítimas de pequenos montantes, ficando com o resto do dinheiro.

A defesa dos dois principais arguidos contesta o despacho acusatório e diz que não há provas nem qualquer demonstração fundamentada que indicie os arguidos pelos crimes em causa.

Nos relatos dos períodos vividos em Espanha, as vítimas contam que a alimentação era muito má, que dormiam num armazém em beliches, com uma única casa de banho para todos. Não havia luz natural. Queixaram-se vários dos ofendidos de agressões, sobretudo pelos arguidos masculinos, que recorriam a um cinto ou a uma vara. "Passei lá o tempo todo sem um tostão no bolso", relatou um dos explorados. Muitos admitem que não fugiam por medo e por falta de condições: não tinham dinheiro e sentiam-se perdidos no estrangeiro. Por dia trabalhavam 12 horas e, relatou uma das vítimas, trabalhava-se "todos os dias incluindo sábados, domingos e feriados".

A investigação da PJ foi demorada, contou com a participação da polícia espanhola e envolveu a detenção do português que geria os trabalhos em Espanha. Foi extraditado e após ser ouvido em Portugal ficou sujeito a uma caução de 2500 euros, tal como a mulher, e a proibição de se ausentar do país.

O julgamento podia ter começado antes mas o Juízo Criminal Central do Porto declarou-se incompetente territorialmente para julgar o caso e remeteu o processo para Bragança. Neste tribunal, chegou-se a conclusão inversa e o Supremo Tribunal de Justiça teve que decidir: é no Porto que deve ser o julgamento por ter sido nessa área que se iniciou a investigação e onde decorreram a maioria das angariações de pessoas.

Está prevista a audição de testemunhas por video-conferência a partir de Espanha e Bragança, estando já agendadas quatro sessões de julgamento.

Crime é punido com pena até 15 anos

Nos últimos anos têm sido detetados muitos casos de trabalho escravo seja explorando portugueses em Espanha e no interior de Portugal ou estrangeiros em Portugal, com o trabalho agrícola a ser o setor onde estes crimes são mais praticados. Em Bragança decorre um julgamento de três arguidos, familiares, acusado de escravidão de um casal em trabalhos agrícolas em Portugal e Espanha.

Mas os processos têm acontecido em várias comarcas. No tribunal de São João Novo, em 2013, foi julgada uma rede de grande dimensão, num processo considerado histórico por ter originado penas de prisão. A julgamento chegaram 48 de pessoas acusadas de crimes como escravidão, sequestro e coação. Só 13 foram condenadas a penas de prisão entre cinco anos e meio e 12 anos.

No final do ano passado, as polícias portuguesa e espanhola desencadearam mais uma operação que levou à detenção de cinco pessoas por escravizarem 30 portugueses no trabalho agrícola em Espanha.

O crime de escravidão é punido com pena de cinco a 15 anos de cadeia e está definido no Código Penal desta forma: "Quem a) Reduzir outra pessoa ao estado ou à condição de escravo; ou b) Alienar, ceder ou adquirir pessoa ou dela se apossar com a intenção de a manter na situação prevista na alínea anterior." Já o crime de tráfico de pessoas, com intenção de obter lucro, é punido com pena de prisão de três a doze anos.

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