País
29 dezembro 2018 às 15h00

"E manda ainda o Senhor Deus pretos a este mundo"

Relatórios da administração colonial que denunciam "o bafio da escravatura" e uma diplomacia que tenta negar as acusações internacionais e adiar ao máximo a mudança: Portugal e a Questão do Trabalho Forçado, de José Pedro Monteiro, é um testemunho poderoso sobre o ocaso do Império português.

Fernanda Câncio

"Tratados como animais bravios", agrilhoados, chicoteados, espancados, "arrebanhados no mato", com alta taxa de morte no transporte, mantidos décadas longe da família, à qual eram por vezes devolvidos em "estado de morto de pé", "grávidas e mulheres com filhos monstruosamente espancadas por abandonarem o trabalho": as descrições e observações encontradas nos relatórios da administração colonial portuguesa chocam pela crueza e naturalização daquilo a que um inspetor chama, em 1949, "o cheiro a bafio da escravatura".

Apesar de os castigos físicos serem proibidos por lei e de o próprio trabalho forçado ter sido, a partir da publicação do Código de Trabalho Indígena, de 1928, interditado exceto "para fins públicos" - e mesmo assim apenas quando estivesse em causa o interesse das populações que eram para ele mobilizadas --, as autoridades coloniais continuaram, pelo menos até aos anos 1960 (o Código de Trabalho Indígena só é revogado em 1962, sendo substituído pelo Código de Trabalho Rural, que deixa de ter referência racial e proíbe todas as formas de trabalho forçado, incluindo para fins públicos), a servir de recrutadoras compulsivas para privados - tratava-se, na linguagem de então, de "contratos com facilidades" -- e a aceitar as punições corporais com naturalidade, como vários relatórios reconhecem.

A candura destes relatórios e a forma como alguns inspetores ou outros membros da administração colonial exprimem a sua discordância e até revolta face à situação - um deles chega a escrever, referindo, em 1949 em S. Tomé, a existência de "grilhetas superiores a dois metros" e o facto e de o governador certificar que "só ele podia ordenar punições": "E manda ainda o Senhor Deus pretos a este mundo!" - é, para o leitor não especialista, uma das grandes surpresas que resulta da leitura de Portugal e a Questão do Trabalho Forçado/Um império sob escrutínio (1944-1962), do historiador José Pedro Monteiro, publicado este mês, e que, nas palavras do próprio, "mobilizando fontes inéditas, ilustra, pela voz de administradores imperiais e locais e de testemunhas autóctones, algumas realidades laborais e sociais vigentes nas colónias, permitindo, deste modo, cotejá-las tanto com as denúncias que se produziram internacionalmente como com os esforços de refutação oficial, frequentemente de natureza propagandística."

"É impressionante, no mapa das transgressões do Código de Trabalho Indígena, o número de processos por ofensas corporais" ", escrevia, por exemplo, em 1944, o inspetor Nunes de Oliveira; noutro relatório, referente a São Tomé e Príncipe, em 1947, lia-se: "Os serviçais vivem e trabalham contrafeitos, a tal ponto que já tem havido casos de suicídio entre eles, por essa razão; eles constituem uma considerável multidão, de algumas dezenas de milhar, dispersos pela densa floresta, e os agentes dos patrões que têm de os conduzir, só tal conseguem impondo-lhes uma disciplina severa, disciplina que só se consegue por meio de sanções expeditas e bem sentidas."

É, recorda José Pedro Monteiro, o mesmo ano do célebre relatório choque que o inspetor-geral da Administração Colonial Henrique Galvão apresenta à Comissão das Colónias da Assembleia Nacional (o nome então dado ao parlamento), no qual informa que "o trabalho forçado ou "contratado" era a norma, as condições de vida miseráveis, a corrupção entre as autoridades generalizada", chegando mesmo a dizer que os escravos eram melhor tratados que os trabalhadores forçados, já que aos primeiros, sendo sua propriedade, o dono se esforçava por manter vivos e com saúde, enquanto que os segundos, se morriam de fome ou exaustão, eram substituídos por mais trabalhadores "recrutados" pelo Estado. Um excerto do relatório de Galvão: "A mortalidade infantil atingia a percentagem de 60%. O índice de mortalidade era de 40%, mesmo entre os trabalhadores na plenitude da vida. As figuras era mudas, estáticas. Não gritavam, não falavam de dor. Era preciso ver com os próprios olhos, era preciso encorajar até aqueles que queriam ver"

"Grilhetas ao pescoço" e chicote

Nada que devesse surpreender quem vinha lendo os documentos das inspeções "normais". Seis anos antes, diz José Pedro Monteiro, "um relatório do Curador Geral dos Indígenas de Angola relatava que os "indígenas" sentiam tal "horror" pelo contrato que, no Lobito, se tinha dado um episódio em que uns quantos se tinham lançado ao mar para lhe escapar. (...) O mesmo curador relembrava uma nota confidencial, relativa à intendência do Moxico, em que se informava que não havia capacidade para recrutar trabalhadores para a Companhia de Diamantes de Angola porque todos os "indígenas" que podiam ser recrutados tinham desaparecido. "A excepcional mortalidade entre os indígenas em serviço naquela companhia e o "Estado de Morto em pé" com que todos têm sido repatriados, alguns indígenas que morrem pouco depois [de aqui] chegar, e, ainda, os que com o corpo mutilado conservam a vida e vivem actualmente pedindo esmola, sem receber qualquer indemnização da Companhia, constituem, como todos nós sabemos, a razão da relutância que os indígenas mostram por aquele serviço"".

E em 1945, lê-se em Portugal e a Questão do Trabalho Forçado, o Curador de S. Tomé dava nota de que alguns serviçais tinham ali estado 13 anos, "muito além do estabelecido pela lei como limite máximo de permanência em "contrato", a receber metade do salário (...). Invocava-se ainda um relatório do Inspetor Superior de Serviços Judiciais, em missão a S. Tomé, em que se relatava a existência de trabalhadores presos com "grilhetas" ao pescoço. (...) Turistas estrangeiros tinham fotografado serviçais a ser chicoteados, do que decorria, segundo o raciocínio do inspetor, que era preciso pensar estes incidentes à luz do que vinha ocorrendo nos fora internacionais, onde os Estados Unidos vinham censurando a solução colonial."

Já em 1951, o encarregado de serviços da Inspeção Superior de Negócios Indígenas, após um introito no qual "enaltecia a essência humanista e benévola da intervenção portuguesa em territórios coloniais", prosseguia "desfiando um rol de iniquidades e abusos. Referia-se à taxa de mortalidade no transporte de 650 indígenas que era de 15,38 por mil quando comparados com os 4,25 por mil registados nas minas da África do Sul, um trabalho, já de si, extremamente perigoso; aos acidentes de trabalho que eram dados como ocorridos nas horas de descanso, como forma de desresponsabilização, o mesmo recurso estatístico usado também para os classificar como "agonias e congestões"; aos inválidos que eram obrigados a trabalhar em S. Tomé ("verdadeiros farrapos humanos") por salários miseráveis; que não eram pagas às famílias as indemnizações por morte de trabalhadores em S. Tomé; que milhares de "indígenas" ficaram mais de uma década para além do termo oficial do seu contrato sem serem repatriados; que os salários em Moçambique e especialmente em Angola chegavam a constituir cerca de um sétimo dos valores na África do Sul e menos de metade dos salários da Rodésia; que mulheres de trabalhadores eram sistematicamente violadas por grupos de serviçais enquanto outras grávidas e mulheres com filhos eram "monstruosamente espancadas com mais de 50 palmatoadas" por terem abandonado o trabalho.""

Muito impressionante também é um relato de 1949, referente ao "caso dos Tongas" (filhos de trabalhadores deslocados de outras colónias para trabalho em São Tomé, que nunca tinham vivido na colónia dos seus pais): "Muitos deles alegavam que desejavam reencontrar suas famílias, mas o governador-geral de S. Tomé simplesmente entendia que era um desejo descabido, visto não conhecerem as famílias, não saberem onde estavam nem sequer se ainda existiam. Ressalve-se que eram indivíduos com todas as obrigações fiscais e militares cumpridas. Mas eram também "fortes e saudáveis, educados numa vida de trabalho" e, como tal, o seu repatriamento devia-lhes ser negado, justificava o governador."

Não é possível saber, escreve José Pedro Monteiro, "o destino destas populações, mas a simples ideia de que o governador entendia possível mantê-las em S. Tomé revela os termos do debate em matéria de liberdade de trabalho. O relatório é ainda ilustrativo no sentido em que o funcionário da ISNI, no ensejo de contrariar a vontade do governador, elencava um conjunto de informação crítica. Desde logo, referia que serviçais havia que tinham estado entre 10 a 30 anos nas ilhas e que, se o seu contrato tivesse sido cumprido, o problema dos "Tongas" simplesmente não se punha. Recuperava um trecho do relatório do curador que os descrevia como "acabrunhados e tristes" e sem qualquer ideia do que era um contrato livre. Como finalizava o relator: "As expressões "os meus tongas" ou "tongas das roças" "embora se autorizem a mudar de situação", como se diz no ofício, cheiram ainda a bafio de escravatura"."

As descrições são arrasadoras, e muitas até agora inéditas. Constituindo uma versão editada e revista da tese de doutoramento do autor, investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, o livro procura dar a compreender "como e porquê as modalidades de trabalho coercivo se mantiveram política e socialmente aceitáveis no seio da burocracia imperial portuguesa por um período consideravelmente mais longo que noutros impérios europeus; porque estavam as propostas que procuravam pôr-lhes termo tão recuadas face às normas internacionais; e, finalmente, porque e como foi finalmente concretizada a reforma que lhes pôs termo, ainda que de modo meramente formal."

O historiador, de 34 anos, que investigou em vários arquivos -- no arquivo Histórico Diplomático, no Arquivo Histórico Ultramarino, na Torre do Tombo ("Onde havia pouca coisa"), e também nos da Organização Internacional do Trabalho em Genebra, da ONU, nos National Archives nos EUA bem como nos arquivos britânicos, em Kew - conversou com o DN sobre o seu trabalho.

Houve alguma coisa que o tenha surpreendido ou chocado particularmente nas suas leituras?

Houve relatórios que li, que fiquei... Uma pessoa pode-se chocar. Nos debates sobre a escravatura diz-se muito que é preciso olhar com os olhos daquele tempo. Curiosamente esse é um dos motivos pelos quais o facto de a abolição da escravatura ter resultado na generalização do trabalho forçado faz com que com que nas discussões públicas a questão do trabalho forçado quase não apareça. Porque se torna um bocadinho mais complicado poder dizer "ah, temos de olhar com os olhos daquele tempo." Não, aos olhos daquele tempo o trabalho forçado já era condenado de forma unânime. Não é por acaso que nos debates sobre a escravatura se alguém quer falar do trabalho forçado vem o "isso era outra coisa". Reforçando uma distinção legal que não é confirmada pela continuidade das práticas.

Quer dar algum exemplo de situações concretas que o chocaram?

Quando li os relatórios de São Tomé e se começa a discutir o repatriamento [dos trabalhadores negros deslocados] para Angola e Moçambique, que se acelera e regulariza a partir de meados dos anos 1950, pensei "será que nós sabemos, porque não estamos a falar do século XVII, o que é alguém ser retirado da sua terra e ser levado para uma terra diferente e depois haver esta ambiguidade que os administradores discutem, que é "Ele quer voltar ou não quer voltar?" Porque essas pessoas estavam tanto tempo em São Tomé que reconstituíam lá a vida, se calhar já nem reconheciam a família. O grau de violência, de sofrimento implícito nisto foi das coisas que mais me impressionou.

E no que respeita à outra vertente do seu trabalho, a relação com as instâncias internacionais?

Houve uma coisa que me surpreendeu bastante. Temos tendência a achar que Portugal era um império isolado mas quem estava nos escalões mais altos da administração estava permanentemente a par não só do que se passava nas organizações internacionais mas também noutros contextos coloniais, acompanhava a literatura... Conheciam os processos de descolonização, mas achavam que não era exequível. Estas pessoas não era ignorantes. Sabiam o que se estava a passar. E pura e simplesmente consideravam que as outras potências coloniais eram cobardes. E se havia administradores com desconhecimento, havia em muitos a perceção clara de que as inspeções estrangeiras, etc, seriam uma coisa muito preocupante, porque estavam permanentemente na cogitação destas pessoas não só as normas e criticas das organizações internacionais mas o que era feito noutros territórios coloniais. Não eram ignorantes...

Não tinham essa desculpa.

Sim. Mas o facto de não existir um contexto democrático e não haver um debate público limitava os incentivos para haver grandes mudanças na forma de pensar. A própria exposição mais crua de reivindicações, de casos, de violência, etc, tornaria mais fácil a essas pessoas imaginarem isto de outra forma. Outra coisa: é engraçado como muitos destes administradores tinham um discurso absolutamente repetitivo sobre como Portugal era um pais multirracial, que tratava muito bem os seus súbditos imperiais, neste caso os negros, e isso convivia com descrições absolutamente tétricas que faziam daquilo que eram as realidades sociais.

"Trabalho forçado pior que escravatura"

Como interpreta isso?

Não acho que isso tenha a ver com contradição, mentira... Tem a ver com a forma como imaginavam o que era aceitável e não era aceitável. Por exemplo, o que escrevia Fortunato de Almeida - um funcionário do Ministério Negócios Estrangeiros que na altura em que Portugal é convidado pela ONU [da qual ainda não fazia parte, só entra em 1955] e pela Organização Internacional do Trabalho a responder a um inquérito sobre trabalho forçado elenca uma compilação de relatórios internos, olha para aquilo e diz: "Nós assim não podemos ratificar a Convenção sobre Trabalho Forçado [da OIT, de 1930, só ratificada por Portugal em 1957] porque a realidade é esta." Chega mesmo a afirmar que há aspetos do "trabalho contratado" que são piores que a escravatura, que é também uma ideia de Henrique Galvão [autor de um relatório sobre a situação das colónias ao parlamento, em 1947], que tem uma declaração famosa, quando diz que ao menos na escravatura o proprietário tinha de alimentar bem o escravo, mas como neste caso era o Estado que fornecia não havia problema em deixar morrer, porque se pedia mais.

O trabalho forçado só se aplicava aos "indígenas". O que distinguia um indígena de um não indígena?

Não foi uma preocupação minha neste livro, mas faz parte do projeto de investigação que quero fazer nos próximos anos: estudar as políticas de cidadania no império de 1945 a 1975. Há alguns trabalhos sobre isso, por exemplo da Cristina Nogueira da Silva, sobre a formulação jurídica da questão indígena e da relação com os assimilados, que era o nome que se dava aos "negros civilizados". Porque havia dois estatutos para os negros: os que eram cidadãos e os que não eram. Os que não o eram estavam subordinados ao Estatuto Político, Civil e Criminal do Indígena, criado em 1926 e reatualizado em 29, que se aplicava aos naturais de Angola, Moçambique e Guiné, e o próprio estatuto e as leis de cidadania definiam quais as características que permitiam aceder à cidadania.

Porque, bem entendido, ser indígena era não ser cidadão.

Para se poder tornar cidadão eram precisos vários fatores, desde o saber escrever, o saber ler... a expressão utilizada na lei é "demonstrar hábitos e costumes" dos ditos civilizados europeus. Mas entra-se, claro, numa série de contradições. E uma delas é que esse tipo de exigência não era colocado aos cidadãos brancos.

Ou seja, o branco nascia cidadão e pronto.

Sim. Já a capacidade de ser considerado cidadão sendo negro também se fundava na capacidade de pagar impostos, de ter um emprego regular, etc. O que é curioso nisto, e agora relacionado com a questão do trabalho, é que até à parte final do Império, até ao último censo de 1960, nas colónias de indigenato -- Angola, Moçambique e Guiné --, as percentagens de indígenas entre a população eram acima de 95%. E essa era uma das maiores acusações feitas em organizações internacionais: o Estado português dizia que não era um Estado racista, que era um Estado multirracial, mas a contradição jurídica afirmava-se de uma forma evidente. E quando começam, ainda antes da Segunda Guerra, os debates nas organizações internacionais que levariam à condenação, em dezembro de 1960, do colonialismo em todas as suas formas, a primeira resposta que vem de Nova Iorque, da delegação portuguesa, é: "Temos de abolir o indigenato."

"Qualquer negro pode chegar a cidadão"

O que só acontecerá em 1962, no entanto. Já após o início da guerra colonial.

Mas desde a entrada de Portugal na ONU, e com a descolonização nas outras potências coloniais a necessidade do país de fazer a afirmação da sua unidade imperial multirracial torna cada vez mais urgente eliminar uma distinção jurídica fundamental entre brancos e negros. A desculpa portuguesa era "isto não é racismo porque qualquer negro tem a possibilidade de chegar a cidadão, só têm de cumprir determinados requisitos." Essa ideia de mobilidade jurídicossocial era apresentada como argumento, prova do não racismo português por comparação com formas mais racializadas, mais cristalizadas, que não permitiam este tipo de movimentos.

Ser indígena também implicava "o dever moral de trabalhar". No Estatuto do Indígena de 1914 até se previa a criminalização da recusa de trabalhar.

Sim. Mas quando foi criado o Código de Trabalho Indígena em 1928 já havia debates internacionais, sobretudo no seio da Organização Internacional do Trabalho, que visavam regular o trabalho forçado, que o deslegitimavam para fins privados mas o autorizavam para fins públicos. E o CTI reflete essa realidade. O problema é que ao mesmo tempo instituía "o dever moral de trabalhar" do indígena e permitia que os administradores o encorajassem, o que é uma linguagem bastante ambígua, permitindo o "recrutamento com facilidades". Outra categoria que se encontra muito nos documentos é a do "trabalhador contratado", que é uma figura legal que não existe. As autoridades portuguesas sabiam perfeitamente que quando se falava de trabalhador contratado, era trabalho recrutado com a intervenção das autoridades.

Ou seja, trabalho forçado.

Muito regularmente sim. Sobre questões inéditas; foquei-me nas acusações internacionais mas também dei bastante importância ao facto de serem as próprias autoridades administrativas a admitir, por escrito, no seio do Estado, embora não publicamente, que o problema do trabalho forçado era uma realidade que se mantinha com uma intensidade inusitada, muitas vezes inclusivamente dizendo que era muito difícil resolver.

"Não estando na lei as coisas não existiam"

Assistimos, nas comunicações dentro do Império, à admissão mais ou menos crua das condições de vida dos negros e à forma como politicamente se responde a isso. Uns inspetores mais preocupados e mais humanistas, outros mais pragmáticos, as respostas políticas... E a dada altura alguém diz que o melhor era apagar essas coisas, que não se falasse nisso.

Creio que é Fortunato de Almeida. Mas há vários momentos em que isso acontece, e se relaciona com a questão jurídica. Por exemplo vi em estatísticas que era reproduzida a expressão "contratos com facilidades"; chegavam portanto a aparecer nos boletins oficiais. Achava-se que não estando na lei as coisas não existiam. E o que aconteceu com muitos destes inspetores é que eles viam que existiam e que as pessoas sabiam que existiam, e esse é o segundo aspeto que procuro mostrar no meu trabalho - que toda esta gente reconhecia que existia o problema do trabalho forçado mas que ao mesmo tempo eles percebiam a saliência política internamente mas sobretudo internacionalmente. Em alguns relatórios por exemplo mostra-se que há queixas. Por exemplo trabalhadores que produziam por conta própria na agricultura -- uma das coisas que lhes podia permitir adquirir os recursos financeiros para pagar impostos e poderem aceder à cidadania -- e muitas vezes essas atividades eram bloqueadas porque as autoridades achavam que eles não rendiam o suficiente e eram mais bem utilizados em grandes plantações. Havia uma arbitrariedade enorme.

Dizia-se que os indígenas podiam passar a cidadãos mas impedia-se isso na prática.

Há as leis e para fora diz-se sistematicamente que são perfeitas, as mais avançadas. Mas o que se vê e que é recorrente é a dissonância permanente entre a lei e aquilo que eram as realidades sociais. Sendo que a própria lei estava claramente atrasada em relação àquilo que eram os desenvolvimentos noutros contextos coloniais: era uma lei que não permitia ao dito trabalhador indígena um conjunto de faculdades que eram já outorgadas noutros contextos. E mesmo o reformismo imperial de alguns destes inspetores continuava a contemplar coisas como "o dever moral de trabalhar". Porque o indígena continua a ser visto como preguiçoso, indolente...

Como uma criança, que precisa que lhe digam o que fazer.

Sim, sem sequer reconhecer que o indígena pode reagir aos incentivos de mercado. Nesta altura há uma tentativa nos impérios britânico e francês, de forma desigual, incentivar novos estímulos ao trabalho através do consumo ou da adoção de práticas de consumo tidas por racionais. Conseguir que o trabalho seja garantido através da criação de necessidades. No caso português isso é aflorado muitas vezes mas ao mesmo tempo há a permanente argumentação de que o indígena não vai conseguir dar resposta. E o medo por um lado é social, de que as relações laborais ficarão mais agitadas, que não se conseguirá a mão de obra necessária, e do ponto de vista político é perceber que a calmaria das colónias podia acabar se se abrissem canais de participação mais ativa da população indígena.

"Só a varinha como forma de respeito"

Diz que mais de 95% da população negra das colónias do indigenato era classificada como indígena. Há alguma ideia do volume de trabalhadores forçados nas colónias, da quantidade de pessoas que foi usada dessa forma?

O problema disto é que é impossível fazer um trabalho que cubra todas as realidades do trabalho forçado. Estamos a falar de realidades geográficas e sociais muito distintas. Por exemplo algumas áreas de recrutamento da Diamang [companhia de diamantes de Angola] tinham decréscimos populacionais sistemáticos todos os anos. Isso dá um bom indicador, se bem que não se deva generalizar, até porque a Diamang deve ser dos piores casos -- mesmo a ideia de acabar com a intervenção das autoridades administrativas no recrutamento para a Diamang teve muita resistência, mesmo no início da década de 1960. Há um relatório, do qual falo no livro, de um funcionário dos Negócios Estrangeiros que é bastante sarcástico com aquilo, em que ele diz que Portugal para alegar que não há falta de mão-de-obra em Angola envia as licenças emitidas - porque era preciso emitir licenças para o recrutamento - e como não eram esgotadas, não havia escassez de mão-de-obra, portanto não havia trabalho forçado. E ao mesmo tempo no próprio boletim oficial dizia-se que 73% dos trabalhadores em Angola eram recrutados com intervenção das autoridades, ou "com facilidades". Há porém realidades muito diferentes. Em alguns casos não é registado o trabalho forçado - duvidaria muito das estatísticas do trabalho forçado para fins públicos - e há muitas situações que não são registadas porque não podem existir legalmente. A dissonância é muito grande. Consegue-se, através de pequenas pistas, ter a dimensão daquilo, mas não ter números fidedignos... Talvez alguém venha a conseguir.

A forma como as autoridades lidavam com esta realidade também era de molde a impedir que se tenha uma ideia exata da dimensão.

Isso leva-me de volta à questão de ter dado tanta importância neste trabalho os relatórios das administrações imperiais... Obviamente que eles tinham constrangimentos institucionais, até censura dos pares... Mas eles próprios reconheciam que havia trabalho forçado de forma generalizada. Claro que alguns diziam que não existia -- é muito fácil encontrar contradições, porque afirmavam "não existe trabalho forçado", enquanto diziam "todo o africano tem de trabalhar". Percebe-se o espaço enorme que havia entre a retórica, a razão legal e as realidades no terreno.

A dada altura num dos relatórios citados alguém diz "E põe o Senhor Deus pretos no mundo". Como se dissesse "como é possível estas pessoas serem tratadas desta forma". Encontrou muito este tipo de reflexão? E a que ponto implica um reconhecimento real de que aquelas pessoas deviam ter os mesmos direitos que os brancos? Porque também há quem, como Henrique Galvão, critique o trabalho forçado mas quer que tudo se mantenha "pacífico".

Alguns dos relatórios têm uma riqueza literária bastante grande. No caso do Galvão, por exemplo, não se consegue perceber se ele de facto defendia a reforma que levaria à efervescência social ou se pelo contrário achava que era melhor "deixar como está porque senão teremos outros problemas". Acredito que ele defendia a primeira, mas de forma mitigada, ou seja: "Temos de fazer reformas, mudar e elevar as condições sociais e económicas das populações indígenas, mas com calma para não acontecer o que está a acontecer noutros sítios." Quanto a esse relatório de que fala, onde se lê "Por que manda nosso senhor deus pretos a este mundo", é um escrito extraordinário, porque o autor está avaliar a realidade através de um processo que está instaurado, e é altamente crítico das realidades do Império, de modo muito mais assertivo até que as acusações internacionais. E o que se nota ali é uma descrição um bocado dantesca das coisas. Esse inspetor fala de um funcionário local que garante que não usa palmatória, "só uma varinha como forma de respeito" - uma varinha para bater, como é óbvio -, e pergunta: "Será esta varinha como a serpente bíblica de Moisés, terá poder de curar os indígenas?" Há um sarcasmo muito grande, uma ironia muito fina e devastadora. Mas o que é mais interessante no processo é o que aqueles administradores que enviam este tipo de coisas se sentiam legitimados a dizer em documentos de inspeção interna. E que mostra até que ponto na consciência destas pessoas isso era aceitável. Porque fica claro que dentro da administração as pessoas já naturalizaram de tal maneira que o negro é inferior que aquilo lhes parece aceitável...

O "dever moral de trabalhar dos indígenas"

Mas quando diz "sentiam-se legitimados a dizer estas coisas nos relatórios internos" quer dizer o quê? Como se explica este nível de franqueza e de crítica no contexto de uma ditadura?

Uma das coisas mais intrigantes é que estamos a falar de processos, de inspeções, a propósito de acusações de maus tratos. E portanto eles estão num momento de acusação; estão no terreno, negam as acusações todas, e há uma naturalização da parte deles. Leio desta forma: "Isto é tão normal no nosso quotidiano que não existe necessariamente um problema em revelarmos isto." Enquanto um funcionário que está no Ministério dos Negócios Estrangeiros ou na Inspeção Superior dos Negócios Indígenas tem plena noção do que é aceitável e não é, das leis que são aplicáveis e não são, e de quais são as repercussões internacionais, muitos funcionários locais não têm essa noção, a realidade deles é outra.

Ou seja, não têm noção da ilegalidade, porque estão dentro do sistema em que é normal "bater nos pretos" ou obrigá-los a trabalhar?

Há funcionários locais que acham isso, mas não se pode dizer que é realidade de todo o Império, essa naturalização e permissividade. Mas a própria estrutura jurídica do Império limitava a capacidade de haver correção. Porque não era permitido aos próprios negros ter sindicatos, ter associações que permitissem denunciar essas coisas... Só podiam escrever queixas. Isto permitia que um inspetor mais humanista, mais preocupado olhasse para esse processo e decidisse intervir. Mas o que se tem é que a estrutura desenhada ao longo de linhas raciais tornava ela própria propícia a existência desses acontecimentos, porque limitava a expressão de descontentamento, a apresentação de queixas, etc. A partir do momento em que os indígenas não eram considerados cidadãos, eles só podiam queixar-se ao curador, e só ele podia fazer alguma coisa.

Quem era o curador?

Resumindo sinteticamente, é a figura tutelar que zela pelo bem-estar dos indígenas, especialmente os trabalhadores indígenas, nomeada pelo Estado. O curador superintende ainda todos os seus agentes, que podia ser qualquer administrador local. Mas é também quem regula a questão dos impostos e emolumentos relacionados com o trabalho... Havia uma série de impostos sobre os indígenas, que para os pagarem teriam de trabalhar recendo dinheiro; não podia por exemplo só trocar géneros. Se não cumprissem, podiam ser presos ou obrigados a trabalhar. Portanto o imposto e a questão do trabalho estão permanentemente articulados.

Ou seja, a criminalização do não trabalho, que estava no Regulamento Geral do Trabalho dos Indígenas nas Colónias Portuguesas, de 1914, e desaparece no Código do Trabalho Indígena de 1928, é substituída pela criminalização do não pagamento de impostos pelos indígenas.

Havia uma série de mecanismos, diretos e indiretos, que podiam levar à compulsão ao trabalho, apesar de não se ter juridicamente definido que é obrigatório trabalhar. E o Código de Trabalho Indígena era regulamentado a nível local. Por exemplo em Moçambique há uma famosa circular 566-D7, de que falo, que é criada no pós Segunda Guerra, e que se por um lado tenta combater o abuso serve para fazer cumprir o "dever moral de trabalhar". Este, se não estou em erro, em Moçambique implicava que no espaço de um ano o indígena tinha de trabalhar seis meses; o imposto era apenas outro mecanismo para obrigar ao trabalho.

Outra coisa curiosa é a preocupação das autoridades portuguesas com a quantidade de indígenas que atravessavam as fronteiras e iam para outros países porque lhes pagavam melhor e ofereciam melhores condições de trabalho.

Há casos muito flagrantes: no de Moçambique há emigração patrocinada pelo Estado e regulada por convenções internacionais - um acordo anterior à segunda guerra que é retomado na década de 1940 --- que permitia que um contingente de 100 mil trabalhadores moçambicanos fosse todos os anos para as minas da África do Sul. Mas havia uma corrente muito maior, de emigração clandestina. Por essa emigração os portugueses não eram recompensados.

Porque Portugal recebia pela cedência desses trabalhadores, como se os alugasse?

Isso era legitimado pela assistência que lhes era dada, pela curadoria, pelos transportes... No norte de Angola fugia-se muito regularmente para o antigo Congo Belga e tinha muito que ver com fugir ao trabalho forçado e aos castigos corporais mas também procurar melhores condições de vida. Tudo isso criava escassez de mão de obra e as atividades económicas nas colónias portuguesas diminuíam, não se conseguindo atingir os níveis pretendidos. E há também outro problemas de natureza política: o prestígio de Portugal enquanto nação civilizadora é posto em causa. Se há fluxos tão grandes para outras colónias, há um problema de natureza político-ideológica - se o Império não conseguir garantir que as populações querem viver no território isso questiona a boa governação portuguesa enquanto potência imperial e esboroa os argumentos de uma sociedade perfeita, multirracial, etc. Daí que quando nas instâncias internacionais outros países estão preocupados com dar boas condições aos migrantes, os portugueses estão-no com a repressão das correntes migratórias.

"A natureza multirracial e benévola do colonialismo português"

No livro fala do que se passa a seguir à Segunda Guerra, com a consciencialização da inaceitabilidade do racismo. A que ponto aquilo que se passava no Império português com os negros se foi tornando numa situação particular e isolada em relação ao resto do mundo?

No que respeita às potências coloniais, sobretudo a partir de 1945, há um contrate muito acentuado: o indigenato é abolido em França em 1946, como o trabalho forçado, através de dois deputados das colónias, negros, que são integrados na Assembleia Nacional. Portugal nessa altura não tem nada disso. Do ponto de vista da participação de sindicatos, partidos políticos, etc, não é que não tenha havido repressão noutros contextos coloniais, mas houve uma abertura de canais de expressão de conflitos, e de tentar saná-los, enquanto no caso português persistia a ideia de que o indígena não estava adaptado aos rigores da vida moderna. O que é curioso nisto é que se olharmos para os contextos imperiais britânico e francês e mesmo belga, estamos a falar ao mesmo tempo de uma tentativa de transformação, renovação e relegitimação tática do colonialismo que leva ao mesmo tempo a uma efervescência social extraordinária. No caso português quase nada se passa nos 15 ou 16 anos que levam até ao início da guerra colonial. O Henrique Galvão apanha isso muito bem, porque uma das coisas que diz é "Nós não estamos a acompanhar este grande movimento de elevação mas também em grande medida é isso que explica a paz social nas nossas colónias." Porque um dos grandes argumentos dos portugueses até à guerra eclodir e se tornar insustentável repeti-lo era de que ao contrário das outras colónias em que os conflitos sociais e políticos estavam a assumir dimensões importantes e até violentas como na Argélia e Quénia, no caso português nada disso acontecia, o que provava supostamente a natureza multirracial e benévola do colonialismo português.

Uma natureza que continua a ser periodicamente reiterada hoje. Até nos discursos, digamos, oficiais. Tem alguma explicação para isso?

Continua a haver um consenso nacional numa série de lugares comuns, da direita à esquerda. A ideia da benevolência... Ideias que são usadas em discursos institucionais de uma forma acrítica, a ideia que nos encontrámos com os outros, que nos misturámos... (Ri) A academia já mostrou tantas vezes que isto no mínimo é impreciso, que é um bocado fascinante que as pessoas continuem a reproduzir estas coisas. Vê-se tão frequentemente pessoas nas redes sociais e noutros sítios a dizer que fomos os primeiros a abolir a escravatura quando é tão evidente que não fomos... Mas vou dar um exemplo mais pessoal. Tenho na família pessoas que viveram em África, que foram colonos europeus. Reconhecem muito evidentemente que havia trabalho forçado. Dizem que viam, mas há fenómenos curiosos - uma pessoa bastante mais velha é capaz de ao mesmo tempo dizer que sim, de facto viu negros agrilhoados e que Portugal não era racista.

Mas o que parece é que a maioria simplesmente ignora o que foi o trabalho forçado e até quando durou.

Claro que há gente que não sabe. E há gente que nega e que reproduz argumentos do Estado Novo, que isto é tudo uma conspiração internacional - é muito engraçado ver essa nova bandeira dos conspiradores internacionais que faltam à verdade, muitas vezes pessoas que tomam ao pé da letra as memórias de Franco Nogueira e as declarações oficiais do Estado Novo, gente nova, até, que fala de insídia estrangeira. E também há quem diga, algumas pessoas disseram-mo, quando estava a fazer a minha investigação: "Eh pá, na URSS acontecia muito pior." Mas não estou a discutir a URSS, não é o meu objeto de estudo. Aliás, mesmo a comparação com os casos francês e inglês não tem o objetivo de condenar Portugal. As realidades eram diferentes e eu próprio não arrisco uma explicação para serem diferentes. A ausência neste período de estruturas democráticas na metrópole será uma delas. Mas não se trata de um julgamento moral, trata-se de tentar perceber o que aconteceu e porquê.

Não haverá também um défice de divulgação do que academicamente se tem investigado e produzido?

Se calhar também pode haver um problema da academia. Há um grande distanciamento entre a academia e a opinião pública, nomeadamente entre o que já foi produzido - há vasta produção sobre o trabalho forçado nas colónias portuguesas desde os anos 1950 -- e o que se continua a reproduzir, mas curiosamente estes últimos anos permitiram que as pessoas discutissem mais. E uma das coisas que acho interessante neste debate sobre o passado colonial, que voltou no último ano e meio ou dois anos, é ver as pessoas a discutir a história portuguesa, o passado colonial, a escravatura, como não acontecia há muito. Isto entrou no debate público e é tão curioso haver quem diga "Ah, querem apagar a nossa história"...

Quando se trata de a conhecer.

Sim, pelo contrário, todo este debate tem feito com que se discuta a memória do passado imperial português de uma maneira como já não se via há muito na esfera pública. E espero que os académicos intervenham no debate público, sobretudo se o fizerem com rigor. Toda a gente foca no Museu dos Descobrimentos ou da Expansão: "Que discussão estúpida, por que é que estamos a perder tempo". Mas esse debate gerou novos conhecimentos, novos argumentos, novos testemunhos, e acima de tudo isso é que é importante. É muito fácil resvalar para a lógica de barricada, mas o saldo deve ser positivo. As pessoas deviam deixar de se lamentar por se estar a reescrever a história e pensar que estamos a debater, e a história é uma matéria de disputa, não no pior sentido, mas de uma batalha constante de argumentos, de reformulações, de proposta de novas revelações. A história e a memória são permanentes campos de redefinição. E em vez de se lamentar, de acusar o politicamente correto, pensar que há mais pessoas a interessarem-se por isto, mais estudantes a querer estudar isto - é bom. Uma das coisas boas destes debates que estão a acontecer agora é haver mais gente a estudar o passado colonial mais recente de uma forma séria, sem apriorismos. E acho que isso é que é importante.