
Marinha Grande
Guilherme Stephens. A fabulosa história do inglês que moldou a indústria em Portugal
Guilherme Stephens mudou para sempre a vida da Marinha Grande. Este domingo uma recriação histórica assinala os 250 anos do industrial que fez progredir o fabrico do vidro. E que plantou em Portugal as primeiras alfaces.
"Quem não sopra, já soprou". A frase, que é uma espécie de ditado popular na Marinha Grande - e diz respeito ao vidro - é usada pela presidente da Câmara, Cidália Ferreira, para descrever a condição local: "nós, marinhenses, nascemos todos ligados à fábrica. Todos temos consciência de que nascemos do vidro, dessa história bonita".
Está atarefada com a organização dos 250 anos da chegada de Guilherme Stephens, a quem por ali ainda hoje se chama "o pai da Marinha Grande". Não é para menos. O património que deixou naquela cidade (onde a fábrica de vidro foi só o início) deixou na comunidade "uma admiração que passou de geração em geração".
Cidália, que hoje é a autarca de um município-estandarte da economia e do empreendedorismo, sabe que foi aquele inglês que "mudou para sempre a vida da Marinha Grande". Essa é uma história que começa quando Guilherme aceita um desafio do Marquês de Pombal, e reativa a fabricação do vidro na Real Fábrica de Vidros da Marinha Grande. Mas há outra que é preciso contar - a do rapaz inglês que embarcara num veleiro com destino a Lisboa, em 1746, quando tinha apenas 15 anos, que perde o emprego no terramoto de 1755, que depois disso ergue uma fábrica de cal em Alcântara, e que acaba falido, mas arregaça as mangas e transforma num caso de sucesso mundial o vidro da Marinha Grande.
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Ao mesmo tempo, deixa um legado ímpar: criou uma escola para os operários, construiu um posto de primeiros socorros onde eram tratados gratuitamente os trabalhadores doentes ou feridos, organizou um fundo de ajuda para doenças, um plano de pensões, pagava bons salários, e ainda promoveu a música e o teatro. Para todos.

Arca fixa de "recozimento" e operários "atiçadores", no início da década de 1940
© CMMG
É essa recriação histórica que acontece este domingo na Marinha Grande (chegou a estar marcada para sábado, mas foi alterada devido à previsão de chuva forte), envolvendo uma produção artística com cerca de 150 pessoas, cavalos e carruagens. E é para assistir à efeméride que a escritora Jenifer Roberts (familiar de Stephens, pela via do avô) está em Portugal, desde sexta-feira, a convite da autarquia da Marinha Grande. Foi lá que o DN a encontrou, acabada de chegar, incansável na investigação à volta da figura de Guilherme (William, como sempre lhe chamam em Inglaterra).
Jenifer sempre se interessou pela vida e obra desse primo tão afastado, que nasceu a 28 de Maio 1731 em 1731, em Landulph, Cornwall, Inglaterra, fruto de uma ligação ex-conjugal de um professor primário com uma criada. "Um bastardo, que cedo teve de se fazer à vida", conta ao DN a escritora. Mais tarde, quando o pai de Guilherme fica viúvo, acaba por casar finalmente com a mãe, e juntos terão mais filhos.
Ambos os pais morrem cedo, e é no meio desse desamparo que o rapaz embarca num veleiro para Lisboa, onde viria trabalhar como contabilista com um tio, e mais tarde com outros comerciantes da capital. Mas o terramoto de 1755 arrasa também com o emprego que tinha. Ele e o tio hão de passar cerca de um ano a viver em abrigos, nos subúrbios de Lisboa.
Da cal ao vidro, história de um empreendedor
É num rasgo de perspicácia, percebendo que havia uma imensa necessidade de matérias-primas para a construção, que Guilherme Stephens apresenta uma proposta ao rei D. José e ao Marquês de Pombal, para a construção de uma fábrica de cal, no vale de Alcântara, abastecida com carvão importado de Inglaterra.
O reino concede-lhe um empréstimo, a fábrica começa a laborar em 1757, o que dura quatro anos. Mas acaba por fechar, perante o atraso na reconstrução de Lisboa. O inglês termina esse período falido. Vencido, mas não convencido, percebendo que as obras de reconstrução da capital ganhavam novo ritmo, reabre a fábrica em 1764, fornecendo então grandes quantidades de cal para as obras que agora aconteciam de forma massiva.
E é nesse momento alto da vida de Guilherme enquanto industrial - e no contexto de grande necessidade de materiais de construção, nomeadamente vidros e janelas - que se abre a porta para o maior investimento da sua vida, e do país, à época: o Marquês de Pombal convida Guilherme Stephens a reconstruir a fábrica de vidro em decadência perto do Pinhal do Rei. Ao princípio o inglês declina, temendo que a mesma o levasse à ruína, como acontecera com a Fábrica de Cal. Mas o Marquês diz-lhe que o pedido era feito por ordem expressa do Rei.
Guilherme Stephens aceita a missão, em Julho de 1769, quando o Rei D. José I assina o decreto que autorizou a reabertura da real fábrica de vidros, ordenando que fosse concedida ao inglês "toda a ajuda e favor que fossem necessários", incluindo um empréstimo sem juros de 30 contos de reis, o uso gratuito de madeira deteriorada e ramos dos pinheiros do Pinhal do Rei, bem como a isenção de todos os impostos sobre vendas.

Operárias da fábrica de vidros a escolher o casco para voltar a ser fundido. Década de 1940
© CMMG
"Nós, marinhenses, já tínhamos competências adquiridas nesse tempo. Eram os ensinamentos sábios que a floresta nos deu. Ele usou essa competência, amassou como barro novo e construiu a sociedade que hoje temos. Hoje somos o maior empreendedor do país como cidade. Temos uma diferença na nossa balança comercial que está à vista de todos", diz ao DN Gabriel Roldão, um investigador local que cedo se interessou pela história do homem a quem chamam "o pai da Marinha Grande".
A 16 de outubro de 1769, a Real Fábrica de Vidros começa a laborar. É o princípio da construção da fortuna de Guilherme Stephens, mas também de um caminho de progresso na Marinha Grande, que absorve muito desse investimento.
Quando os operários recitavam Voltaire
Gabriel descende uma família de industriais (da fábrica Pereira Roldão). Nasceu a 30 de novembro de 1935 (dia da morte de Fernando Pessoa), numa época em que os Stephens (Guilherme acabou por levar os irmãos, João e Philadélphia, para a Marinha Grande) já eram apenas memória e história. "Ele [Guilherme] sempre fez parte da memória da Marinha Grande. E a primeira memória coletiva é construída por ele próprio - o Teatro Stephens - a Casa da Cultura que ele construiu para valorizar os seus trabalhadores que de modo geral eram analfabetos".
Gabriel Roldão retém desse capítulo da história a primeira representação: "Foi uma peça de um amigo comum de Marquês de Pombal e do Guilherme Stephens, que era Voltaire. Chama-se 'Olympia', e era a história de uma pobre rapariga que conduzia um cego mendigo entre as ruínas do terramoto de 1755, em Lisboa. Ele fez questão que fosse representada pelos trabalhadores na língua materna do poeta, em francês. Imagine o que é, no século XVIII, na Marinha Grande, pessoas analfabetas a recitar em francês". O feito levou mesmo um grande crítico de teatro desse tempo, Nicolau Luís, a escrever que "os trabalhadores vidreiros a representaram magistralmente".
A par de Gabriel Roldão, outro investigador local tem dedicado muito do seu tempo a Guilherme Stephens. É Luís Abreu e Sousa, 70 anos, que começou a interessar-se desde a infância pela história do industrial. "Eu sempre ouvi dizer aos meus avós que ele era o pai da Marinha Grande. Depois via ali a estátua, e crescia a admiração. Já na idade adulta, acabaria por unir esforços com Gabriel Roldão. Passaram ambos muitas horas de volta dos arquivos, das histórias e memórias do povo.
É esse rendilhado de histórias que Jenifer Roberts percorre, especialmente a partir do momento em que visita a Marinha Grande pela primeira vez, em 1998.
Jennifer tem agora 76 anos. No fundo dos olhos azuis cabe toda a admiração por Guilherme, o primo distante que acabaria por conhecer nos arquivos. Apoia-se numa bengala colorida até chegar ao salão nobre da Câmara da Marinha Grande, mas antes de entrar detém-se no retrato de Guilherme Stephens: imponente, pose de marquês, numa imagem a meio da vida, quando já era ali que pertencia, àquela terra e àquela gente.

Jenifer Roberts, a escritora que também é familiar de Guilherme Stephens
© Henriques da Cunha / Global Imagens
Jennifer traz com ela um exemplar do livro "D. Maria I - A Vida Notável de uma Rainha Louca", e também uma cópia do artigo que escreveu para o DN, a 1 de dezembro de 2012, a propósito da obra. Interessou-se especialmente pela história da rainha a propósito de uma carta escrita pela irmã de Guilherme, Philadélphia, que descrevia ao pormenor uma visita da rainha D. Maria I à Marinha Grande (das duas que fez, a primeira à fábrica do vidro), em que pernoitou com toda a família real durante duas noites na casa de Guilherme, em Julho de 1788.
"É curioso, porque era um bastardo, não era nobre, nem sequer era católico, foi sempre protestante, mas tinha essa capacidade de encantar a todos - desde os trabalhadores aos Reis", conta Jenifer.
Quando esteve pela primeira vez na Marinha Grande, há 20 anos, a escritora deparou-se com um património que não imaginava: a fábrica-escola Irmãos Stephens, o Museu do Vidro, o Teatro. Na Marinha Grande, Jennifer consegue então ligar todas as pontas. É assim que conhece José Pedro Barosa (da fábrica Santos Barosa), e Luís Abreu e Sousa - que já fazia investigação dessa parte da história local. "Apaixonei-me por ele", conta a escritora, que desde então mergulhou na vida e obra de Guilherme Stephens.
"Ele amava os trabalhadores. Tratava-os de forma muito pouco usual. E também a habilidade que ele tinha para encantar quem estava no poder. Aconteceu isso mesmo com o Marquês de Pombal, de quem se tornou amigo", recorda Jenifer. Quando o Marquês caiu em desgraça, continuou a visitá-lo, em Pombal. Levava-lhe frutas e legumes cultivados na Cerca, escrevia-lhe com regularidade - tal como Jennifer veio a descobrir nas cartas arquivadas na Biblioteca Nacional
"Ele era uma personalidade única. Assim se percebem as inúmeras homenagens que os trabalhadores lhe fizeram, ao longo dos tempos. A própria estátua, datada de 1941, foi uma oferta dos trabalhadores da fábrica, mais de um século depois do desaparecimento", recorda Gabriel Roldão.
Jenifer acabou por criar laços de amizade na cidade vidreira, hoje mais dedicada à área dos moldes. "Eu nunca teria conseguido escrever nada disso sem a ajuda das pessoas que conheci na Marinha Grande". Daí reforçou a ideia de que Guilherme Stephens deveria constar da história da Revolução industrial. "É uma das figuras da revolução que não é conhecido. Ninguém conseguia fazer mais nem melhor que ele, no vidro temperado".
As primeiras alfaces plantadas em Portugal
"Ele era um homem de inovação. Que fazia diferente, trazia o seu conceito empresarial, cultural, e até como agricultor", conta Gabriel Roldão, quando faz ao DN uma revelação: " veja que ele trouxe para Portugal a alface, foi assim que se soube que era uma planta de comer. Cultivava as primeiras alfaces que este país conheceu nos terrenos atrás da fábrica". Da mesma maneira, Stephens utiliza uma propriedade no Casal da Ordem semear luzerna, desconhecida até então, e que que hoje é a base da alimentação bovina.
À volta da fábrica tudo era vedado com parreiras, embora não fizesse vinho. "A uma légua da fábrica não podia haver tabernas, inclusivamente, por decreto real. Ele transformou as videiras em matéria prima, colhia as podas da vinha, incinerava-as, e as cinzas eram grafiti; com isso misturado em borras de azeite, fazia a lubrificação dos moldes para não ficarem riscos no vidro", conta Gabriel Roldão.
Guilherme Stephens morreu a 5 de maio de 1803, na sua casa de Lisboa, pouco antes de fazer 72 anos. No seu testamento nomeou o irmão mais novo, João Diogo Stephens, como seu único herdeiro e executor, e recomendou aos trabalhadores que deveriam "servir o meu irmão e sucessor com o mesmo zelo, fidelidade e obediência com que me serviram durante a minha administração da fábrica".

© CMMG
A escritora e familiar Jenifer Roberts fazia uma pesquisa sobre os ingleses que herdaram o dinheiro dos Stephens, quando percebeu que "a fortuna dele acabou com uma bailarina francesa, que quando morreu devia ter tanto dinheiro como a rainha Vitória".
Na Marinha Grande, o legado de Guilherme está por toda a parte. Conta-se a sua história de geração em geração, inclusive nas escolas. "Foi alguém que nos marcou tão profundamente que ainda hoje sentimos necessidade de passar essa mensagem", sublinha Cidália Ferreira, agradecida a um "um homem muito à frente do seu tempo".
No telão do Teatro Stephens (que a Câmara acabou por adquirir, bem como a fábrica-escola), pintado por Nery Capucho, há uma frase que sintetiza bem toda a gratidão: "o povo da Marinha Grande agradece a Guilherme Stephens". O mesmo que este domingo sai a rua para assistir à recriação histórica, a cargo do encenador Norberto Barroca. Associações, escolas, grupos de música e artistas locais participam desta encenação, agendada para este domingo, às 18 horas, em frente ao museu do vidro.
As comemorações começam já hoje, sábado, com a apresentação do livro "A luz dos tempos - notas biográficas", da autoria de Gabriel Roldão e Luís Abreu e Sousa. Ainda antes, é apresentado um postal dos CTT alusivo aos 250 anos da chegada de Guilherme Stephens à Marinha Grande. Durante todo o fim de semana, das 15 às 20 horas, é possível assistir, ao vivo, ao trabalho do vidro soprado. Como no tempo da grande fábrica.